quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Luz

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Uma bela mancha de terrenos preparados para uma nova vinha. À volta, vêem-se os mortórios. (2007).

sábado, 20 de setembro de 2008

Muzak...

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AS FESTAS DE NATAL E DE FIM DE ANO são sempre um ponto alto numa das misérias mais nefastas dos séculos XX e XXI: o barulho! Televisões, rádios, buzinas de carros, altifalantes nas ruas, árvores de Natal sonorizadas, foguetes, apitos de toda a espécie: as forças do mundo unem-se neste propósito desumano e incompreensível que é o de fazer barulho. Como se este fosse uma expressão da alegria, um sinal de felicidade ou um sintoma de satisfação. Como se os decibéis fossem a medida exacta do bem-estar! Não há canto e recanto que escape. Casas particulares, comércios, ruas, alto das montanhas, monte alentejano e escarpa duriense: em todo o sítio chega o barulho da festa, a estridente manifestação de que alguém está vivo e pretende assinalar a todos a sua condição. Ainda não percebi exactamente se as pessoas têm medo de passar desapercebidas, se querem afugentar o diabo que trazem nelas ou se simplesmente querem dar nas vistas. Uma coisa é certa: fazem barulho. Ou não se importam que outros o façam. Tem-se a impressão de que um indivíduo tem receio da solidão e do silêncio. Que já não quer ouvir os ruídos naturais da vida, nem sequer ser ouvido. Que a própria voz humana é incómoda.
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Terminadas as festas, nasce a esperança de reencontrar um pouco de silêncio e recato. Mas as ilusões morrem depressa. É possível que o volume de som baixe ligeiramente, mas a verdade é que o barulho se mantém. Veio para ficar. Há algumas décadas, instalou-se. Todos os anos aumenta. Todos os meses se diversifica. Todos os dias encontra novas formas de demonstração e uso. Entra-se num autocarro ou no comboio: há música. Sobe-se num elevador público, desce-se a um estacionamento subterrâneo: há música. Entra-se num avião ou numa sala de cinema: há música. Até em jardins públicos, a música brota dos altifalantes pendurados nas árvores. Música aparentemente doce, música aos berros, música estridente, música suave para atrair ao consumo, música agressiva para fazer as pessoas esquecer sabe-se lá bem o quê, música envolvente, mas música, sempre música. Música empacotada, música contínua sem fim, música indistinta, música feita de sortidos americanos e pots pourris das Caraíbas, música russa ao ritmo da Pigalle, mas música, sempre música. Telefona-se para um serviço, uma repartição, um banco: enquanto procuram ou se espera, enquanto se vai ver o dossier ou se pede esclarecimento ao computador, o incauto cliente leva com música. Fado ou guitarra. Orquestra ou bateria. Jazz ou valsa, tudo serve. Com relevo para os mais usados: “As quatro estações”, “Eine kleine Nachtmusik” e “Para Elisa”.
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Nos restaurantes, cafés e bares, é um martírio. Televisões sempre abertas, aos berros, com desporto e telenovelas, talk shows ou a meteorologia. Rádios sempre no máximo, com relatos de futebol, notícias ou simplesmente música. A partir das dez horas da noite, mais ou menos, o volume de som aumenta, pois a gerência quer correr com os comensais, para mudar de turno ou para fechar as portas sem pagar horas extraordinárias. Esse gesto leva as pessoas a falar mais alto. Ao mesmo tempo, o vinho bebido anima os clientes, que se excitam cada vez mais a falar. Como os vizinhos falam alto e a música já está aos gritos, todos se preparam para falar com cada vez mais energia. Nos centros comerciais, há música geral, mas cada loja, cada armazém, acrescenta a sua. Até em casas privadas, é fácil encontrar televisões ligadas todo o dia e aparelhagens em ruído perpétuo.
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Recentemente, os “Walkman” primeiro, os “iPod” depois, permitiram algum optimismo: com a música individual, talvez a ambiental desaparecesse ou fosse considerada obsoleta. Começámos a ver, com algum encanto, uns seres estranhos a sacudir a cabeça e a tremer os braços, com as orelhas devidamente equipadas com auscultadores. Raramente os vizinhos eram incomodados por aquelas extravagantes estridências. Infelizmente, os resultados não foram bons. O barulho individual veio acrescentar-se ao colectivo.
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Há uns anos, uma empresa americana chamada Muzak especializou-se em produzir pacotes de música. Organizava a sua mercadoria, com apoio de psicólogos e outros especialistas, de acordo com os locais onde a música iria ser ouvida. Fábricas, escritórios, centros comerciais, cafés, discotecas, aeroportos, elevadores, ruas, boutiques, aviões, comboios ou serviços públicos: para cada caso havia uma solução. Chegou a fazer-se música empacotada para que as galinhas pusessem mais ovos e as vacas dessem mais leite. Foi estabelecida a certeza de que a música fazia os consumidores comprar mais. Até se acreditou em que, nos hospitais, os pacientes curavam mais depressa, desde que adequadamente embalados. Milhares de empreendedores imitaram esta pioneira e o termo “Muzak” passou a designar genericamente esta nova praga urbana. Após uma ou duas décadas de pandemia, começaram a surgir as reacções. Gente que não gostava de música em permanência, pessoas que desejam falar e ser ouvidas e indivíduos que prezam o silêncio ousaram manifestar a sua repulsa por esta doença. Em países civilizados, na Suécia e em Inglaterra, já é possível adquirir nas livrarias e nos quiosques guias de restaurantes, de hotéis, de comboios e de comércios sem “Muzak” e sem televisões abertas. Começa a ser de bom-tom apreciar o silêncio. Nalgumas elites, o sinal já foi dado. Dentro de alguns anos, as classes médias, os intelectuais e as profissões liberais começarão a dizer que o barulho é próprio do povo, que a música empacotada é possidónia e que o silêncio é chique.
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O futuro é fácil de adivinhar. Dentro de poucos anos, os movimentos ecológicos, actualmente tão distraídos diante dos malefícios do barulho, vão descobrir que é necessário “colocar o barulho na agenda política”. Ao mesmo tempo, o Serviço Nacional de Saúde perceberá que gasta milhões de euros com doenças, sequelas e traumas provocados, directa ou indirectamente, pelo excesso de barulho. Por outro lado, as classes ilustradas, logo seguidas pelos imitadores habituais, tenderão a detestar o barulho e a mostrar que o silêncio as distingue do povo. Começará então a campanha contra o ruído. Um dia, o governo fará as contas e perceberá que o silêncio pode ser eleitoralmente vantajoso. Em conjunto, estas forças poderosas desviarão as suas armas contra o barulho. Começarão a surgir benefícios fiscais para o silêncio, salas reservadas para quem quiser fazer ruído e restaurantes ou comércios “music free”. Os discos pagarão taxas e os altifalantes impostos especiais. Nos automóveis, os rádios serão condicionados ou proibidos. As buzinas serão substituídas por sinais luminosos. A própria voz humana poderá ser taxada. Nesse dia, não tão longe de nós quanto se possa pensar, lá terão os defensores da liberdade de lutar por algo que sempre detestaram, o barulho, a música empacotada e as televisões aos berros. Triste sina!

