sábado, 23 de abril de 2022

Grande Angular - Civilização


D
e acordo
com a óptica adoptada e a temática ou disciplina, são várias as acepções do termo “civilização”. Em relações internacionais e em política, poderá aludir-se às regras existentes a fim de dirimir conflitos, de organizar a cooperação ou regular a competição. Por outras palavras, entender-se-á por civilização o sistema que há décadas se vem construindo e que consiste no estabelecimento de sistemas de segurança colectiva, de cooperação, de diálogo permanente, de comunicação rápida e de regulação da concorrência. E sobretudo com o objectivo de diminuir e prevenir conflitos e afrontamentos.

Modernamente, “civilização” implica também o estabelecimento da paz, a afirmação cultural dos povos, o alargamento da participação dos cidadãos e a igualdade crescente de pessoas e comunidades. Princípios que vieram acrescentar-se a outras aquisições da civilização como sejam as exigências de humanidade e respeito mesmo durante as guerras e os conflitos militares. Para já não falar da justiça penal internacional que tem conhecido tão difícil caminho, mas que vem progredindo há alguns anos.

As Nações Unidas e o seu complexo sistema de organismos especializados são o maior exemplo da tendência forte de consolidação de sistemas colectivos de segurança e de diálogo. Muitas outras organizações, globais ou divididas por continentes, assumiram funções idênticas: sempre a cooperação e o diálogo, sempre a procura incessante da paz e sempre o estabelecimento de regras para o convívio internacional. Este complexo sistema está ferido de morte. Não é mais possível confiar na Rússia. Nem sequer, por agora, estabelecer relações formais e contratuais com esse Estado e seus clientes. A lei da força é, a partir de agora, a principal regra de política internacional. O que quer dizer que não é mais possível respeitar e acreditar no que diz ou faz uma das maiores potências mundiais. Um perigo e arriscado confronto substitui-se rapidamente à negociação e à cooperação.

O que se está a passar na Ucrânia, por obra e graça da Rússia governada por Putin, é o mais profundo ataque à civilização nas relações políticas e internacionais que se conhece desde os anos 1930. Com poucas excepções, a Europa tinha vindo a fazer um longo e complexo caminho de consolidação de sistemas civilizados de cooperação, segurança e diálogo. Há muitas décadas que quase não há guerras. Criaram-se sistemas de diálogo, de comunicação e de entendimento. A negociação foi-se tornando o principal instrumento de resolução de conflitos. Tudo isso ruiu, em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia. E também por efeito da barbaridade do ataque perpetrado.

Preparemo-nos para anos de dificuldades imprevistas e a que não estávamos habituados. Assistimos a um recuo da democracia e dos regimes liberais feitos para cidadãos livres. Vivemos tempos em que os sistemas de segurança colectiva e de cooperação internacional para a paz vão ficar em grande parte interrompidos ou ultrapassados. Qualquer que seja o futuro da Ucrânia e da Rússia, nada na Europa e em grande parte do mundo será o que é hoje e tudo leva a crer que seja pior. Por quanto tempo, não sabemos.

Não faltará quem diga que sempre foi assim, que sempre a força reinou nas relações internacionais. Não é verdade. Sempre foi importante, com certeza, mas o sistema mundial de cooperação acabou por ser uma realidade com excepcional força. A paz, o respeito pelos compromissos assumidos e a humanização das relações internacionais adquiriram a sua própria força. Ora, a violência e a desumanidade do ataque russo à Ucrânia, que ficarão impunes por algum tempo, destruíram esse clima criado.

As novas condições de cooperação e o novo clima de relações internacionais criam sistemas medonhos propícios à violência, à desumanidade e ao totalitarismo. Na resolução de conflitos internacionais, volta a estabelecer-se o primado da força militar e da violência, em detrimento da diplomacia.

A conquista territorial é novamente um gesto possível na política internacional. Possível e impune. A guerra voltou a ser um meio de exercício de poder. O bombardeamento de cidades é uma acção exequível. Até as leis da guerra, que se esforçavam por criar um mínimo de dignidade e de humanidade nas situações de conflito, passam a ser desrespeitadas sem escrúpulos e sem sistemas de justiça credíveis. A matança de civis, de gente indefesa e de inocentes vulneráveis (velhos, doentes e crianças) passou a ser um método corrente.

