sábado, 24 de setembro de 2022

Grande Angular - A democracia à defesa

Atrasos no caso BES, graças a mais um mistério só para iniciados. Novos problemas, depois de uma mudança de juiz, cujo significado é um segredo! A rivalidade entre os grandes juízes de instrução continua a alta temperatura. As tropelias e tensões entre corpos, instâncias e instituições persistem e agravam-se, sem que haja sinais de acalmia. E sobretudo sem que se veja um esforço moderador, um gesto de liderança ou uma acção de arbitragem. A grande justiça portuguesa está num grande sarilho e numa enorme crise, é o menos que se pode dizer. A justiça portuguesa, a começar pelas altas instâncias, perdeu a serenidade.

 

Certos nomes pessoais ou códigos operacionais tornaram-se familiares. Entre outros, “Toupeira”, “Marquês”, “Furacão”, “Cavaleiro”, “Negativo”, “Football Leaks”, “Hells Angels”, “Lex” e “Prova limpa” são tão famosos como estâncias de turismo. Com ou sem razão, inocentes ou culpados, Duarte Lima, José Sócrates, Joe Berardo, Manuel Pinho, António Mexia, Luís Filipe Vieira e Rui Rangel, além de muitos outros, são nossos conhecidos como se fossem membros da família. Siglas notáveis fazem parte deste rol de incerteza, de quem se fala, mas de que pouco se sabe realmente: BES/GES, EDP/CMEC, BPP, BPN, PT…

 

Todos os dias, ou quase, há notícias sobre estes casos e aqueles processos. É o reino do inesperado, muitas vezes misterioso, nunca convincente. Muda o Juiz. Outro juiz contradiz. Um recurso trava tudo. Recomeça. Providência cautelar. Instrução. Adiamento. O número de casos, do mesmo processo, pode variar, aumentar ou diminuir, conforme a inclinação do juiz de instrução ou de qualquer outra instância. Percebe-se que juristas e jornalistas acabem por achar graça, se é que compreendem tudo. Mas o público não acha graça. O público desconfia. O público descrê.

 

Será que não se dão conta? Será que os magistrados judiciais, os magistrados do Ministério Público, os membros dos Conselhos Superiores, a Ordem dos Advogados, as associações profissionais e os sindicatos ligados à Justiça, todos os envolvidos, não se dão conta do mal que se está a fazer aos portugueses, à democracia e ao sistema de justiça? Será que não percebem que o que fazem agora, activamente ou por inércia, com cumplicidade ou indiferença, ficará a perdurar na má reputação da justiça em Portugal por décadas e décadas? 

 

E os políticos? Não reparam? Não sentem? Não se apercebem? Estão satisfeitos com o que vêm? Preferem viver e governar num país com justiça deficiente? Os governantes que se ocupam directa e indirectamente da justiça, os deputados que têm o privilégio exclusivo ou reserva de competências na legislação em matéria judicial, os altos funcionários judiciais e policiais não se dão conta dos danos e dos prejuízos que estão a ser infligidos à Justiça e à democracia por muitos e muitos anos? 

 

E os magistrados, os que não são cúmplices nem coniventes, que cumprem os seus deveres, que respeitam o melhor que podem a Constituição e as declarações universal e europeia dos direitos humanos, esses magistrados não se dão conta que, sem culpa nem proveito, sofrem da má reputação e da má fama que o sistema, as autoridades e as ovelhas ranhosas lhes impõem e provocam? Não entendem que o trabalho quotidiano e os esforços para cumprir as suas funções e para servir o povo perdem sentido e são destruídos pelos processos célebres, pelos arguidos famosos, pelos juízes importantes, pelos magistrados poderosos?

 

Como se não bastasse este estado geral, pequenas notícias revelam a dimensão do desastre. Uma avaria geral no sistema informático do Ministério da Justiça, mais uma, com duração e efeitos por vários dias, provocou adiamento de julgamentos e de actividade notarial, suspensão de registos e certidões…. Acaso? Fragilidade? Ataque malicioso? Já não é a primeira vez que o sistema de informação e comunicação da justiça revela a sua decrepitude e a sua vulnerabilidade. Não é possível acreditar sempre no acaso e na incompetência.

 

Inocente ou culpado, com razão ou sem ela, José Sócrates ajuda à festa. Em artigo de jornal, acusa as autoridades, especialmente o Ministério Público, de ilegalidade, enviesamento, compadrio e perseguição pessoal e política. Acusa, instaura processos e recorre de decisões judiciais. Verdades ou mentiras, merecem, por nós e para nosso bem, esclarecimento, decisão judicial, rapidez e clareza. E decisão dos Conselhos Superiores. Assim é que não! Sem resposta, sem esclarecimento, sem decisão transparente, não há justiça que resista.

 

verdade é que, se queremos a democracia, ocupemo-nos da justiça! Mais do que apenas defender, querem realmente os nossos políticos, as autoridades, os magistrados, os jornalistas e a opinião pública em geral, desenvolver e consolidar a democracia? Querem realmente impedir a extrema-direita? Querem limitar o partido Chega? Querem impedir o crescimento de qualquer forma de populismo de direita e de extrema-direita? Querem fazer o mesmo com a extrema-esquerda? Querem impedir a extrema-esquerda, seja a operária do PCP, seja a burguesita do BE, de crescer e regressar às antecâmaras do poder?