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«Retrato da Semana» - «Público» de 7 de Janeiro de 2007

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Luz - Homens aos cestos

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Depois de despejadas as uvas nos lagares, os homens regressam às vinhas para recomeçar. Cada cesto tinha entre 60 e 70 quilos de uvas. A subir e a descer os montes e os socalcos, a caminhar em cima das pedras de xisto a arder, tudo isto com 30 ou 40 graus de calor e durante alguns quilómetros, era um enorme esforço! À noite, estes mesmos homens ainda iam fazer duas ou três horas de pisa de uvas, a pé, nos lagares. Todas estas imagens passaram para a literatura turística, sendo geralmente estes homens representados com um imenso sorriso! Pareciam levitar de prazer e folclore! Na verdade, tratava-se de um dos mais penosos trabalhos que se fez na agricultura de qualquer parte do mundo! Hoje, já quase não se repete esta cena. Os “cestos” são muitas vezes de plástico e com menos de trinta quilos. Entre as vinhas, tractores ou camionetas esperam pelas caixas, já não é necessário aquele calvário! (1979).

sábado, 13 de setembro de 2008

Luz - Torres do World Trade Centre, Nova Iorque

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Vi-as pela primeira vez no início dos anos setenta. Voltei lá várias vezes. Eram magníficas de leveza e transparência. No terraço de uma delas, passei horas a ver a cidade. O seu derrube foi, em si, um acto criminoso. Sem falar, evidentemente, nas pessoas e no terror. Fez agora sete anos! Estas imagens datam de 1978. A enorme tapeçaria do Miró estava exposta à entrada de uma das torres. As suas cores davam alegria a todo o edifício. Ao contrário do que se diz, nunca pensei que estas torres fossem o símbolo e o orgulho do capitalismo. Essas características vão muito melhor com outros edifícios, em especial a torre da Chrysler. Se estas poderiam simbolizar alguma coisa, na sua pureza de linhas e formas, era muito mais a ciência e a tecnologia modernas.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Luz - Bairro CV 4

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É conhecido como o bairro da Cruz Vermelha, fica para os lados do Lumiar. Está em construção, mesmo ao pé de bairros sociais antigos (que se vêem no segundo plano), onde os materiais de construção medíocres e as más condições de vida degradaram rapidamente o ambiente. (2006).