Volta a admitir-se na Europa a criação de áreas de influência das grandes potências que assim adquirem o direito de interferir nas regiões vizinhas e para lá das fronteiras. Os princípios de legitimidade e de representatividade democráticas passam a ter peso menor nas relações internacionais, bastando, a um país ou um Estado, a autoridade e a força para usufruir de direitos e para assegurar a sua presença internacional.

A democracia (como ideia, inspiração, princípio, ideologia ou credo) atrai cada vez menos Estados que deixam gradualmente de invocar ou reclamar um qualquer estatuto democrático para definir a sua presença no mundo e nas relações internacionais. Tempos houve em que ditaduras e outras formas despóticas de organização política julgavam ser necessário, para a sua apresentação internacional, designar-se como, por exemplo, “República Democrática” ou “República Popular”. Esses tempos estão ultrapassados. O poder, a força, a dimensão, o dinheiro e as armas adquirem muito mais importância.

O mundo ocidental terá de fazer escolhas difíceis. Duas coisas parecem certas. Primeira, só a manutenção da democracia garante as liberdades. Segunda, o mundo livre tem de estar preparado.

Público, 23.4.2022

 

sábado, 16 de abril de 2022

Grande Angular - O que correu mal

Algo correu mal dentro de cada um ou vários países europeus. Alguma coisa não está a correr bem na Europa. Muito está a correr mal nas fronteiras do continente. Esta combinação entre causas internas e externas pode ser fatal. Para a paz e a democracia.

Nada justifica o vil ataque da Rússia. Mas é longa a lista do que correu mal na Europa. São erros, ameaças e perigos. Erros das democracias, dos sistemas políticos e dos seus dirigentes. Perigos nas relações internacionais entre a Europa e os seus vizinhos. Ou entre a Europa e todos os seus parceiros tradicionais, de África à China, da Ásia à América Latina. Ameaças vindas sobretudo do exterior, mas também do interior: o império russo renascente, a fábrica chinesa triunfante, o terrorismo islâmico ofensivo e a desigualdade internacional crescente. Não só a democracia está em recuo nos últimos vinte anos, como os perigos para a paz deixaram de ser ameaças: são agora morte, invasão e destruição.

Há anos que os sistemas democráticos entraram em período de crise e risco. Depois de terem superado as ameaças revolucionárias, estão agora sob pressão dos nacionalismos renascentes, cada vez mais afirmativos, cada vez mais abertamente adversários do sistema democrático e da paz social instalada. Políticos e partidos ditos tradicionais, de famílias afirmadas na história europeia (social-democratas, socialistas, comunistas, liberais, democratas cristão, cristãos sociais…) estão em vias de extinção, substituídos por agrupamentos políticos, de esquerda e de direita, com esquerda e direita, sem esquerda nem direita, sem pergaminhos, mas com uma voz nova e, por vezes, atraente. Isto num clima em que a abstenção política eleitoral não cessa de crescer e em que as instituições democráticas ficaram rígidas. Abriu-se um quase irremediável fosso entre democracia e cidadãos, entre política e a sociedade civil.

o que correu mal entre as nações? O fim da Jugoslávia tinha dado sinais de alarme. É verdade que havia quem dissesse que se tratava do último estertor, do fim do velho mundo, do real fim da guerra-fria. Eram as últimas páginas de um mundo que felizmente se extinguia. Mas, para outros, era o início de uma nova era, prenhe de alegrias talvez, mas recheada de perigos e desprovida dos mecanismos de segurança experimentados. Os acontecimentos imediatos sugeririam então que era a primeira perspectiva que se impunha. A capacidade de absorção e acolhimento manifestada pela União Europeia autorizava o optimismo. Um espírito vencedor permitia o orgulho. Mas a voracidade democrática da NATO e da UE era insaciável. E, depois de enormes derrotas tanto dentro de fronteiras como através do mundo, o despotismo russo saía gradualmente da sua letargia.

