É indelével a sensação de que algo na Justiça não está a correr bem e de que se preparam grandes acções. Ou reviravoltas. Não se esconde a ideia de que a Justiça pode ser fonte de surpresas a breve prazo. É uma questão inescapável: estará em curso um movimento de revisão dos grandes processos pendentes?
É uma hipótese com fundamento: será que nos devemos preparar para más notícias no domínio dos casos em que são visados os poderosos? Nos últimos meses, houve mudanças muito importantes no universo da Justiça, designadamente nos tribunais superiores e em alguns departamentos vocacionados para estes processos. Tem havido substituições, algumas aparentemente de rotina, na Procuradoria-geral da República, no Conselho Superior de Magistratura, no Conselho Superior de Magistratura do Ministério Público e no Supremo Tribunal de Justiça. O que também se verifica entre os dirigentes das polícias de investigação.
Coincidindo com estas mudanças, há sinais inquietantes: o número de arguidos diminui; o número de acusações decresce; há arguidos que deixam de o ser; há penas que são reduzidas; por alegada falta de consistência de provas indícios, caem acusações… Devagar, como quem não quer a coisa, algo se passa.
Ora, estão em curso processos de extrema gravidade e de excepcional importância. Está em causa a honra de dezenas de figuras notáveis. Dezenas de políticos, incluindo Primeiro-ministro, ministros, secretários de Estado, deputados e autarcas de vários partidos estão profundamente envolvidos. Muitos dirigentes económicos e financeiros, talvez alguns dos mais poderosos banqueiros portugueses, além de bancários, empresários e gestores também se encontram visados. Contam-se ainda dirigentes de algumas das mais importantes empresas portuguesas públicas e privadas, sendo que umas tantas foram objecto de destruição deliberada e roubo. A este elenco, acrescentam-se militares e polícias de todas as patentes, assim como dirigentes dos mais poderosos clubes de futebol. Nunca nada de parecido se viu na história.
Movimentos quase imperceptíveis, aparentemente de pouca importância, alteram os comportamentos dos Conselhos Superiores, do Ministério Público, dos Tribunais, das associações de magistrados e outros profissionais da Justiça. Uma nomeação aqui e outra ali. Uma substituição sem motivo evidente e outra em resultado de ciclos e de escalas. Processos que se atrasam sem razão, outros que aceleram de modo imprevisível. Há uma espécie de erosão nas acusações, nas suspeitas e nas pronúncias. No universo da corrupção, do peculato, do favoritismo, do branqueamento de capitais, da prevaricação, do segredo de justiça, da fuga de informação, da legislação feita por encomenda e dos contratos entre o público e o privado, os processos são objecto de atraso, de esquecimento, de dificuldades imprevistas, de investigação alegadamente mal feita, de acusação não fundamentada, de gravações desaparecidas e de escutas mandadas destruir. Que se passa? Má investigação? Má acusação? Má instrução? Vingança pessoal? Envolvimento partidário? Mudança de sentido político no seio do Ministério Público? Tentativa de recuperação por parte dos principais arguidos da política, da banca e dos negócios? Que se passou na destruição de provas e de escutas? A política de “bica aberta” relativamente às provas e às escutas tem explicação? A publicação, a ocultação e a destruição de escutas continuam a ser suspeitas.
A recente polémica a propósito da tentativa frustrada de alteração da composição do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público teve o efeito de revelar o jogo de tensões e pressões no interior e à volta dos grandes corpos de profissionais da Justiça. Quase coincidindo, no tempo, com esta discussão, a substituição da Procuradora-geral da República, a mudança do juiz de instrução do caso da Operação Marquês e alegadas anomalias na distribuição de processos confirmaram a existência de sérios confrontos institucionais.
Nos processos dos políticos e do dinheiro, a justiça tem dificuldade em resolver. Há quem atrase e deixe prescrever. Ou oculte evidência e provas. Da Justiça, vem uma ideia de favoritismo e parcialidade. É inegável a imagem de vulnerabilidade da justiça, que se traduz em fraqueza dos cidadãos. Ora, o que acontece é simultâneo com alguns progressos.
A Justiça melhora os seus meios, progride na sua administração quotidiana e na profissionalização, mas parece estancar diante das rivalidades entre os seus corpos mais importantes, magistrados, procuradores, oficiais, advogados e polícias.
A Justiça moderniza-se, aumenta a eficácia, diminui as pendências, aumenta a produtividade e recorre a especialistas, mas parece estancar diante dos processos que envolvem governantes, políticos, poderosos das finanças e das empresas e altos funcionários da Administração Pública.
A Justiça afirma gradualmente a sua independência, mas constrói uma autogestão orgulhosa que intimida e paralisa o legislador e que a afasta do povo soberano e das fontes de legitimidade democrática.
A Justiça reclama a sua isenção, mas mostra-se vulnerável às pressões e lutas em que intervém interesses secretos e discretos, religiosos e laicos, económicos e financeiros, partidários e corporativos.
A Justiça proclama a sua distância aos interesses do dia, às lutas de corpos e de classes, aos grupos e associações, mas organiza sindicatos e similares, ameaça e leva a cabo greves e reivindicações tanto profissionais como políticas.
A Justiça exige garantias e condições de investigação e julgamento, defende o recato e protege as suas prerrogativas de trabalho, mas aceita ou estimula o mais fétido clima de fugas de informação e de falhas deliberadas de segredo de justiça.
A Justiça invoca um alto espírito de respeito pelo Direito, pela Lei e pelo Processo, no que tem seguramente razão, mas utiliza métodos duvidosos e privilegia as escutas que valida ou elimina com intenções estranhas.
A Justiça portuguesa teve dificuldade em adaptar-se à democracia, aos tempos modernos, à Europa, aos Tribunais europeus, ao digital, ao capitalismo e à sociedade de informação.
A Justiça tem como missão dirimir conflitos e defender as liberdades e os direitos humanos.
Público, 27.1.2019