domingo, 7 de setembro de 2008

Coesão urbana: desigualdades e justiça

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QUANDO MARCO PÓLO, no meio das suas viagens, visitava o grande Kublai Khan, este pedia-lhe, segundo Ítalo Calvino, que lhe descrevesse as cidades que conhecia. Apesar da imensidão das suas conquistas e dos territórios que tinha sob domínio, o que interessava o Imperador eram as cidades. Estas encerravam todos os segredos que ele queria conhecer. A variedade das cidades impressionava-o. O encanto e o carácter dos citadinos atraiam-no mais do que qualquer outra descrição. Eram as cidades que lhe davam notícia dos homens e das sociedades, das culturas e das artes. Cada cidade era um mistério. Cada cidade era um segredo que tentava decifrar. Uns dirão hoje que cada cidade tem a sua alma. Outros, menos místicos, afirmarão que uma cidade é o seu povo e o seu carácter.
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Estou, infelizmente, muito longe do número de viagens de Marco Pólo. Mas já visitei dezenas de países e estive em centenas de cidades. Apesar de me ter extasiado nos Alpes e nas Rochosas, mau grado ter vivido momentos inesquecíveis nos Andes e na Patagónia, não obstante as emoções sentidas no Nilo e no Sara, apesar disso, é das cidades que guardo as melhores recordações, as impressões mais complexas e mais duráveis. É das cidades que trago a história dos homens, as suas artes, as suas lutas, o melhor da sua grandeza e o pior dos seus dramas.
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Nunca me cansarei de fazer o elogio das cidades. É a vida urbana que faz os homens livres. A liberdade contemporânea é urbana. Nas cidades enraíza-se a ideia de igualdade e de cidadania. As cidades são mais propícias à igualdade entre homens e mulheres. As cidades trazem cultura. Proporcionam a proximidade mas também, para quem quiser, a privacidade e o anonimato. Dão oportunidades ao sedentário e ao nómada. As cidades permitem o movimento de pessoas e ideias, a troca de bens. Nos dicionários, urbanidade é sinónimo de cordialidade e de civilização. Ainda nos dicionários, cidadão é indiferentemente sinónimo de habitante da cidade e de indivíduo a cujo estatuto estão associados direitos pessoais, cívicos e políticos garantidos pelo Estado e reconhecidos pela população. Não é por acaso que estes dois termos ou conceitos têm na cidade a sua etimologia. Por mais difícil que seja a vida nas cidades contemporâneas, é nelas, todavia, que encontro as fontes da liberdade e da cidadania. É delas que vem o essencial da criatividade humana.
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Devo dizer que me apetece, também, fazer o elogio do campo. Da sua beleza e da sua reserva de natureza. Da serenidade que aí se pode desfrutar. Do silêncio. Do tempo rural e natural, bem diferente do tempo urbano, mecânico e artificial. Do espaço, que parece sempre abundante, ilimitado por vezes. Creio que ninguém pode negar estas realidades. E que muitos as invejam ou para elas olham com nostalgia. Mas temos de convir que estas características, hoje, são sobretudo reparações, compensações, não são fonte de liberdade, de conhecimento e da nossa consciência social. O ideal de vida, para muitos, consiste em ser urbano e poder reparar-se no campo. Os que podem, já o fazem.
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No entanto, mesmo esse efeito de reparação está, em Portugal, frequentemente diminuído. O campo português encontra-se abandonado, não apenas pelas suas antigas populações, que já lá não vivem, mas sobretudo à margem das atenções dos poderes públicos e da sociedade. O campo português está geralmente feio e desordenado, caótico mesmo. Perdem-se recursos e oportunidades, perde-se beleza e natureza. A demagogia política fala com volúpia de impossíveis, tais como o regresso ao campo, a fixação das populações ou a revitalização do interior, quando deveria simplesmente falar de possíveis, como o ordenamento, o aproveitamento económico e social em novas condições e a protecção da natureza. O campo pode ser fonte de equilíbrio, não só da ecologia, como também dos homens e mulheres. Mas já não é, repito, fonte de liberdade e de progresso. Estes vêm das cidades.
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Durante muito tempo, escreveu-se sobre o dualismo na sociedade portuguesa. Será que ainda hoje se pode falar desse fenómeno, desse carácter definido pelos cientistas sociais? A verdade é que já não vivemos esses tempos. Estamos longe dos dualismos e da oposição entre cidade e campo, entre litoral e interior. Nos anos sessenta, ainda se falava de dualismos deste tipo. Um sociólogo português, Adérito Sedas Nunes, na senda de outros pensadores europeus e americanos, estudava esses dualismos na sociedade portuguesa. Num artigo que ficou famoso, “Portugal, Sociedade dualista em desenvolvimento”, o autor analisava as diferenças e as oposições entre esses dois territórios. As diferenças permitiam quase falar de dois mundos. Tudo as distinguia, os modos de vida, os comportamentos, os valores, as actividades, os serviços, a informação e a organização social. Tal como o conforto, os rendimentos e as aspirações. Uns autores exploravam a separação entre esses universos, a ponto de afirmar que um se desenvolvia, enquanto o outro estagnava, ficava para trás. Outros prestavam mais atenção às oposições, às contradições, ao modo como um deles, o urbano, crescia e se desenvolvia à custa do outro, o rural.