O que não deu certo? Os Estados europeus deixaram de perceber as nações ou tão só as aspirações nacionais. A nova construção racional da federação europeia, original e inédita, afastava e esquecia as pulsões identitárias, as histórias nacionais, os reflexos de comunidades antigas… Com todas as suas forças ameaçadoras, e muitas são-no deveras, o nacionalismo emergia aqui e ali. Em muitos países europeus, vem do nacionalismo a principal perturbação. Conjugada esta com a desigualdade social crescente, a distante construção democrática e a desordem nas políticas e nas realidades imigrantes, a Europa passou a viver sob ameaça e debaixo de tensão. Sem capacidade para perceber, sem disponibilidade para reconhecer os seus próprios erros, muitos democratas limitam-se a vociferar contra o nacionalismo e a extrema-direita, sem entenderem que apenas olham para os efeitos e não para as causas. Não é a fraqueza europeia que causou a guerra russa. Mas a debilidade europeia e democrática tornou o continente mais vulnerável perante a agressão russa.

Na Europa, a riqueza cresceu. Como nunca na história. Mas a desigualdade social e económica também. Foram-se os tempos gloriosos de crescimento imparável de uma classe média robusta e em expansão. Há hoje, na rica Europa, zonas de pobreza e de fragilidade que se pensava estarem em vias de desaparecimento. Muita gente depende da protecção social, do Estado social como se diz, o que é motivo de orgulho: em qualquer sociedade, um grau elevado de compaixão é sempre positivo. Mas a dependência excessiva não é saudável e é perigosa. Gera novas desigualdades e exige recursos inexistentes. Há, pela Europa fora, bairros degradados, áreas de devastação social, ruínas de decadência urbana, zonas de conflito social e étnico que revelam sobretudo a incapacidade da Europa democrática para lidar com os problemas da imigração, do exílio e da integração de estrangeiros e de minorias. O cosmopolitismo e a extraordinária capacidade de acolhimento manifestada pelos países europeus atingiram, em muitas regiões, o ponto crítico de enormes dificuldades sociais, de tensões inter-raciais e de conflitos de identidade.

O tecido social europeu está em crise. As estruturas democráticas dão sinais de envelhecimento e esclerose. O sistema político tem dificuldades em resistir às pulsões nacionalistas. O equilíbrio colectivo continental foi quebrado pela saída do Reino Unido e sobretudo pela guerra iniciada pela Rússia. A capacidade de defesa da Europa é franzina e dependente. Sem a União Europeia, todos viveríamos pior. A Europa continua a ser objecto de desejo e de orgulho. Mas a saída da Grã-Bretanha da União foi um sinal grave da crise europeia. Nem britânicos nem europeus confessaram que se tratou de um recuo gravíssimo e de um enfraquecimento mútuo indesculpável.

A guerra está aí. Feroz. Selvagem. Com ecos de violência há muitas décadas desaparecidos (ou quase…) da Europa. 

Esta guerra, imposta pela Rússia, nada tem de positivo, nem nos motivos nem nas consequências. Sobretudo para um povo atacado e um país destruído. Mas pode ser que exiba as deficiências da democracia, tornando assim mais urgente a sua renovação ou a sua reinvenção. Talvez tenha como efeito fortalecer a solidariedade europeia. Pode daqui resultar uma ajuda à construção de uma defesa europeia mais forte e autónoma. Talvez a aliança atlântica seja reforçada. É possível que seja renovada e actualizada a luta pela democracia e pela liberdade. Se assim for, honra ao espírito europeu que saberá fazer força das suas derrotas e das suas ameaças!

Público, 16.4.2022

 

sábado, 9 de abril de 2022

Grande Angular - Argumentos e falácias

Com a guerra, a globalização foi interrompida. Anteriormente, com as suas vantagens e os seus inconvenientes, vingara durante décadas. O mundo abriu-se e ficou mais pequeno, isto é, tudo passou a ser mais perto, mais rápido e mais simples. Houve vencedores e derrotados. Talvez os primeiros tenham sido em maior número. O novo comércio mundial e a nova distribuição do trabalho estão na origem de inéditas oportunidades. Foram criadas centenas de milhões de empregos, cresceram cidades com dezenas de milhões de habitantes, aumentou o produto da maior parte dos países de África, Ásia e América Latina. Os principais vencedores foram, como seria de prever, as economias mais avançadas, os países com empresas mais eficientes e as regiões com a melhor ciência. Mas venceram também os países que, com enorme atraso social, souberam transformar-se em “fábricas”, produzindo tudo, para todos e mais barato. Entre estes últimos, avulta a China: sem ceder um milímetro dos poderes ditatoriais, o país abriu as portas ao mais aventureiro dos capitalismos imagináveis.

