domingo, 29 de setembro de 2019

Grande Angular - Os inimigos da democracia

Os clássicos inimigos da democracia são conhecidos: comunistas, fascistas e populistas de esquerda ou de direita, estes últimos com pretextos comuns, o nacionalismo e a virtude. Podem vir do capitalismo, do sindicato, do regimento e do púlpito, com ajudas várias, da cátedra à imprensa, das polícias às redes sociais. Há muito que se sabe isto.
Os inimigos da democracia percorrem as vias abertas pelos democratas. Aproveitam em seu benefício os erros dos democratas, as suas desatenções, as suas querelas inúteis, a sua volúpia e a sua cobiça. Procuram as falhas dos democratas, o seu egoísmo, o seu narcisismo e a sua ambição desmedida. Estão à espera da incompetência e da covardia dos democratas.
Os inimigos da democracia espreitam atentamente para os corredores da justiça, local onde a democracia se perde tantas vezes. Olham para as contas bancárias dos políticos e dos seus amigos, à procura de movimentos e de sinais. Observam a corrupção, a que faz circular dinheiro, a que branqueia receitas, a que organiza concursos, a que favorece promoções, a que emprega os amigos e a que cobra luvas e comissões pelos negócios de Estado.
Os inimigos da democracia sabem que a corrupção e o nepotismo abrem as portas para as suas aventuras. Estão cientes de que os seus caminhos estão numa justiça que falha, numa polícia que não cumpre e numa administração incompetente. Por isso, espreitam e esperam. Se for possível aproveitar os interstícios da democracia, aproveitam. Mas as suas reais intenções são as de varrer as instituições e tomar conta.
Uma longa observação dos tempos de antena da maior parte dos “pequenos” partidos, os que não têm representação parlamentar, os partidos da fragmentação e do populismo, é utilíssima! Na verdade, uma boa parte desses pequenos partidos são evidentemente inimigos da democracia, usam todos os tiques e clichés, “estamos fartos”, “é preciso acabar com isto”, “é necessária uma vassourada”, “saiam daí para nos deixar governar”, “são todos uma cambada de corruptos”, “são todos iguais”… É com estes desabafos analfabetos que esses senhores julgam comover o eleitorado. Dentro de uma semana, vão desaparecer. Talvez voltem, com o mesmo nome ou outro, não se sabe. Mas deles nada virá. É donde menos se espera que não vem mesmo nada. Os outros, os verdadeiros inimigos da democracia, estão mais calados, por enquanto. Nas arcadas do poder e nos corredores das instituições, esperam e espreitam.
Segundo Ignazio Silone, o americano senhor W ou Duplo-Vê veio à Europa, há umas décadas, com o seu conselheiro político e para os assuntos ideológicos, o Professor Pickup. O senhor W queria tomar o poder nos Estados Unidos, mas não sabia muito bem como. Fez uma tournée na Europa, instalou-se confortavelmente num hotel de Zurique, onde recebia o senhor Thomas, especialista europeu em política e mais conhecido pela alcunha de “O Cínico”. As suas conversas duraram longas horas e muitos dias. São verdadeiras lições que convém recordar. A mensagem essencial que Thomas dá ao Senhor W é simples: ao contrário do que se pensa frequentemente, as democracias não são derrubadas. Ninguém as conquista do exterior. Não morrem por causas alheias. Não são tomadas de assalto. Caem por si próprias. São derrotadas pelos seus próprios responsáveis. “A morte de uma democracia é, o mais das vezes, um suicídio camuflado!”
Não é possível observar ou pensar no episódio de Tancos sem ter em mente este aviso. O assunto merece especial atenção. O caso incomoda a democracia há dois anos. Quase ninguém se portou convenientemente. Um episódio de mera delinquência transformou-se numa das mais graves e sérias provações da democracia portuguesa, pondo em xeque as instituições e a honra de muita gente. Sem poupar as Forças Armadas e os Tribunais. Pior era impossível! São episódios como este que revelam a fragilidade do regime e a fraqueza dos seus dirigentes. Todos passam culpas para os senhores do lado, para os adversários e para quem está abaixo.