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Verdade é que as pessoas e as classes sociais que viviam na cidade adoptavam modos de vida e de comportamento radicalmente diferentes, enquanto os rurais se limitavam, muitas vezes, em prosseguir a sua vida monótona e resignada. Eram também duas visões do mundo, dois modos de pensar e sentir. Os urbanos beneficiavam de conforto, enquanto os rurais sobreviviam na sua condição. Saúde, educação, acesso à informação, segurança social, abrigo e bem-estar eram próprios dos urbanos. Os frutos e os benefícios da sociedade moderna, industrial e de serviços públicos demoravam a chegar, ou não chegavam aos campos e às aldeias. Enquanto os citadinos tinham ou podiam ter influência, decisão, eventualmente poder, os rurais eram submissos e reverenciais. Mais do que tudo isso, os urbanos tinham acesso a direitos cívicos ou sociais que apenas de leve eram extensivos aos rurais. Embora tal não estivesse estipulado na lei, havia desigualdade de direitos, de estatuto e de condição.
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Em três ou quatro décadas, tudo isso mudou. A igualdade de condição e de estatuto está assegurada e é praticada. Há, evidentemente, diferenças. Há, com certeza, desigualdade. Mas não são diferenças de estatuto, de direitos ou de condição. Que fenómenos provocaram esta evolução? Vários. A emigração esvaziou os campos. A urbanização ajudou ao êxodo ou alterou a configuração das aldeias e dos campos. Nasceram cidades médias. Os serviços públicos e sociais, como a educação, a saúde, os correios, a rede bancária, a segurança social e a administração autárquica estenderam-se a todo o país e todo o território. As auto-estradas ou estradas mais modernas encurtaram distâncias, uniram o país, aproximaram regiões e comunidades, naquela que foi uma das mais drásticas mudanças da sociedade portuguesa das últimas décadas. Os modernos meios de comunicação confirmam a proximidade e a rapidez. A democracia reconheceu todos os direitos a todos. A política eleitoral passou a ter de contar com os votos de todos, urbanos ou rurais. O acesso de todos a todos os serviços públicos e à satisfação dos direitos sociais está razoavelmente garantido. Os dois mundos não vivem mais de costas voltadas. Muito menos em oposição ou com um abismo a separá-los.
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Parece que tracei aqui um quadro idílico. Não é verdade. As diferenças são muito substanciais. Os rendimentos e o conforto são diferentes. A densidade social é distinta. O capital social é diverso. As classes rurais têm muito menores rendimentos do que as urbanas. Mas há agora uma situação nova. Primeiro, porque no campo habitam poucas pessoas. Muitos morreram, a maior parte foi-se embora para a cidade, para a indústria, para os serviços ou para o estrangeiro. Segundo, porque a actividade agrícola conheceu um abrandamento notório, a produção de alimentos é hoje muito inferior. Mas, uma vez mais, a igualdade de que falo aqui é de estatuto, de condição e de direitos. Nesses aspectos essenciais, as diferenças são quase inexistentes.
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Em certo sentido, pode agora falar-se de um país integrado, homogéneo, contínuo. Quase deixou de haver comunidades separadas, comunidades que não se conheciam, comunidades que viviam à parte. Como deixou de haver núcleos de auto-subsistência. O mercado unificou as economias e as sociedades. As estradas uniram os espaços e o território e aproximaram as populações. A democracia unificou a condição e a cidadania. Os grandes serviços sociais e institucionais, como a educação e a saúde, a justiça e a segurança social, cobrem a totalidade do país. Outros serviços, como a televisão, os correios, a banca e o licenciamento de actividades, sem falar nas polícias, estão acessíveis em qualquer parte do país. Os grandes equipamentos colectivos e infra-estruturais, como a água, a electricidade, o gás, o telefone e o saneamento estão igualmente presentes em todo o sítio, sendo muito reduzidas as minorias de agregados familiares ou de povoações carentes de um ou outro destes itens.
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Voltemos à cidade. A este que é o nosso meio predominante na actualidade. Em trinta ou quarenta anos, Portugal urbanizou-se. A população rural, agrícola e do sector primário decresceu consideravelmente, a ponto de se situar hoje abaixo dos 10 por cento, com tendência para diminuir ainda mais. Neste período, o movimento de população foi enorme, fora de proporções e talvez sem paralelo na história recente da Europa e em tempos de paz. De uma população média de oito a dez milhões de habitantes, cerca de dois milhões foram viver e trabalhar para o estrangeiro. E perto de um milhão e meio vieram viver para Portugal. Além disso, vários milhões de cidadãos abandonaram as suas residências rurais para se estabelecerem nas cidades, designadamente nas áreas metropolitanas do litoral e nas coroas de cidades médias que as envolvem. Foi muito, em pouco tempo. Apesar dos centros históricos e das origens antiquíssimas de algumas cidades, o mundo urbano português é muito recente. A maioria das casas de habitação foi construída nas últimas décadas. Mais de 50 por cento das habitações têm menos de trinta anos. As verdadeiras cidades contemporâneas portuguesas são, em grande parte, os seus arredores.