A Europa ganhou com a globalização. Mas não muito. Não tinha a capacidade americana, nem os trunfos asiáticos. Ficou a meio caminho. Apesar de exibir um sistema social invejável, a Europa foi ficando para trás e viu aumentadas as suas dependências. Com poucas empresas à altura, com estruturas económicas obsoletas e sem força militar independente, a Europa perdeu terreno e força.

Se os Estados Unidos e a China foram os vencedores, pretendendo mesmo criar as bases de um novo planeta bipolar, a maior derrotada foi a Rússia. A sua posição de co-titular do mundo, de rival da América e de potência política indiscutível foi-se esbatendo. A Rússia ficou com o pior do comunismo, um Estado obsoleto, a falta de democracia, a autoridade despótica e um sistema económico arcaico. Mas ficou também, desde o fim do comunismo, com o pior do capitalismo selvagem, a oligarquia predadora e a opacidade económica. A Rússia do século XXI, a mesma que invadiu a Ucrânia e se prepara, caso lho permitam, para ameaçar os países vizinhos, essa Rússia vive ainda num país atrasado e sem capacidade técnica, cultural ou científica. Este país criou um pequeno “Estado dentro do Estado”, que explora os colossais recursos naturais e que trata do espaço, do armamento nuclear e de pouco mais, mas que cava todos os dias o seu próprio subdesenvolvimento. Esta Rússia não tem trunfos para governar o mundo, a não ser a força, a guerra e a bomba nuclear.

A Rússia de Putin procura sobretudo retomar o seu lugar no mundo. Não em partilha com os Estados Unidos, que já não é possível, mas em novo arranjo mundial com a América e a China. A Rússia receia que não haja lugar para três, mas os dirigentes russos já perceberam que se aceitarem a partilha a dois, será para a América e a China, não será nunca mais para a América e a Rússia, como nos velhos tempos. No mesmo processo, a Rússia pode tentar concretizar um velho desejo: dominar ou condicionar a Europa, em todo o caso deixá-la para trás. 

Não se conhecem com rigor os sonhos de Putin, nem as suas ambições pessoais. Mas não se duvida que ele queira tudo e de qualquer modo. Mesmo à bruta e com violência, que parecem ser os métodos de eleição daquele governo e dos regimes comunistas que o antecederam. A verdadeira ambição, para além dos devaneios patrimoniais, não é a de se transformar no novo Czar, como se diz na propaganda, mas sim a de partilhar o governo do mundo, com americanos ou com americanos e chineses. Na certeza de que Rússia e China nunca coexistirão bem. Nem sequer quando ambas eram comunistas!

Há certamente russos notáveis e não se duvida de que vieram daquele país formidáveis contributos para as artes e as letras. Mas o sistema de governo da Rússia, dos Czares, dos comunistas, do actual regime sem nome e destes oligarcas repousou sempre na violência, na autoridade, na ditadura e na opressão. Da escravatura à servidão, das polícias políticas ao Gulag e à mais destemperada Máfia, a Rússia preza-se de ser fiel a si própria.

Uma vitória da Rússia, sob qualquer forma, será a derrota da Europa e da liberdade. Será uma ameaça permanente e insidiosa contra as democracias e contra vários países europeus. Será a renovação da ditadura como sistema tradicional de poder na Rússia. Será com certeza um recuo da globalização e um novo fôlego dos nacionalismos. Seria seguramente a reintrodução da força e da guerra como critério de organização da comunidade internacional. Colocaria indefinidamente todas as instituições internacionais de cooperação e diálogo (saúde, trabalho, educação, cultura, telecomunicações, comércio…) em situação de suspensão impotente. Consistiria no maior recuo dos direitos humanos e dos direitos dos cidadãos que se conhece desde há quase cem anos.