Será que as instituições políticas e judiciárias não têm capacidade para resolver a questão de Tancos? Para elucidar a população? Sanear e castigar os responsáveis? Punir a mentira e a irresponsabilidade? Já se percebeu que Tancos conspurcou tudo e todos. Por culpas ou responsabilidades. Por intervenção ou omissão. Por ocultação ou mentira. Dos trafulhas aos bandidos, até ao Governo e à Presidência da República, passando pela Administração Pública, os Magistrados e as Forças Armadas, desconfia-se de toda a gente, parece que ninguém fica de fora. Seria bom que, de facto, todos percebessem que têm alguma responsabilidade, por actos, cumplicidade, encobrimento, omissão, ignorância, ocultação ou indiferença. Como é evidente, o grau de responsabilidade varia muito, conforme o gesto ou a falta dele.
Não quero dizer que Tancos seja o cenotáfio da democracia. Seria exagerado. Mas, se houver um dia uma tragédia, poder-se-á dizer que alguma coisa começou ali, naquela charneca. Tancos acrescenta-se ao BNP, ao BES e ao BCP. À PT, à EDP e aos cimentos. À Face Oculta e à Operação Marquês. Aos incêndios e à Protecção Civil. Aos políticos arguidos e nunca julgados. Aos despachos de arquivamento inexplicáveis.
Diminuem os tempos dos comícios, os berros nas arruadas e os insultos na praça pública. Ainda há berraria inútil e histriónica no Parlamento e nas instituições representativas, por causa da televisão. Mas, nestes domínios, as nossas eleições estão a melhorar, a ficar mais bem-educadas. E os nossos políticos a comportarem-se como pessoas civilizadas ou quase. É bom que assim seja. Só que não chega. No comportamento político e financeiro e nas regras de conduta, há muito que não satisfaz, talvez até cada vez mais.
Em tempos de politica de massas, de redes sociais e de lugares comuns, os regimes autoritários, fascistas, comunistas ou populistas são, como no passado recente, golpes em democracias falhadas, em países onde as revoluções não vingaram e onde a democracia foi capturada.
Não serão brigadas fascistas, regimentos europeus ou destacamentos comunistas que ameaçarão a democracia portuguesa. Nem sequer o capitalismo chinês ou as multinacionais americanas. Quem o fizer, será graças aos políticos portugueses e aos tribunais portugueses. E será por causa da corrupção, do nepotismo e da porta giratória. E da falta de justiça.
Público, 29.9.2019

domingo, 22 de setembro de 2019

Grande Angular - Dúvidas e Dilemas

Dentro de dias, ou poucas semanas, começará uma vida nova. Não será perceptível de imediato. Mas podemos ter a certeza de que algo de novo vai começar, se é que já não começou agora. Há eleições que, por dramáticas e indecisas, são elas próprias os motores das mudanças. Os afrontamentos políticos são por vezes enormes e deles podem resultar verdadeiras convulsões. Os contrastes entre modelos e propostas políticas podem ser tais que umas meras eleições são suficientes para desencadear a mudança. As eleições de Outubro não fazem parte destas categorias. Apesar de os partidos dizerem todos, como devem, que são decisivas, a verdade é que os resultados essenciais estão feitos. Mais ou menos. Podemos não gostar, mas a previsibilidade é às vezes uma virtude democrática.
Acontece que, além dos resultados e da constituição dos órgãos de poder, ficam os problemas de um país e de um povo. Não serão as próximas eleições que resolverão os nossos principais problemas e as nossas grandes questões. Se é que ainda há uns e outras. A verdade é que as eleições se limitam muitas vezes a confirmar. Mas também é certo que, às vezes, anunciam. Depois de duas experiências seguidas, uma de direita e outra de esquerda, ambas com êxito e dominadas pela economia e pela questão da natureza do poder, podemo-nos preparar para um novo período de esclarecimento. Com a Europa e o Ocidente em crise muito séria, sob ameaças militares, comerciais e terroristas, convém que tratemos da casa para enfrentar o mundo.
A grande curiosidade é que as próximas eleições vão deixar o país com dúvidas muito sérias sobre a nossa capacidade de meter mãos à obra e de resolver dilemas.