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A rapidez desta urbanização, associada a outros fenómenos importantes, teve consequências nefastas: desordem, má qualidade da construção, ilegalidade, clandestinidade, apropriação indevida e desprezo pelos espaços públicos. O nosso mundo urbano de hoje tem, como sabemos, muito disto. As infra-estruturas, os equipamentos colectivos, os serviços sociais e os espaços públicos cuidados chegam, quando chegam, depois da construção, depois dos prédios habitados, por vezes muitos anos depois. Como disse o arquitecto Nuno Portas, “primeiro constrói-se, depois urbaniza-se”. Calculamos, sabemos os efeitos que resultam desta ordem das coisas. Os transportes, em particular, são talvez a primeira consequência negativa. Não esqueçamos que este problema está aí para ficar. Cada vez mais, os que trabalham nas cidades residem fora delas. Hoje, nas áreas metropolitanas, mais de metade das pessoas que trabalham nas duas grandes cidades vivem noutros concelhos ou noutras localidades. E todos os dias têm de fazer dois trajectos cada vez mais longos, cada vez mais demorados, sem contar aqueles de que necessitam para levar as crianças às escolas. Sabemos que, em vez de os prevenir ou de para eles se prepararem, os transportes urbanos e suburbanos correm atrás dos problemas. A ponto de nunca os alcançar. Não é difícil imaginar o que será a vida quotidiana das famílias, das pessoas que têm de passar duas ou três horas por dia dentro de um automóvel, em sistema de pára e arranca, ou dentro dos transportes públicos. Já se pensou no desperdício moral e humano que representa um décimo da vida de alguém passado num transporte, entre o incómodo e a solidão?
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É na cidade que encontramos o pior da sociedade contemporânea. Não só o óbvio e aquilo de que mais se fala, a insegurança, a pobreza, a destituição, o desemprego, a marginalidade e o crime. Mas também a velhice desamparada, a solidão, a segregação social e a dificuldade de encontrar tempo para a vida em família ou em grupo ou com amigos. E ainda a desigualdade social. Apesar dos enormes esforços feitos pelo Estado central e pelas grandes câmaras, demorou mais de trinta anos a eliminar os piores centros de habitação precária, as barracas, as ilhas e outros pardieiros. Os bairros sociais que os substituíram não foram sempre a melhor solução. Seja pela solidez das construções, seja pela qualidade de vida que proporcionaram, seja finalmente pelos comportamentos e atitudes que fomentaram. Em todo o país, onde se fizeram, desde os anos setenta, bairros sociais, está-se agora em plena obra de reabilitação (e nalguns casos de demolição), após longa degradação física e social. É a cidade, não o campo, que nos dá hoje os exemplos mais completos da desigualdade e do desperdício. Em vez do dualismo de outrora, da oposição entre a cidade e o campo, temos agora uma nova forma de dualismo, de desigualdade, que resulta dos vários mundos sociais viverem um ao lado dos outros. Os que têm e os que não têm, os que sabem e os que não sabem, os que podem e os que não podem vivem hoje paredes meias, à vista uns dos outros.
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Por tudo isto, o problema da coesão social dentro da cidade assume especial relevo. Cidade desigual e cidade degradada têm consequenciais nefastas. São cidades e bairros que perdem a identidade e deixam de criar sentimento de pertença. São locais onde o espaço público não é colectivo. São comunidades que, gradualmente, deixam de o ser. As cidades revelam-se hoje ser frequentemente violentas, agrestes e difíceis. Apesar das campanhas e de alguns esforços, o quotidiano citadino não tem melhorado. E tem-se desumanizado.
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Procurar a coesão social tem várias exigências. Algumas são materiais. Como, por exemplo, níveis razoáveis de conforto e bem-estar. Ou serviços sociais, como escolas, centros de saúde ou bombeiros, eficazes e próximos dos cidadãos. E estímulo à actividade económica produtiva e ao emprego. Outras são imateriais. Como a identidade, o sentimento de pertença, os deveres de comunidade e os direitos de responsabilidade. Todas estas exigências são difíceis de cumprir. Mas têm de o ser. As mais difíceis são talvez as imateriais. Aquela em que mais acredito é numa gestão autárquica eficiente, aberta e responsável. Mas também honesta. E sobretudo forte. Um poder autárquico forte e reconhecido é favorável à identidade.
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É sabido que o poder local tem uma dupla natureza. É um órgão político, de carácter público, equiparável ao Estado local. Mas também é uma organização autárquica, emanação da sociedade civil e representante da comunidade. A autarquia será forte se souber assumir esta sua dupla natureza. Este seu papel é preponderante. Na verdade, a coesão social, quantas vezes contrariada pelas desigualdades, não depende ou depende muito pouco do poder central ou das políticas nacionais. Depende, sim, das políticas urbanas e sociais das autarquias, da sua capacidade de perceber, prevenir e agir. Por isso me parece de favorecer toda a tendência, manifestada por algumas autarquias, de redefinir as suas prioridades e de concentrar os seus esforços na questão social.
