Os incêndios de floresta de 2017,
dos piores da história de Portugal, dos mais mortais da Europa e do mundo no
último século, deixaram feridas não cicatrizadas nas famílias, nas autarquias,
nos campos e na natureza. Assim como na segurança colectiva e na confiança dos
cidadãos. Agora, há relatórios de investigações, ao que parece competentes e
independentes. O que, mesmo havendo polémica, como em tudo, já é um progresso. A
conclusão essencial é devastadora: confirma-se, se é que era necessário, o
falhanço dos sistemas de prevenção, de protecção e de socorro. Por outras
palavras, a segurança foi muito deficiente. Mas aplaude-se o pagamento de
indemnizações, o que, além de humano, é o reconhecimento de responsabilidades.
Há também relatórios sobre o
desaparecimento de armas e munições das Forças Armadas e das Polícias. Relatórios
mais discretos e não inteiramente públicos, não se percebe porquê. A conclusão primordial,
a partir do que se sabe, comprova o que era evidente: fracassaram os sistemas
de vigilância e de segurança.
O problema da segurança colectiva
é muito grave. Dos mais sérios que se conhece. Mas, entre nós e nos tempos que
correm, questão tão séria quanto a da segurança é certamente a da Justiça e do
Estado de direito, o que implica apuramento de responsabilidades e capacidade
de correcção de erros e negligências. Eis por que os próximos meses serão
absolutamente decisivos. Serão a prova dos nove e a prova real para a nossa
justiça. Poderemos verificar se tudo será diluído pelo sistema político e pela
ineficiência. Ou se, pelo contrário, por uma vez, a justiça vai até ao fim.
Obcecados com as questões sociais
(os de esquerda) ou económicas (os de direita), os governos portugueses estão a
deixar instalar-se uma deriva de impunidade e de ineficiência da justiça. O
assunto é sério: é a erosão do Estado de direito.
A segurança colectiva e a
protecção civil constituem apenas um capítulo da fragilidade crescente do
Estado. A privatização e a reprivatização de empresas e grupos, feitas em
condições de poucas garantias, deixaram o país mais fraco. Até porque, em
certos casos, algumas privatizações tiveram como destinatários Estados
estrangeiros, o que é irónico e arriscado. Um Estado fraco e endividado vende
de qualquer maneira.
Coladas às operações de
privatização, as desventuras da banca portuguesa aumentaram a fragilidade do
país. Constituíram a mais drástica destruição de valor levada a cabo na
história recente, só comparável aos efeitos económicos da revolução de 1975 e às
consequências económicas da descolonização. Além desse estranho fenómeno que é
o da destruição de valor, assistimos, nas sucessivas crises bancárias, à
apropriação de recursos e ao desvio de capitais, mais próprios do roubo do que
da falência. Como muitos desses bens e recursos eram de milhares de pessoas,
vieram os contribuintes compensar as vítimas dos assaltos. É uma nova figura de
culto em Portugal: os custos públicos dos roubos privados.
Com a destruição de valor e o
roubo de capitais, verificou-se ainda, sob a capa da internacionalização, um
autêntico massacre de empresas que tinham conseguido uma posição interessante
em áreas de inovação e desenvolvimento, como no caso dos cimentos, das
telecomunicações e da energia. Esta reconversão de serviços públicos e de
grupos nacionais em redes internacionais foi levada a cabo por gestores sem
escrúpulos. Nada do que precede se fez sem intervenção directa do Estado, sem a
colaboração de governos e sem a cumplicidade de governantes.
Mais uma vez: a Justiça em causa.
Há, na verdade, dos incêndios às armas, entre o BES e o BPN, entre a PT e a EDP,
entre Angola e China, entre o Brasil e a Venezuela e entre os vários grandes
processos em curso, verdadeiras “causes célèbres”, um fio condutor: é o da ineficiência
da Justiça.
Tudo está em saber se a democracia
e o Estado de direito podem sobreviver à ausência da Justiça.
DN, 25 de
Março de 2018