Estas eleições não permitem escolhas importantes entre políticas, entre obras e entre modelos de vida colectiva. Quem tem escolhas diferentes e propostas originais não tem votos. Quem tem os votos, prefere não ter propostas muito diferentes. Na verdade, estas eleições vão tão só definir quem se vai ocupar do poder a seguir. Com a certeza de que quem vier terá uma grande margem de escolha. De qualquer modo, o que está em causa é importante.
primeira grande dúvida: a esquerda quer ou não a liberdade? Parece pouco, banal ou até mentira, mas não é. Depois de a esquerda democrática, a do PS, se ter libertado das ameaças autoritárias e da tenaz comunista, assistimos a uma permanente oscilação: os socialistas não sabem se preferem o Plano e a direcção superior à liberdade dos indivíduos. Se preferem a certeza da autoridade do Estado à incerteza da liberdade. Quanto à esquerda não democrática, a do PCP e do Bloco, nunca até hoje preferiu a liberdade, sempre mostrou a sua inclinação irredutível pelo colectivo, pelo Partido e pelo Estado. Saberemos, dentro de poucas semanas, se os socialistas escolhem o colectivo ou se preferem a liberdade. Se PCP e Bloco são eles próprios conquistados ou seduzidos pela liberdade, ou se ficam para sempre atávicos e zelosos, à espera de crises que os possam salvar.
segunda dúvida: saber se a direita está disposta e disponível para lutar contra a desigualdade social. Esta é uma das chagas da sociedade portuguesa. A direita gosta sempre do crescimento económico e do mercado. Antes, gostava mais do aconchego do Estado. Hoje, é até capaz de louvar o pensamento liberal, o que não é de todo a sua tradição. A direita democrática vai ao ponto de aceitar as liberdades individuais, mas não revela uma firme disponibilidade para olhar para a desigualdade social, cujas origens políticas, sociais, jurídicas, históricas e culturais parecem inamovíveis. Verdade é que a desigualdade acaba por ser a mais fértil fonte de ameaças à democracia. Com menos desigualdade, viveríamos, sem dúvida, com mais liberdade.
A terceira: será que a direita e a esquerda estão disponíveis para combater pela justiça? Pela igualdade perante a justiça? Pela prontidão da justiça? Pela eficácia da justiça? Pela independência da justiça não só perante o governo, mas também perante o dinheiro, a fama, a comunicação, os partidos e as religiões? Por uma magistratura imune às igrejas e às maçonarias? Será que a esquerda e a direita estão disponíveis para limpar a justiça dos delírios burocráticos e processuais que têm como destino, não os direitos dos cidadãos, mas bem mais as prerrogativas dos magistrados?
A quarta: será possível que o narcisismo chique e a superioridade moral do Bloco se venham a instalar neste pobre país? Ou haverá alguma hipótese de ver essa espécie de snobismo marxista converter-se finalmente à democracia? Continuará o eleitorado a dar o benefício da dúvida a esta moda tão elegante e radical da virtude e da revolução?
A quinta: este modelo de aliança “soft” tem futuro, é a condenação do PCP (como foi noutros países, a começar pela França) ou é a descarga de vitaminas necessárias a mais uma vida? Será que continuamos a ter o privilégio e o exclusivo do mais obsoleto e jurássico partido comunista do mundo? O PS deixar-se-á seduzir por esta versão serôdia do programa comum das esquerdas? Esta aliança trouxe algum benefício para as liberdades?
A sexta: é talvez chegado o tempo de saber se a esquerda e a direita democráticas, isto é, se o PS e o PSD persistem em querer desculpar, fechar os olhos, conviver, aproveitar e promover a corrupção. Permitirão a sobrevivência deste miserável banditismo político e económico que se instalou na democracia portuguesa, nos grandes serviços públicos e nos negócios de Estado? Será que o PS e o PSD, recheados de ligações familiares e de interesses duvidosos, consideram que a corrupção é um modo de viver português e que, como tal, persistirá? Ou que vale a pena lutar e contrariar aquela que pode ser a pior ameaça das liberdades e da democracia? Serão o PS e o PSD capazes de limpar as suas próprias estrebarias?