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É justo interrogarmo-nos sobre os meios ao nosso alcance para fomentar a coesão social ou para combater os factores que a põem em crise. Ao primeiro já aludi: um poder autárquico forte, honesto e próximo da população. E ainda, certamente, independente do poder central, dos poderes locais e dos interesses parcelares. O segundo meio indispensável à coesão social é a justiça. Eis algo que ultrapassa muito o âmbito do poder local. Mas que é indispensável tanto à coesão social como ao equilíbrio da vida em comunidade.
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Tudo depende da justiça. A vida familiar, os direitos e deveres de paternidade e maternidade, a sucessão, a habitação, os direitos das crianças e dos idosos. A vida comercial e os contratos. A vida laboral, os direitos e os deveres. A segurança das ruas. A certeza do direito. A organização urbana, as expropriações, as licenças para construir, as obras, os direitos e deveres dos senhorios, dos condóminos e dos inquilinos. O ambiente. A qualidade do espaço público. A paz dos citadinos. O ruído. As perturbações da tranquilidade. A vida marginal. Os tráficos nocturnos.
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A justiça é condição de vida colectiva pacífica, é instrumento de segurança. A certeza do direito e do Estado de direito depende da eficácia da justiça. A justiça é essencial para garantir o respeito pelos direitos dos cidadãos e fundamental para assegurar o cumprimento dos deveres. A justiça zela pela igualdade de condição entre cidadãos. A justiça protege os cidadãos perante o Estado e qualquer candidato a abusador público ou privado. A justiça repara erros e culpas, castiga os infractores e recompensa as vítimas. A justiça defende os fracos diante dos poderosos. Sem justiça não há mercado e a iniciativa privada transforma-se num caos de oportunismo e abuso. Da justiça depende a vida familiar e a regulação de conflitos. Da justiça depende toda a vida económica, o respeito pelos contratos, o pagamento de dívidas, o cumprimento de obrigações e a honestidade de compromissos. Como da justiça dependem as relações laborais, as actividades produtivas, os direitos e deveres dos patrões e dos trabalhadores. Da justiça depende também a resolução dos inúmeros problemas da cidade, do urbanismo, da construção, do arrendamento e da propriedade. Toda a nossa vida depende da justiça. Isto é, do direito, dos tribunais e dos magistrados. E a vida urbana, pela sua complexidade, pela sua diversidade e pela densidade social cria enormes exigências a que a justiça deve responder. Longe vão os tempos da justiça rural, das questões de água e de servidão, dos direitos de passagem, da caça e da pesca! A justiça é hoje urbana. Toda a nossa vida depende da justiça e da sua qualidade.
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O que acabo de formular parece uma banalidade. A que se poderia ainda objectar que não há razão para conferir à justiça um estatuto distinto ou especial, dado que a nossa vida também depende da saúde e da educação. Acontece que a dependência não é a mesma, os problemas não são os mesmos. Na verdade, a dependência da justiça é total e exclusiva, sem alternativa. Não há alternativa à justiça. Ao contrário da educação, da saúde, da distribuição e até da solidariedade. Com algumas excepções, sobretudo dos menos afortunados, toda a gente pode procurar e encontrar alternativas para o emprego, a habitação, a saúde, a educação ou o transporte. Com expedientes ou não, com empenhos ou formalmente, com recurso a privados ou mesmo dentro dos sectores públicos, é quase sempre possível encontrar alternativas, quem possa ou saiba resolver problemas, quem queira fornecer ou dispor do que se pretende. Com a justiça, não! A justiça não é, não pode ser, não deve ser privada ou privatizada. Ou é “do povo para o povo”, ou não é justiça.
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Tinham razão os fundadores das democracias, na Grã-Bretanha, na América ou noutros países europeus, ao estabelecerem um vínculo indelével entre liberdade e justiça. Quando, aos cidadãos americanos, foi perguntado, em estudo elaborado há alguns anos, o que consideravam mais importante para a sua liberdade, a maioria respondeu: os tribunais e o sistema de jurados. Só depois vinham as eleições! A justiça é o alicerce da democracia. E uma condição essencial para a paz e o bem-estar. E têm a sua razão os déspotas e os ditadores quando tudo fazem para submeter a justiça ao poder político.
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Como é sabido, a justiça não está bem em Portugal. À força de o dizer, começamos a duvidar. Ou, pior ainda, a ficar anestesiados. Mas a verdade é que, de todos os sistemas sociais e de todos os serviços públicos, a justiça parece ter sido o que menos progrediu, menos se adaptou às exigências do nosso tempo e menos melhorou em produtividade. Se compararmos com outros sectores de actividade e outros serviços públicos ou sociais, veremos seguramente que quase todos ou mesmo todos conheceram evoluções mais favoráveis do que a justiça. Apesar das insuficiências, a saúde, por exemplo, tem cumprido melhor os seus deveres de mudança. E o mesmo direi até da educação!