É possível e legítimo que haja, em qualquer parte do mundo, incluindo em Portugal, pessoas que simpatizam com a Rússia, com o seu presidente e o seu regime. É também provável que haja quem veja numa vitória russa uma derrota da democracia ocidental, da América, da Europa e do capitalismo. Bom seria que tais pessoas se exprimissem com liberdade, sem cinismo processual e sem a covardia das falácias jurídicas. Perante a evidência insofismável da agressão russa, dos bombardeamentos aéreos, da invasão por milhares de tanques e blindados russos e da conquista territorial, há quem dê ouvidos às alegações do agressor e sustente que os mortos são vítimas dos próprios ucranianos e que a destruição é o resultado das suas anti-aéreas. 

Diante de cidades arrasadas, de edifícios destruídos, de infra-estruturas desmanteladas e de serviços públicos aniquilados, há quem seja subitamente invadido por escrúpulos jurídicos e exija comissões independentes para analisar a situação no terreno, identificar as vítimas e fazer relatórios sobre as circunstâncias das mortes. Em face de uma guerra que já destruiu grande parte de um país e provocou a fuga de milhões de pessoas, há quem sugira que a culpa e a responsabilidade são dos Estados Unidos e da NATO que cercaram a Rússia. Diante do incómodo causado pela violência bruta e pela agressão cega, há quem tenha a desfaçatez de pedir pensamento, de propor o estudo das causas remotas, de proceder à contextualização, à análise e ao enquadramento, quando na verdade estão a chamar pensamento à mais covarde atitude que consiste em não dizer o que realmente pensam e se escondem atrás do biombo da hipocrisia. Para esta gente, os responsáveis pela destruição da Ucrânia são… os Ucranianos!

Público, 9.4.2022

 

sábado, 2 de abril de 2022

Grande Angular - E a Justiça, Senhores?

 Novo programa de governo. A pandemia e a guerra são urgências indiscutíveis. Mas também há política e sociedade, economia e cultura. Um programa serve para isso mesmo, para o que se deve fazer para além das emergências. A começar pela definição de prioridades, o que ainda não está feito. A coreografia habitual (o verdadeiro desejo dos políticos, as traições previsíveis, a fantasia das sucessões…) tem ocupado o proscénio.

Novo Parlamento. Novo Governo. Maioria absoluta. Estabilidade previsível. Presidente cooperante. Oposições incapazes de criar obstáculos à acção governativa. Tudo se conjugaria para ter esperança numa reforma global ou em melhoramentos profundos na Justiça. Mas não parece ser o caso. A avaliar pelo programa eleitoral do PS, transformado em Programa de Governo, a Justiça será uma vez mais desprezada. Nem sequer figura entre as “Doze Grandes Prioridades”. É realmente estranho que a Justiça não conste dessa lista. A persistente crise da Justiça, considerada por muitos a maior chaga da sociedade e do regime em que vivemos, não é prioritária. Será possível que os dirigentes políticos não se dêem conta do mau estado em que a justiça se encontra? Não percebam a desconfiança essencial dos cidadãos?

No panorama actual, brilham os processos dos políticos, dos corruptos, dos banqueiros atrevidos, dos empresários imaginativos e dos dirigentes de futebol. Todos os dias os cidadãos são estimulados a escandalizar-se com novos atrasos, novas corrupções e novos incidentes judiciais. Agora, a novidade é sermos surpreendidos com lutas e alvoroço envolvendo os magistrados e as instâncias de justiça. As lutas entre funções, magistraturas, tribunais e juízes fazem parte da crónica e até do crime. O processo judicial é ele próprio fonte de opacidade e de desigualdade. Estão em causa os sistemas de distribuição de processos, a transparência dos tribunais superiores e os processos de designação para os conselhos superiores. A instrução e o abuso das garantias e dos recursos contribuem para a crise.

