Dentro de dias, ou poucas semanas, começará uma vida nova. Não será perceptível de imediato. Mas podemos ter a certeza de que algo de novo vai começar, se é que já não começou agora. Há eleições que, por dramáticas e indecisas, são elas próprias os motores das mudanças. Os afrontamentos políticos são por vezes enormes e deles podem resultar verdadeiras convulsões. Os contrastes entre modelos e propostas políticas podem ser tais que umas meras eleições são suficientes para desencadear a mudança. As eleições de Outubro não fazem parte destas categorias. Apesar de os partidos dizerem todos, como devem, que são decisivas, a verdade é que os resultados essenciais estão feitos. Mais ou menos. Podemos não gostar, mas a previsibilidade é às vezes uma virtude democrática.
Acontece que, além dos resultados e da constituição dos órgãos de poder, ficam os problemas de um país e de um povo. Não serão as próximas eleições que resolverão os nossos principais problemas e as nossas grandes questões. Se é que ainda há uns e outras. A verdade é que as eleições se limitam muitas vezes a confirmar. Mas também é certo que, às vezes, anunciam. Depois de duas experiências seguidas, uma de direita e outra de esquerda, ambas com êxito e dominadas pela economia e pela questão da natureza do poder, podemo-nos preparar para um novo período de esclarecimento. Com a Europa e o Ocidente em crise muito séria, sob ameaças militares, comerciais e terroristas, convém que tratemos da casa para enfrentar o mundo.
A grande curiosidade é que as próximas eleições vão deixar o país com dúvidas muito sérias sobre a nossa capacidade de meter mãos à obra e de resolver dilemas.
Estas eleições não permitem escolhas importantes entre políticas, entre obras e entre modelos de vida colectiva. Quem tem escolhas diferentes e propostas originais não tem votos. Quem tem os votos, prefere não ter propostas muito diferentes. Na verdade, estas eleições vão tão só definir quem se vai ocupar do poder a seguir. Com a certeza de que quem vier terá uma grande margem de escolha. De qualquer modo, o que está em causa é importante.
A primeira grande dúvida: a esquerda quer ou não a liberdade? Parece pouco, banal ou até mentira, mas não é. Depois de a esquerda democrática, a do PS, se ter libertado das ameaças autoritárias e da tenaz comunista, assistimos a uma permanente oscilação: os socialistas não sabem se preferem o Plano e a direcção superior à liberdade dos indivíduos. Se preferem a certeza da autoridade do Estado à incerteza da liberdade. Quanto à esquerda não democrática, a do PCP e do Bloco, nunca até hoje preferiu a liberdade, sempre mostrou a sua inclinação irredutível pelo colectivo, pelo Partido e pelo Estado. Saberemos, dentro de poucas semanas, se os socialistas escolhem o colectivo ou se preferem a liberdade. Se PCP e Bloco são eles próprios conquistados ou seduzidos pela liberdade, ou se ficam para sempre atávicos e zelosos, à espera de crises que os possam salvar.
A segunda dúvida: saber se a direita está disposta e disponível para lutar contra a desigualdade social. Esta é uma das chagas da sociedade portuguesa. A direita gosta sempre do crescimento económico e do mercado. Antes, gostava mais do aconchego do Estado. Hoje, é até capaz de louvar o pensamento liberal, o que não é de todo a sua tradição. A direita democrática vai ao ponto de aceitar as liberdades individuais, mas não revela uma firme disponibilidade para olhar para a desigualdade social, cujas origens políticas, sociais, jurídicas, históricas e culturais parecem inamovíveis. Verdade é que a desigualdade acaba por ser a mais fértil fonte de ameaças à democracia. Com menos desigualdade, viveríamos, sem dúvida, com mais liberdade.
A terceira: será que a direita e a esquerda estão disponíveis para combater pela justiça? Pela igualdade perante a justiça? Pela prontidão da justiça? Pela eficácia da justiça? Pela independência da justiça não só perante o governo, mas também perante o dinheiro, a fama, a comunicação, os partidos e as religiões? Por uma magistratura imune às igrejas e às maçonarias? Será que a esquerda e a direita estão disponíveis para limpar a justiça dos delírios burocráticos e processuais que têm como destino, não os direitos dos cidadãos, mas bem mais as prerrogativas dos magistrados?
A quarta: será possível que o narcisismo chique e a superioridade moral do Bloco se venham a instalar neste pobre país? Ou haverá alguma hipótese de ver essa espécie de snobismo marxista converter-se finalmente à democracia? Continuará o eleitorado a dar o benefício da dúvida a esta moda tão elegante e radical da virtude e da revolução?
A quinta: este modelo de aliança “soft” tem futuro, é a condenação do PCP (como foi noutros países, a começar pela França) ou é a descarga de vitaminas necessárias a mais uma vida? Será que continuamos a ter o privilégio e o exclusivo do mais obsoleto e jurássico partido comunista do mundo? O PS deixar-se-á seduzir por esta versão serôdia do programa comum das esquerdas? Esta aliança trouxe algum benefício para as liberdades?
A sexta: é talvez chegado o tempo de saber se a esquerda e a direita democráticas, isto é, se o PS e o PSD persistem em querer desculpar, fechar os olhos, conviver, aproveitar e promover a corrupção. Permitirão a sobrevivência deste miserável banditismo político e económico que se instalou na democracia portuguesa, nos grandes serviços públicos e nos negócios de Estado? Será que o PS e o PSD, recheados de ligações familiares e de interesses duvidosos, consideram que a corrupção é um modo de viver português e que, como tal, persistirá? Ou que vale a pena lutar e contrariar aquela que pode ser a pior ameaça das liberdades e da democracia? Serão o PS e o PSD capazes de limpar as suas próprias estrebarias?
A sétima: são os Portugueses capazes de romper com o seu pior, o nosso pior, a corrupção, o despotismo e a desigualdade, sem ter de mais uma vez liquidar o passado com violência e intolerância, como fizeram com os mouros, os judeus, os absolutistas, os religiosos, os liberais, os monárquicos, os republicanos, os socialistas, os democratas e os salazaristas? … Uma coisa é certa: romper com todos, sucessiva e repetidamente, proibi-los e expulsá-los, foi a melhor maneira de ficar com todos os seus defeitos, mas também de ficarmos mais pobres. E sem paz.
Público, 22.9.2019
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