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Nas últimas décadas, as necessidades de justiça mudaram radicalmente. Mas o sistema não acompanhou. O mundo rural foi substituído pela sociedade urbana. Os conflitos de águas e servidões, de gado e de feira, quase desapareceram, porque essa sociedade desapareceu também. Os negócios informais, as trocas, o valor da palavra, o significado do aperto de mão e os arrendamentos não escritos estão extintos ou em vias disso. Os trabalhadores como verdadeiros servos ou submissos são cada vez menos. Os cidadãos sem direitos cívicos ou sociais já não existem. Os conflitos não declarados ou resolvidos pelas próprias mãos estão em regressão.
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Em vez desse mundo, em que nasceu e para o qual foi feita a justiça portuguesa, temos hoje uma sociedade mais consciente dos seus direitos e mais disposta a lutar por eles. Os cidadãos recorrem cada vez mais aos tribunais para dirimir os seus conflitos. Até as relações familiares e parentais são mais explicitamente regidas pelo direito e os respectivos conflitos solvidos em tribunal. As actividades económicas despem-se da sua informalidade e adoptam a via contratual. Pela primeira vez se pode falar de um mercado livre ou de uma sociedade de mercado, com reduzido proteccionismo e fraco condicionamento. As relações laborais são quase sempre tuteladas pelo direito e a ele recorrem os seus protagonistas, afastando assim dos horizontes visíveis aquele mundo de patrocinado e de relações informais tão férteis em despotismo. Presente por todo o lado, o Estado e as autarquias forçam os cidadãos a recorrer ao direito e à justiça. A sociedade de consumo de massas gerou conflitos e incumprimento, assim como a fraude e o crime. Até a liberdade está na origem de uma acrescida criminalidade (e de uma acrescida informação livre sobre a criminalidade). A permissividade dos costumes foi a justa tradução da liberdade, mas também a nova fonte da infracção e da cobiça. O número de advogados cresceu quase exponencialmente, o que teve o condão, feliz ou infeliz, de contribuir para o aumento da litigância. A excessiva legislação e a regulamentação da vida colectiva trouxeram consigo a imaginação criativa capaz de encontrar as vias expeditas, que por vezes desaguam na marginalidade. A falta de experiência democrática e institucional, assim como um certo clima de impunidade criado nas últimas décadas, estão também na origem da corrupção e da irregularidade administrativa. A integração europeia trouxe para Portugal dezenas de milhares de páginas de novas regras e normas aplicáveis directa e imediatamente a uma sociedade mal preparada para essa mutação.
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Finalmente, e por aí deveria ter começado, a justiça portuguesa não se preparou nem reagiu a tempo às mudanças geográficas e demográficas. Dois milhões de portugueses emigraram em quarenta anos; um milhão e meio de pessoas vieram viver para Portugal em trinta anos; dois milhões deixaram o campo e a actividade agrícola; três milhões foram viver para as cidades, a maior parte deles para o litoral; os centros das cidades antigas esvaziam-se; os arredores e as periferias das áreas metropolitanas cresceram desordenadamente; quase dois terços da população trabalham nos serviços; as mulheres são hoje metade da população activa (eram 15 por cento há quarenta anos) e dois terços dos universitários; os jovens fundaram uma cultura própria, passaram a ter direitos cívicos e valor comercial e são os protagonistas da noite e do divertimento. Tudo isto teve e tem consequências na litigância, no universo dos conflitos e dos contratos e nos procedimentos sociais. Tudo isto tem implicações para a justiça. Mas esta não se adaptou e manteve um mapa, uma organização e uma metodologia próprios de outros tempos e de outra sociedade.
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A todas estas mudanças e a todas estas novas exigências, a justiça adaptou-se pouco e mal. Democracia, liberdade, economia de mercado, comunidade europeia e Estado de protecção social: estes deveriam ter sido os estímulos para um novo direito e uma nova justiça. Acabaram por ser algumas das causas da crise de justiça. A justiça não soube adaptar-se. Os poderes públicos não conseguiram ajustar a justiça aos tempos contemporâneos. Assim é que temos um sem número de situações que todos os dias preenchem a crónica da informação e ocupam os debates públicos. Mais do que isso, um sem número de casos de que são vítimas, coléricos ou resignados, os cidadãos. O inquilino que não consegue resolver os seus problemas com o senhorio ou com os serviços municipalizados. O proprietário que não obtém satisfação das suas justas exigências. O senhorio enganado e que não consegue reparação. Os despejos e os despedimentos injustos, mas sem protecção atempada. Ocupações ilegais e ilegítimas que não são sancionadas como e quando devem sê-lo. Vítimas de violência da rua ou doméstica, de roubo e fraude, de corrupção ou assalto, têm enorme dificuldade, as mais das vezes, em obter justiça a tempo. Actividades comerciais paradas, construções adiadas, estaleiros interrompidos, obras embargadas, empresas paralisadas, contratos denunciados, obrigações não respeitadas e investimentos atrasados ou desviados, tudo por causa da ineficácia e dos prazos da justiça. Nem é preciso ler as manchetes das primeiras páginas, dos