Terá a democracia portuguesa chegado à idade adulta, “período da vida em que se atinge o auge do desenvolvimento”? À idade da maturidade, a que traz experiência e serenidade, “fase em que se atinge a plenitude das suas capacidades”? Como não estão estabelecidos limites técnicos quantitativos ou jurídicos, é difícil responder.
Há, todavia, alguns indicadores que nos permitem medir mais objectivamente. Na verdade, a Constituição da República, com mais de 42 anos, já ultrapassou a da ditadura, com 41. Mas a democracia, com 45 anos, ainda não viveu mais do que o Estado Novo, corporativo e autoritário, com 48. Com estes critérios, não é difícil admitir que a democracia portuguesa tenha chegado à maioridade. O problema é que a idade adulta não é só cronologia e matemática. Os traços de maturidade são indispensáveis. Ora, estes não são nítidos nem indiscutíveis.
Quando se critica o regime democrático português, o que se tem em mente é conhecido: em primeiro lugar, a pobreza e a desigualdade. Logo a seguir, o pouco crescimento e o menor investimento, assim como as muito falíveis justiça e segurança… Sem falar na tão deficiente educação. A lista é longa. E ainda não se incluiu a corrupção e a burocracia. Mas será justo culpar a democracia destas falhas? Creio que não.
Não compete à democracia criar a igualdade, a não ser a de condição e direitos. Também não lhe compete fornecer os bens públicos que todos ambicionamos, o bem-estar, a saúde, a educação, a casa ou o emprego. Esses bens, preciosos, devem ser criados pelos próprios. Mas também podem ser conferidos pelo Estado de protecção, ou desenvolvidos pelas autoridades ou pela sociedade civil. Noutras palavras, pelas políticas, pelos serviços públicos e pelas empresas, sempre, se possível, com o esforço de cada um. Da democracia depende, não o bem-estar, mas a liberdade. Nomeadamente a liberdade de lutar por aqueles bens públicos. O problema é que, se a iniciativa de cada um é travada ou se as políticas, os políticos e as elites não conseguem fornecer o que se espera deles, é a democracia que sai culpada. Cresce a abstenção, aumenta o desinteresse pela política, desperta a revolta, desenvolvem-se sonhos milenários e apocalípticos e criam-se movimentos marginais. As instituições enfraquecem, os políticos fecham-se e defendem-se.
Sem culpas directas da democracia, é a democracia que fica a perder. Os populismos, em parte pelo menos, nascem aqui mesmo, na convicção ou na esperança de que são outros métodos, não os habituais ou institucionais, que resolvem os problemas. Emprego, casa, saúde, educação, pensões, imigração e segurança: tudo isso pode ser trazido por novos métodos marginais ou populistas, não pelas instituições democráticas. Estas são as convicções de muitos que não acreditam na democracia e de quase todos os que a combatem. Mais uma vez, o problema é que os defensores da democracia não percebem ou não querem perceber que, em grande parte, são as suas más políticas que destroem o seu próprio regime. Ou antes, que o tornam impotente e incompetente. Ainda hoje, “A escola de ditadores”, de Ignazio Silone, escrito em 1938, explica, em pormenor, como falham os democratas e como morrem as democracias.
Portugal será também varrido pelas ondas não democráticas, antidemocráticas e populistas que se estendem por vários países da Europa e das Américas? Conhecerá Portugal, em breve, fenómenos como a chegada ao Parlamento de grupos políticos ditos de extrema-esquerda ou de extrema-direita, não institucionais, não estabelecidos e não clássicos, representando fracções ou mesmo grandes fatias de eleitorado? Ou será que Portugal continua a escapar a estes fenómenos aparentemente efémeros, mas que já destruíram o panorama partidário de quase toda a Europa?
Por que razão seria Portugal uma excepção? Esta questão é de difícil resposta. A ditadura salazarista, de longa duração, ajuda talvez a compreender as causas deste fenómeno. A sobrevivência atávica e obsoleta de um Partido Comunista, único na Europa, de gosto reivindicativo e carácter estalinista, pode também contribuir para conter as veleidades anarquistas e populistas. Graças à sua componente estalinista e trotskista, o populismo “fracturante” do Bloco reteve os ímpetos mais irracionais. A dependência partidária dos sindicatos ajuda a conter exageros reivindicativos, mas a fraqueza sindical no mundo do trabalho em geral é mau sinal. Quanto à pobreza e à precariedade, dois traços essenciais da sociedade portuguesa, tanto podem agir no sentido da explosão populista, como no do recato de quem não quer perder o pouco que tem.
A democracia, finalmente: será também, pelas suas insuficiências, um incentivo ao populismo? Esta nunca é responsabilizada pelo bem que faz e é sempre culpada pelo mal que os políticos fazem. Se houvesse sentido de justiça na história, a democracia portuguesa seria responsabilizada por algumas décadas de desenvolvimento e progresso raros na nossa história. Os Portugueses têm feito maravilhas de sobrevivência, de estabilidade e de resistência diante de várias crises financeiras e económicas, de múltiplas crises políticas, de instabilidade educativa, de desemprego e de ausência de eficácia na Justiça. Os Portugueses fizeram um serviço de saúde, alargaram a educação (mesmo se sem a qualidade proporcional…), transformaram os seus costumes, mudaram de casa e permitiram que as mulheres e os jovens assumissem um papel de cidadãos adultos. Os Portugueses adquiriram, em poucas décadas, uma dignidade de cidadãos inédita e assumir uma igualdade de condição desconhecida no seu passado. Os Portugueses souberam lamber as feridas de uma guerra colonial sem sentido, de uma descolonização miserável, de uma revolução absurda, de uma nacionalização devastadora da economia e de uma reprivatização facciosa e falhada. Sofreram, habituaram-se, resistiram e sobreviveram sem pôr em causa algo de essencial, a liberdade.