A sétima: são os Portugueses capazes de romper com o seu pior, o nosso pior, a corrupção, o despotismo e a desigualdade, sem ter de mais uma vez liquidar o passado com violência e intolerância, como fizeram com os mouros, os judeus, os absolutistas, os religiosos, os liberais, os monárquicos, os republicanos, os socialistas, os democratas e os salazaristas? … Uma coisa é certa: romper com todos, sucessiva e repetidamente, proibi-los e expulsá-los, foi a melhor maneira de ficar com todos os seus defeitos, mas também de ficarmos mais pobres. E sem paz.
Público, 22.9.2019

domingo, 15 de setembro de 2019

Grande Angular - Incríveis e Inesquecíveis

Deveríamos ter ficheiros de pérolas, sejam boas ideias, sejam dislates. Pensamentos elevados ou deslizes inacreditáveis. Feitos inesquecíveis ou obras incríveis! Neste fim de legislatura, a poucas semanas de eleições, há momentos inolvidáveis. Aqui ficam, para registo e anedotário.
A propósito de umas dezenas ou talvez centena e meia de pinturas, fotografias e esculturas do património do Estado, a Ministra da Cultura Graça Fonseca foi peremptória: “As obras de arte não estão desaparecidas. Não sabemos é identificar o sítio onde estão”! Ainda hoje não sabemos. Mas podemos dormir descansados: não estão desaparecidas! Disse ela.
Como se sabe, os serviços públicos em geral, os de atendimento ao cidadão em particular, entraram em colapso. Na maior parte dos casos, das consultas médicas aos passaportes, da Segurança Social às Escolas, os prazos esticam e não são cumpridos, as filas de espera arrastam-se. Sensível ao problema, depois de ter estudado e de se ter informado junto dos seus serviços, a Secretária de Estado da Justiça Anabela Pedroso disse a verdade e explicou o essencial do problema: “As bichas para obter cartões de cidadão existem por culpa dos Portugueses que vão à mesma hora, aos mesmos locais e ainda por cima antes da hora de abertura das lojas”! Podemos ter a certeza de que a autora de tão brilhante e certeira explicação pensa também que é necessária uma reforma de mentalidades!
A situação na saúde pública é, como se sabe, difícil. Escasseiam os meios, faltam médicos e enfermeiros, muitos profissionais são atraídos por ofertas de emprego no privado ou no estrangeiro, a desorganização do sector é crónica e a redução das horas de serviço foi fatal. Houve fricções e conflitos. E greves, especialmente de enfermeiros. No Verão, as maternidades e outros serviços viram-se na obrigação de recusar ou transferir doentes. Depois de séria averiguação, a Ministra da Saúde Marta Temido tranquilizou os cidadãos: “Nenhuma maternidade dos hospitais de Lisboa vai fechar durante o Verão. O que vai acontecer é que uma em cada quatro vai ficar rotativamente desactivada durante um período”. Um primor de trompe-l’oeil.
AJustiça é fonte inesgotável de surpresas. Sócrates e o Grupo Espírito Santo também. Mas, por vezes, tem-se a sensação de que as surpresas ultrapassam os limites do aceitável. A ponto de não se perceber por que razões ninguém, na organização judiciária, no Ministério Público, no legislador, no executivo ou até na Presidência da República, é capaz de contrariar, por obras ou por palavras, certas decisões e alguns procedimentos. O último em data diz respeito ao Juiz Rui Rangel. Sob suspeita de vários crimes, incluindo de corrupção, sob averiguação e à espera de pronúncia há mais de um ano, o Juiz da Relação foi suspenso durante longo período. Como nada se resolveu entretanto, o Juiz regressou às suas funções e já recebeu vários processos, ou antes, já lhe couberam em sorteio processos delicados, entre os quais dois que envolvem corrupção, o da “Máfia do Sangue”, com a Octapharma, empresa que deu emprego a José Sócrates; e o da “Operação Marquês”, em curso há vários anos e que visa quase duas dezenas de pessoas, entre as quais os dirigentes do Grupo Espírito Santo e José Sócrates. Este caso é mais um golpe na Justiça com incalculáveis consequências.
