De acordo com a óptica adoptada e a temática ou disciplina, são várias as acepções do termo “civilização”. Em relações internacionais e em política, poderá aludir-se às regras existentes a fim de dirimir conflitos, de organizar a cooperação ou regular a competição. Por outras palavras, entender-se-á por civilização o sistema que há décadas se vem construindo e que consiste no estabelecimento de sistemas de segurança colectiva, de cooperação, de diálogo permanente, de comunicação rápida e de regulação da concorrência. E sobretudo com o objectivo de diminuir e prevenir conflitos e afrontamentos.
Modernamente, “civilização” implica também o estabelecimento da paz, a afirmação cultural dos povos, o alargamento da participação dos cidadãos e a igualdade crescente de pessoas e comunidades. Princípios que vieram acrescentar-se a outras aquisições da civilização como sejam as exigências de humanidade e respeito mesmo durante as guerras e os conflitos militares. Para já não falar da justiça penal internacional que tem conhecido tão difícil caminho, mas que vem progredindo há alguns anos.
As Nações Unidas e o seu complexo sistema de organismos especializados são o maior exemplo da tendência forte de consolidação de sistemas colectivos de segurança e de diálogo. Muitas outras organizações, globais ou divididas por continentes, assumiram funções idênticas: sempre a cooperação e o diálogo, sempre a procura incessante da paz e sempre o estabelecimento de regras para o convívio internacional. Este complexo sistema está ferido de morte. Não é mais possível confiar na Rússia. Nem sequer, por agora, estabelecer relações formais e contratuais com esse Estado e seus clientes. A lei da força é, a partir de agora, a principal regra de política internacional. O que quer dizer que não é mais possível respeitar e acreditar no que diz ou faz uma das maiores potências mundiais. Um perigo e arriscado confronto substitui-se rapidamente à negociação e à cooperação.
O que se está a passar na Ucrânia, por obra e graça da Rússia governada por Putin, é o mais profundo ataque à civilização nas relações políticas e internacionais que se conhece desde os anos 1930. Com poucas excepções, a Europa tinha vindo a fazer um longo e complexo caminho de consolidação de sistemas civilizados de cooperação, segurança e diálogo. Há muitas décadas que quase não há guerras. Criaram-se sistemas de diálogo, de comunicação e de entendimento. A negociação foi-se tornando o principal instrumento de resolução de conflitos. Tudo isso ruiu, em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia. E também por efeito da barbaridade do ataque perpetrado.
Preparemo-nos para anos de dificuldades imprevistas e a que não estávamos habituados. Assistimos a um recuo da democracia e dos regimes liberais feitos para cidadãos livres. Vivemos tempos em que os sistemas de segurança colectiva e de cooperação internacional para a paz vão ficar em grande parte interrompidos ou ultrapassados. Qualquer que seja o futuro da Ucrânia e da Rússia, nada na Europa e em grande parte do mundo será o que é hoje e tudo leva a crer que seja pior. Por quanto tempo, não sabemos.
Não faltará quem diga que sempre foi assim, que sempre a força reinou nas relações internacionais. Não é verdade. Sempre foi importante, com certeza, mas o sistema mundial de cooperação acabou por ser uma realidade com excepcional força. A paz, o respeito pelos compromissos assumidos e a humanização das relações internacionais adquiriram a sua própria força. Ora, a violência e a desumanidade do ataque russo à Ucrânia, que ficarão impunes por algum tempo, destruíram esse clima criado.
As novas condições de cooperação e o novo clima de relações internacionais criam sistemas medonhos propícios à violência, à desumanidade e ao totalitarismo. Na resolução de conflitos internacionais, volta a estabelecer-se o primado da força militar e da violência, em detrimento da diplomacia.
A conquista territorial é novamente um gesto possível na política internacional. Possível e impune. A guerra voltou a ser um meio de exercício de poder. O bombardeamento de cidades é uma acção exequível. Até as leis da guerra, que se esforçavam por criar um mínimo de dignidade e de humanidade nas situações de conflito, passam a ser desrespeitadas sem escrúpulos e sem sistemas de justiça credíveis. A matança de civis, de gente indefesa e de inocentes vulneráveis (velhos, doentes e crianças) passou a ser um método corrente.
Volta a admitir-se na Europa a criação de áreas de influência das grandes potências que assim adquirem o direito de interferir nas regiões vizinhas e para lá das fronteiras. Os princípios de legitimidade e de representatividade democráticas passam a ter peso menor nas relações internacionais, bastando, a um país ou um Estado, a autoridade e a força para usufruir de direitos e para assegurar a sua presença internacional.
A democracia (como ideia, inspiração, princípio, ideologia ou credo) atrai cada vez menos Estados que deixam gradualmente de invocar ou reclamar um qualquer estatuto democrático para definir a sua presença no mundo e nas relações internacionais. Tempos houve em que ditaduras e outras formas despóticas de organização política julgavam ser necessário, para a sua apresentação internacional, designar-se como, por exemplo, “República Democrática” ou “República Popular”. Esses tempos estão ultrapassados. O poder, a força, a dimensão, o dinheiro e as armas adquirem muito mais importância.
O mundo ocidental terá de fazer escolhas difíceis. Duas coisas parecem certas. Primeira, só a manutenção da democracia garante as liberdades. Segunda, o mundo livre tem de estar preparado.
Público, 23.4.2022