casos célebres, da Casa Pia, do Apito Dourado, do Aquaparque, da Caixa Açoriana e de outros bem conhecidos. Basta ler os casos diversos, as pequenas notícias, a crónica dos tribunais e aí se verão os prazos dos processos, as chicanas, os custos da justiça e as manobras dilatórias de quem tem meios. Aí se verá como é frequente os casos demorarem cinco ou dez anos, por vezes mais. Aí se perceberá que a justiça feita fora do tempo já não é justiça. Aí se compreenderá por que razão nasceu e cresce este sentimento de impunidade vigente na sociedade portuguesa. Aí se explicará por que motivo os últimos estudos de opinião dão sistematicamente os magistrados como o grupo profissional em quem a opinião pública menos confia. E não tenhamos dúvida: a inexistência de justiça a tempo e horas está na origem da falta de confiança das populações nos tribunais e nos magistrados. Esta desconfiança está também medida em estudos recentes. Ora, esta é a fonte da mais grave crise da liberdade e da protecção dos direitos individuais e sociais. Talvez não seja visível a todos. Talvez não pareça urgente. Mas corrói a coesão e o equilíbrio de qualquer sociedade.
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A este propósito, é já antiga a discussão sobre as responsabilidades desta situação. Os magistrados? Os advogados? Os políticos? Os funcionários? As polícias? A população? Seremos todos culpados, como é agora moda dizer a propósito de tudo? Todos terão as suas razões e todos terão as suas culpas. Mas não aceito, não devemos aceitar, esta culpa universal que é um factor típico de desresponsabilização. Alguns culpados sobressaem. O legislador e a tutela, sobretudo. Noutras palavras, o Parlamento e o Governo. É a eles e só a eles que compete traçar as linhas das reformas, fazer as leis, estabelecer os novos procedimentos, encontrar os meios e formar os profissionais. Só o Parlamento, com a sua legitimidade democrática, pode tomar a iniciativa e definir as regras neste tão especial sector da vida pública que necessita de autonomia e cujos profissionais necessitam de independência. É ao Parlamento que compete agir em nome das populações e do interesse geral, fazendo com que a independência dos magistrados não seja equiparada à autogestão, perversão recente e possível. Para a justiça, como para quase tudo na vida social, não há receitas milagrosas nem soluções instantâneas. Por mais sábias e determinadas que sejam as reformas feitas pelo legislador, não se progredirá sem a colaboração permanente e empenhada dos magistrados. Mas estes não tomarão a iniciativa desse progresso enquanto não forem estimulados, orientados ou obrigados seja pelo legislador, seja pela população. Por isso sou favorável a uma muito maior abertura do sistema judicial à sociedade e aos representantes da soberania popular. Uma vez mais, a sua independência de juízo, que deve ser total, não pode ser confundida com a sua independência de poder, isto é, a sua autogestão.
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Gostaria de concluir voltando à vida urbana. É difícil, como disse, viver nas nossas cidades. Porque as dificuldades físicas e materiais são muitas. Mas também porque as nossas cidades são injustas. E apenas vejo duas maneiras de combater esse facto ou de diminuir as suas consequências. Uma, a de assegurar um poder autárquico forte e especialmente motivado para a questão social. Outra, a de recorrer à justiça, pois que a vida urbana necessita de justiça pronta e atenta.
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Aqui se detecta mais uma dificuldade. A justiça não está ao alcance da autarquia. A justiça é nacional e universal, não é local. Não é, nem deve ser, pois que estão em causa valores superiores, os dos direitos humanos. Mas, sem justiça, a coesão social está em causa, o que é o mesmo que dizer que a coesão urbana está em crise. As deficiências da justiça, a que já fizemos demorada alusão, ameaçam directamente a coesão urbana e social. Não só porque aumentam as desigualdades e a destituição, mas também porque impedem uma gestão colectiva e autárquica mais eficiente.
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A justiça não é solidariedade, nem protecção social. A justiça não é desenvolvimento económico, nem emprego. A justiça não é segurança, nem educação ou saúde. Mas, sem justiça, tudo isso é mais difícil.
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Aos viajantes interessados que pela primeira vez se deslocam a Portugal e me fazem a inevitável pergunta: “O que é mais urgente fazer em Portugal?”, respondo invariavelmente: “A Justiça, senhores, a Justiça”!
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Câmara Municipal do Porto - 8 de Janeiro de 2008

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Luz - Muros de socalcos antigos agora plantados com oliveiras

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Nestes socalcos, havia, até aos anos 1870, vinha. Esta foi destruída pela filoxera. Em muitos sítios, nunca mais se plantou vinha. Nasceram os famosos “mortórios” do Douro, nome evocador e sinistro. Ainda hoje haverá talvez 10.000 hectares de mortórios, muitos abandonados, mas muitos também com olivais. Os mortórios desta imagem estão excepcionalmente bem tratados, por causa do olival. Na maior parte dos casos, estão abandonados e os muros em ruínas ainda mais flagrantes. (2008).