Fizeram-no apesar de enormes dificuldades, das suas insuficiências e da falta de perícia dos políticos. Na verdade, os últimos anos, dez ou quinze, revelaram fragilidades que pareciam escondidas. Na primeira década do século XXI, a corrupção e o endividamento atingiram níveis insuportáveis. Depois, a austeridade, feita sem critério, pecou por excesso e descuido. A demolição da banca, o desaparecimento do capital financeiro nacional, a destruição de grandes empresas e a venda de activos empresariais em condições lamentáveis reforçaram a imagem de uma economia vulnerável, na qual o sector exportador brilha como quase única estrela. Os grandes processos judiciais inacabados, a corrupção impune, os incêndios ditos de Pedrógão e de Outubro, o roubo de Tancos, as trapalhadas repetidas da Protecção civil, o desastre de Borba, as trafulhices no topo da Administração Pública e as aldrabices no Parlamento quase tornaram inúteis os esforços e o sofrimento dos Portugueses.
Nestes dias de fim de ano, neste início de novo ciclo eleitoral, um número surpreendente de dias de greve e a instabilidade reinante na Saúde, na Educação, na Protecção Civil e na Justiça quase sugerem que está em causa a ligeira recuperação dos últimos anos. A falta de capital e a insuficiência do investimento serão hoje dois dos mais sérios factores de crise. Nada no futuro será melhor sem que estes dois problemas encontrem uma qualquer solução. E esta não pode ser a mais simples, a do endividamento. Já vimos o que aconteceu na primeira década deste século. Também não pode ser a entrega de mãos e pés atados aos grandes centros de capital, sejam os fundos de “raiders”, sejam os países com dinheiros fáceis do petróleo e da corrupção, seja finalmente as países com capitais ilimitados e poderes proporcionais. Até por uma razão simples: em Portugal, além do sol e do solo, já não há quase mais nada para vender.
Nos próximos anos, a corrupção em todas as suas formas, as legais e as ilegais, as nacionais e as internacionais, as que têm cobertura diplomática e as que têm esconderijo, a corrupção dizia, será o pior flagelo na sociedade e na política. O maior factor de desigualdade. A causa de instabilidade e de vulnerabilidade económica. A fonte de impunidade e de imoralidade. O obstáculo ao desenvolvimento de uma economia sólida e previsível. É seguramente o maior perigo para a democracia e a liberdade.
A culpa é dos políticos e das políticas. No entanto, é a democracia que parece culpada. A democracia, que, coitada, pouco mais é do que um conjunto de regras de convívio e respeito. Mas a verdade é que a democracia paga pelos sistemas e pelas políticas que vivem à sua sombra.
A democracia portuguesa não consegue tratar dos seus demónios, em particular o da corrupção. Esta envenena tudo, ano após ano: investimentos, compras, nomeações, autorizações… Legal e ilegal, de um só ou de vários partidos, atravessa governos e parlamentos.
A democracia portuguesa não conseguiu estabilizar as suas instituições, designadamente as judiciais, as militares, as policiais, as educativas e as ligadas à saúde. Nunca são só as políticas que estão em causa na luta partidária e no debate parlamentar, são também, erradamente, as instituições.
A democracia portuguesa não consegue assegurar a igualdade entre público e privado e cria dificuldades à livre iniciativa, apesar de as exportações terem salvado o país por duas ou três vezes.
A democracia portuguesa tem deixado que o sector público mantenha privilégios, em detrimento do sector privado, onde se trabalha e vive do mesmo modo, mas geralmente com menos benefícios.
A democracia portuguesa não conseguiu defender as suas melhores empresas financeiras, industriais e de serviços, deixando que tenham sido mal vendidas, assim se desbaratando valor, ou permitindo que as privatizações tenham sido feitas a favor de Estados estrangeiros, o que é notoriamente absurdo.
A democracia portuguesa não conseguiu pôr-se ao abrigo da cleptocracia legal e da actividade predadora que, através de financiamentos públicos a aventureiros privados e de contratos de Parcerias, criaram um sistema de açambarcamento de recursos que vai durar anos e custar milhares de milhões.
A democracia portuguesa não conseguiu consolidar sistemas de Justiça, de Segurança Social e de Saúde com competência, alguma independência dos corpos constituídos e respeito pelo sistema democrático.
A democracia portuguesa atingiu, para todos os efeitos, a maioridade, limite fixado por convenções. E está mesmo a ultrapassar os exemplos históricos conhecidos, como sejam os da República, do Estado Novo e da Constituição de 1933. Maioridade, sim! Idade adulta é que não! E maturidade, muito menos.
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Sábado, 3 de Janeiro de 2019
1 comentário:
Como sempre esclarecedor. Estava a fazer muita falta.
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