nova comissão Europeia, que ainda não foi aprovada pelo Parlamento, começou muito bem. Paritária, como mandam a moda e as regras do dia. E com inovações na designação dos pelouros que nos deixam a sonhar. Não fosse sinal de complacência, teríamos vontade de rir. Pensando em todos os que não tiveram oportunidade de ver estas pérolas, relembro os títulos de uma dezena deles: Comissária da Protecção do Modo de Vida Europeu, Comissário da Economia ao Serviço das Pessoas (ou que Funcione para Todos), Comissária da Demografia e da Democracia, Comissário para as Relações Interinstitucionais e Prospectivas, Comissário para as Parcerias Internacionais, Comissário da Gestão de Crises, Comissário da Política de Vizinhança e Alargamento, Comissária da Igualdade, Comissária para a Coesão e Reformas e Comissária dos Valores e da Transparência. Alguém citou, a este propósito, o Ministério dos “Silly Walks” dos Monthy Pithon: tem absolutamente razão!
Como é evidente, todos os comissários europeus são importantes. E todos os países europeus têm razões para se orgulhar dos seus comissários. Não excessivamente, pois cada país tem um, mas o suficiente para se sentir fazer parte do clube. Durante ou no fim do mandato, logo se verá se desempenham bem as suas funções. As esperanças em Elisa Ferreira são justificadas, dado que é pessoa com valioso currículo. Mas os Portugueses em geral, incluindo notáveis políticos, não se coíbem de dizer que a “nossa” Comissária tem um pelouro formidável, que a “nossa “ vai poder ser favorável a Portugal e que a “nossa” nos vai ajudar! É tão saloio afirmar essas coisas! A “nossa” será uma excelente comissária, cumprirá o seu dever e distinguir-se-á na Europa justamente se for capaz de exercer as suas funções com isenção e sem preferência pelo seu país de origem, tal como a lei exige, os costumes impõem e a honra aconselha!
Rui Rio não quer ser deputado! Quer é ser Primeiro-ministro! Percebe-se a segunda parte, não se entende a primeira. Não quer ser deputado? Por que concorre ou se candidata? Como em Portugal não é necessário ser deputado para ser Primeiro-ministro, podia perfeitamente ficar de fora. Mas não, resignado, acabou por aceitar. Foi o coroar de uma campanha estranha. Desvalorizou as eleições, garantindo que tudo o que se diz em campanha não é para ser levado a sério! Deveria querer referir-se aos adversários, mas, evidentemente, ficou incluído. Na tentativa de se mostrar honesto e racional, virtudes louváveis, desmontou a argumentação eleitoral, minimizou os programas e desdenhou quem anda em campanha! Dia após dia, contra ventos já desfavoráveis e em circunstâncias difíceis, Rui Rio deu o golpe de misericórdia no seu partido.
Também incrível e inesquecível, não sabemos ainda se pelas boas ou pelas más razões, Jerónimo de Sousa, secretário-geral do Partido Comunista Português, fez, na televisão, um inédito elogio ao Parlamento, à Assembleia da República e aos deputados. Citando expressamente as funções dos deputados como representante do povo, louvou e sublinhou a responsabilidade do deputado no exercício das suas funções. Sinceras ou não, é o que veremos com o tempo. Mas estas declarações quase fazem esquecer aqueloutras de Catarina Martins, igualmente inesquecíveis, segundo as quais o Bloco de Esquerda era social-democrata.
Público, 15.9.2019

domingo, 8 de setembro de 2019

Grande Angular - Servir o Povo, servir a Democracia

Como é sabido, as razões pelas quais um cidadão vota e escolhe os seus eleitos são muito variadas. Instinto de classe, cor da camisola ou rotina atávica são algumas delas. Também há quem se queira vingar e castigar quem está no poder. Ou quem queira prejudicar e votar contra. Há quem vote na esperança de ter emprego. Como há quem escolha pela cara, pelo nome e pela personalidade. E certamente outras razões. Mas podemos ter a certeza de que, em tempos de democracia de massas, de privilégio da imagem, de promoção de produto e de propaganda desenfreada, o conteúdo das políticas é um dos menores critérios de escolha. Muitas vezes, o nome é o mais importante. Vota-se em alguém, pessoa ou partido, porque é alguém que queremos que governe. E não há mal nisso.