Na retórica política, não faltam declarações sobre a importância da Justiça e a necessidade de a reformar. Mas, chegada a verdade da acção, a tibieza do legislador e dos governos é chocante. Ora, é sabido que a Justiça influencia todas as áreas importantes da vida colectiva. O crime, a vida de cada um, a ordem pública, a tranquilidade e a propriedade dependem da Justiça. A família, o poder paternal, a violência doméstica, a igualdade de género, a saúde pública e a educação dos filhos dependem da Justiça. A honestidade, a honradez na vida colectiva, a transparência da informação, a corrupção e a integridade dos agentes da administração dependem da Justiça. A democracia, a desigualdade social, a igualdade de direitos, a protecção das liberdades, a defesa da privacidade e o respeito pelo indivíduo dependem da Justiça. Até o sistema político, a administração pública e os grandes serviços públicos, a liberdade religiosa e a igualdade racial dependem da Justiça. Ora, em quase todas estas áreas, a Justiça é deficiente e inadequada.

Sabemos, em poucas palavras, que a Justiça é lenta. Injusta. Socialmente desequilibrada. Cara. Parcial. Elitista. Ineficaz. Incompreensível. Complicada. Burocrática. Complacente com a corrupção. Por vezes mesmo ela própria corrupta. Permissiva. Amiga das portas giratórias para os magistrados que circulam entre os tribunais, os gabinetes políticos, as empresas públicas e os órgãos de confiança política, como tão justamente denunciam Maria José Morgado ou Manuel Soares. Toda a gente sabe. Mas o imobilismo é a regra. É difícil encontrar quem, no sistema judicial, na assembleia legislativa e no governo, queira estudar e organizar um movimento de reforma e uma acção de melhoramento profundo.

Verdade é que é raro encontrar quem confie na justiça portuguesa. Há muitos anos, três ou quatro décadas, os inquéritos de opinião e de confiança colocavam os magistrados em primeiro lugar. Antes dos médicos, dos polícias, dos professores, dos jornalistas… E dos deputados, previsivelmente. Nos últimos anos, tudo mudou e as escalas quase se inverteram. Os magistrados vêm muitas vezes em último lugar.

Não valeria a pena que os órgãos de soberania mais responsáveis, Parlamento, Presidente ou Governo, tomassem as iniciativas necessárias a fim de, em poucos anos, mudar a face da justiça? Não seria interessante que as instituições judiciais, os tribunais e os conselhos superiores, as organizações profissionais, a imprensa e as universidades se interessassem por este processo de renovação da justiça? Não seria luminoso tentar responder com verdade às perguntas difíceis? Quais são realmente os obstáculos à mudança na Justiça? Quais são os interesses corporativos, profissionais, políticos e económicos que impedem a reforma da justiça? Quais são os alçapões, as armadilhas e as ciladas do sistema que deliberadamente protegem os poderosos, acarinham os políticos, defendem os corruptos, ajudam os ricos e amparam os criminosos? Por que razões as custas judiciais são elevadas e a Justiça é cara e desigual? Em que é que as “portas giratórias” favorecem o imobilismo e mantém os privilégios? Quais são os factores que favorecem as prescrições e protegem o atraso?

O que é mais urgente? A morosidade ou a impunidade? A ineficácia ou a desigualdade? Por que razões os piores processos, os mais longos, os mais confusos, os mais complacentes com as fugas de informação e com as violações dos segredo de justiça são os casos que envolvem ricos, poderosos, políticos, altos dirigentes da Administração Pública e empresários da banca, do futebol e das obras públicas? Por que razão o alucinante sistema de recursos e garantias favorece sempre os poderosos? Por que razões a lei e o sistema parecem tão frequentemente proteger os criminosos mais do que as vítimas? Por que motivos o poder político persiste em não dar, à Justiça, recursos financeiros, equipamentos e pessoal técnico à altura?

É necessário adaptar a Justiça portuguesa à democracia e à liberdade. À Europa e aos direitos dos cidadãos. À nova sociedade civil e à globalização. Ao capitalismo e à economia de mercado. Ao Estado de protecção social. Ao universo digital. Ano após ano, década após década, a Justiça foi ficando para trás. Não ficou imóvel, com certeza, mas moveu-se sempre de modo insuficiente. No fim de cada ano, no termo de cada legislatura, a Justiça ficou sempre aquém do necessário. E mais injusta.

Público, 2.4.2022