Os debates públicos ou televisivos estão praticamente mortos, perde-se dinheiro e tempo, os políticos estão ali com mais cuidados e receios do que com intenções e ideias. Todos querem mais ou menos tudo e o seu contrário. Naquelas dezenas de minutos automáticas e cronometradas, sem conteúdo nem improviso, com pouca sinceridade e muito fingimento, os chefes marcam pontos se não fizerem asneira. Mais do que a democracia, a honra e a competência, são as agências de comunicação que tratam das eleições e das campanhas.
Estas próximas eleições são muito interessantes. E decisivas. Como todas as outras… Os candidatos pensam que se trata de eleições essenciais. Os cidadãos que votam, cerca de metade, também. A outra metade nem se preocupa. Na verdade, são eleições que vão ditar o destino das alianças das esquerdas e das direitas. Assim como a capacidade que o nosso país tem para enfrentar graves problemas imediatos da União Europeia, da democracia, da aliança ocidental, do endividamento e do crescimento económico. Mas, pela sua urgência e pelas suas consequências na vida dos cidadãos, a grande questão actual é a dos serviços públicos. De todos os serviços e de todo o atendimento dos cidadãos pelas estruturas da Administração.
Os serviços públicos têm vindo, há quase uma década, a decair de modo sustentado. Como sempre, nestas coisas, as causas são várias. A dívida do Estado contribuiu de modo decisivo. Demagogia política e corrupção ajudaram. A atracção de profissionais pelo estrangeiro ou pelos sectores privados aumentou de modo significativo. A primeira fase da política de austeridade, com assistência internacional, provocou enorme desgaste. A segunda fase de austeridade, já sem assistência e com algum crescimento, não deixou de criar dificuldades e sobretudo de impedir a recuperação da qualidade e da eficiência. A incompetência de alguns dirigentes políticos e mesmo de altos funcionários de certas administrações ajudou ao declínio. As medidas de reversão parcial de rendimentos poderão ter aliviado a situação económica de bom número de pessoas, mas desviou recursos. A redução dos horários de trabalho de algumas categorias de funcionários, em particular de médicos e enfermeiros, criou uma situação de real carência, não compensada pelo recrutamento necessário de uns milhares de funcionários.
Ao lado de êxitos e melhoramentos indiscutíveis, assim como de bastante sorte com a conjuntura europeia, o presente governo não conseguiu melhorar a qualidade e a eficiência dos serviços públicos. Perdeu muito tempo a queixar-se do governo anterior, mas não conseguiu fazer melhor. Interessou-se pela política pura, com resultados positivos, mas não teve engenho nem competência para acudir aos serviços públicos, à saúde, à educação, à segurança social, ao atendimento público em serviços notariais e de registo e a toda uma longa série de serviços para os quais as filas de espera são hoje uma realidade generalizada.
Em número, comprimento e duração crescentes, as filas de espera constituem supostamente um mecanismo igualitário, isto é, colocam todas as pessoas em condições iguais perante o serviço ou a instituição. Sabemos que é uma expectativa errada. As filas de espera prejudicam toda a gente, muito especialmente quem trabalha, quem vive longe, quem tem pouca instrução, quem não conhece “pessoas” e quem não sabe os circuitos. Mais ainda: hoje, as posições em fila de espera são negócios. Compram-se e vendem-se senhas para obtenção de números. Quem pode pagar a secretários, empregados, criadas, dependentes em geral e desempregados em particular consegue evidentemente lugar na fila mais depressa e em melhores condições. Como se sabe, as filas de espera para a maior parte dos serviços públicos são hoje frequentadas desde muito cedo, às primeiras horas da madrugada, seja por quem precisa, seja por quem vai buscar senhas para vender. Mais do que da ineficiência, as filas de espera são hoje o pior retrato da desigualdade.
Pode pensar-se que existem, socialmente, questões muito mais importantes. Mas é difícil ver quais. As dificuldades dos serviços públicos e a ineficácia do atendimento ao público são actualmente factores de desigualdade social e de opressão do mais fraco. Ter acesso rápido, pronto e eficiente aos serviços de saúde, de educação, de segurança social, de licenciamento, de identidade e outros é um critério de qualidade da democracia. Ser atendido de modo simples e humano pelos serviços públicos significa muitas vezes ter meios de defesa da sua dignidade.
O problema é que governos e partidos têm geralmente preferência por tratar do acesso e do atendimento de grupos profissionais concretos. Ou de empresas e instituições com poderes e importância. Mais negativas ainda são as políticas e as medidas orientadas para resolver problemas de quem já tem força ou privilégios. Um governo que responde a sindicatos e confederações, em detrimento das populações, é um governo que, por razões eleitorais ou de interesses, prefere as corporações, em prejuízo dos cidadãos. Um governo que deixa deteriorar os serviços públicos, o atendimento e a resposta a todos os cidadãos está a aumentar a desigualdade social e a agravar a condição do mais fraco. Um governo que se interessa mais e ouve melhor os funcionários e a Administração e que não resiste a quem se manifesta está a contribuir para a desigualdade social. Um governo que escolhe as políticas de classe e de corporações lesa os cidadãos, sobretudo os mais fracos. Um governo que privilegia quem vocifera prejudica quem sofre.
Público, 8.9.2019

domingo, 1 de setembro de 2019

Grande Angular - Três Museus

Há décadas que intelectuais, artistas, políticos e militares, com relevo para historiadores e geógrafos, se queixam da ausência de um Museu dos Descobrimentos. Durante anos, o tema não era controverso, “apenas” faltavam edifícios à altura, material para lá colocar, orçamento, oportunidade e, como se diz agora, vontade política. Com um programa próprio, o belo Museu da Marinha está longe de satisfazer. O Padrão não cumpre os objectivos. A maravilhosa Torre de Belém e os imponentes Jerónimos não se destinam a museu, apesar de poderem dar uma ajuda. A Casa da Cordoaria está para ali à espera. Esquerda e direita comungavam na mesma intenção. Os nacionalistas pensavam mais em padrões, pelourinhos, caravelas, expansão da fé e glórias militares. Os mais materialistas cogitavam em mercados, matérias-primas, colonização e escravatura.
Hoje, a coisa fia mais fino. Há séria polémica. Os antigos defensores da liberdade transformaram-se em polícias e inquisidores. Descobrimentos e Descobertas deixaram de ser admitidos pelos bem pensantes, em detrimento de Colonização e Escravatura. O suposto ponto de vista das vítimas substituiu o alegado ponto de vista dos opressores. O lado negro das Descobertas foi transformado em lado primordial. A existir, o Museu é cada vez mais dos Escravos e cada vez menos dos Descobrimentos.
À ideologia dominante não ocorre que esse Museu deva ser de tudo o que explica, acontece e sucede aos Descobrimentos: de Camões à ciência, do colonialismo à globalização e do comércio à escravatura. Nada deve faltar a um Museu dos Descobrimentos, que recorda, estuda e comemora as mais importantes páginas da história de Portugal e que, como as histórias de todos os países, têm os seus lados negros e violentos, à mistura com empreendimentos excepcionais. Mas há muita gente que quer condicionar o pensamento contemporâneo, dominar a cultura actual, limitar as interpretações da história, determinar o que se deve estudar e regular o modo como se deve pensar.
Uns dizem com ar sério que não se deve fazer o Museu dos Descobrimentos, mas sim o da Escravatura ou do Colonialismo. A verdade é que, se existissem os dois, teríamos um país tolerante. Se existisse só um com os dois lados da questão, teríamos um país tolerante e inteligente. Se existir um em vez do outro, teremos um país intolerante e estúpido. Se não existir nenhum, como agora, então teremos o país habitual, envergonhado e ignorante.
Outros sugerem a construção de um Memorial dedicado à escravatura. Privado, da sociedade civil, da autarquia ou do Estado, qualquer solução pode ser boa e compreensível, desde que não seja alternativa fanática. O que se tem visto por aí com Museus e Memoriais do Antifascismo, da Resistência, da Liberdade e da República, não revela bons pergaminhos. O antifascismo e o anti-racismo têm sido consagrados em Portugal como sinónimos de liberdade e de democracia, o que não é verdade.
Negar o Ciclo dos Descobrimentos ou até o termo vulgar que ficou para a história é tão prepotente quanto negar a cobiça que coexistiu com esses descobrimentos. O que os marxistas contemporâneos, os anti-racistas com programa, os intelectuais do Bloco de Esquerda, os idiotas úteis e os correctíssimos cientistas de tantas disciplinas pretendem fazer com a cultura e a história é igual ao que fizeram os anteriores beatos, fascistas e sacerdotes do poder. São igualmente facciosos, intolerantes e fanáticos.
polémica dos museus foi recentemente enriquecida por uma nova história. A do Museu Salazar ou do Estado Novo. A ideia surgiu nas cabeças de familiares, de habitantes de Santa Comba e de Vereadores do mesmo município. Não se imagina o que será, dada a ausência de objectos interessantes. A maior parte do acervo do ditador ficou nos arquivos da Presidência de Conselho de Ministros, visto o senhor confundir intimamente a sua vida com a do seu país. Tal documentação, de grande valor, habita hoje, e muito bem, a Torre do Tombo. Mas tudo parece indicar que alguns munícipes querem explorar o turismo e as fontes de interesse daquele pobre concelho. Um Vereador chegou a dizer que o Museu Salazar era importante para a “sustentabilidade e a atractividade” do concelho!
Se a ideia, o trabalho, os custos e a responsabilidade são dos familiares, não se vê razão válida para impedir esse museu, tal como pretendem tantos peticionários indignados. Se esses esforços forem da Câmara, também não se vê argumento para impedir a obra, desde que haja democracia na decisão, o que é fácil obter por intermédio da vereação e da assembleia.
Mas o mundo é como é. Na praça pública, com argumentos pobres, multiplicam-se os pedidos para proibir esse museu. Proibir o Museu Salazar, tal como ele proibiu tantos? É essa a diferença entre os dois regimes, os que ele proibiu proíbem-no agora? O Estado democrático não deve financiar o Museu Salazar, mas também não deve proibi-lo. O Estado democrático não pode tratar Salazar tal como ele tratou a democracia: proibindo-a! Nós não podemos tratar Salazar tal como ele nos tratou a nós!
O Estado democrático pode financiar museus que tenham a liberdade como valor. Tal como pode financiar instituições museológicas relativas à independência nacional, aos feitos militares, às batalhas pela independência, à luta contra os opressores estrangeiros (mouros, franceses ou espanhóis, por exemplo), aos descobrimentos, à colonização, à monarquia ou à República. Como pode organizar instituições dedicadas ao estudo de fenómenos que são hoje questionados, como a Inquisição, a expulsão de Judeus, a escravatura, o encerramento das ordens e dos mosteiros, a expulsão dos religiosos, a censura ou a polícia política. Mas não faz sentido o Estado democrático apoiar iniciativas destinadas a louvar quem oprimiu a liberdade e quem lutou contra a democracia. Assim como não faz sentido que o Estado democrático proíba os privados, as pessoas e outras comunidades de festejar o que quiserem, desde que sem apoio do Estado.
O debate público sobre a criação de novos museus é revelador do estado de espírito dos povos e da sociedade. Mas temos obrigação de conhecer um pouco melhor a tentação totalitária que espreita em cada esquina. Sabemos que os museus podem não ser neutros. Que pode haver contrabando político e ideológico em centros de interpretação. Que o patriotismo pode esconder vícios e mitos nefastos. E que em nome da liberdade também se mata, oprime e proíbe. Como sabemos que em nome de Deus e da Pátria se cometeram inúmeros crimes. Tantos quantos foram cometidos em nome do mercado e da fortuna. Ou em nome da liberdade e da igualdade!
Público, 1.9.2019