 

Há soluções para isso. Há caminhos para isso. Em vez de gritarem aqui d’el rei vem aí o fascismo, tratem do emprego e da saúde. Em vez de rosnar contra os extremistas populistas de qualquer bordo, ocupem-se da justiça. Em vez de berrar desalmadamente contra os fascismos, na convicção de que assim se trava esse ímpeto, tratem das migrações ilegais. Numa palavra, tratem da democracia e ver-se-á como os extremos mingarão. Tratem da Justiça e, sobretudo, dêem a impressão de que a democracia sabe tratar dos seus e de todos, sabe castigar e punir quem o deve ser, sabe prender e julgar os vigaristas, os ladrões e os corruptos. Tratem de fazer com que a justiça dê o exemplo, se revele mais igualitária, mais justa e mais eficiente. Uma justiça nunca deve ser igual à sociedade em que vive, uma justiça deve ser melhor.

 

Uma democracia à defesa é um regime fraco. Não acredita em si. Ou antes, não acredita o suficiente. Uma democracia forte é um regime político sereno, com poucas proclamações estridentes, mas que sabe crescer e desenvolver-se. É um regime tanto mais sólido quanto as leis são cumpridas e os juízes cumprem os seus deveres. Não é o regime no qual os seus titulares gritam, “não passarão!”, com a voz roufenha dos derrotados e dos medrosos. É o regime que acredita e que zela pelos direitos dos seus cidadãos.

 

Querem a democracia? Ocupem-se da justiça!

Público, 24.9.2022

 

 

  

sábado, 17 de setembro de 2022

Grande Angular - A culpa e a incompetência

 Em Portugal, o início do ano lectivo é um desastre. É normal. Há dezenas de anos que se sabe que as aulas começam mal. Que há horários por preencher. Obras por acabar. Professores precários a mais. Professores obrigados a viajar dezenas de quilómetros ou a mudar de residência. Alunos sem professores ou com programas incompletos. Alunos sem manuais à disposição e sem cantinas capazes de funcionar. E alunos obrigados a percorrer, todos os dias, muitos quilómetros. Este ano, mais uma vez, há milhares de “furos” nos horários e nos programas. É normal.

 

Há dezenas de anos que se sabe que as condições de alojamento dos estudantes universitários são deficientes, caras e pouco confortáveis. Há dezenas de anos que se sabe que a oferta de quartos pelas entidades públicas, as universidades, os institutos, as autarquias ou o ministério, é reduzida e muito insuficiente. Já se sabia isto há trinta anos, quando os estudantes eram 150.000. Continua a saber-se agora, que são mais de 400.000 e com uma situação infinitamente mais grave, de molde a que muitos estudantes deixem de estudar, que muitos candidatos desistam e que muitas famílias renunciem a essa possibilidade.

 

Nas últimas décadas, os progressos do ensino superior foram colossais. Isso pode medir-se em números de estudantes, de professores, de cursos, de licenciaturas e de doutoramentos. E também em acesso das mulheres às carreiras docentes e à investigação. Mas não tenhamos dúvidas que se poderia ter ido muito mais longe, que alguns ensinos poderiam ser de muito mais qualidade e que os cursos poderiam ser muito mais exigentes para a ciência. Que outros ensinos poderiam ser mais virados para a vida prática, a empresa e o emprego. Que a desigualdade social poderia ser menor e que o mérito poderia ser um critério nas regras de acesso e de progressão. Que muitas pessoas poderiam chegar aos estudos superiores se tivessem o benefício de uma acção escolar com meios e mais eficiente. Mais uma vez, as autoridades consideram que o medíocre é aceitável, o mau é passageiro, o suficiente é uma utopia e o bom é impossível. Cada um pensa que o seu ano, este ano, é melhor do que os anos dos outros, os anos anteriores. Todos se contentam com a mediocridade e convidam os cidadãos a fazer o mesmo.

 

É tanto assim que se acha aceitável que ainda haja milhares de situações como as acima descritas. Ano após ano, a situação oscila entre o mau e o péssimo, facilmente se considera o medíocre como razoável. Nunca é bom nem muito bom. Nem sequer suficiente. Ou antes, satisfatório, para as autoridades, é quando se pode demonstrar que “este ano” estamos melhor do que no “ano passado”. A ideia de que a maior parte das deficiências do início de ano escolar se podem tratar ou evitar faz parte das utopias que já nem sequer se desejam.

 

Há anos, talvez dezenas, que o Serviço Nacional de Saúde revela insuficiências notórias. Muitos serviços e centros de saúde acabam por praticar a desigualdade, mesmo sem querer, mesmo sem saber. Faltam médicos e especialistas em numerosos serviços e centros de saúde. Faltam médicos de família para centenas de milhares de cidadãos. Faltam ainda mais enfermeiros. Muitos médicos e enfermeiros deixam o SNS para os hospitais privados. Muitos outros deixam o país para o estrangeiro. A formação de médicos está sempre aquém do necessário. As condições de acesso para pacientes e doentes são muitas vezes, mesmo muitas, deploráveis e inaceitáveis. As filas de espera para consultas e cirurgias, mas também para exames e análises, são enormes, de semanas a meses. A eficiência das urgências é muitas vezes abaixo dos critérios mínimos. As condições de espera nas salas, nas recepções e nos corredores são geralmente miseráveis de desconforto para quem está aflito ou inquieto.

 

Também aqui, na saúde pública, se fizeram melhoramentos enormes! Temos números de médicos muito satisfatórios, entre os mais elevados da Europa. Tanto a despesa pública como a privada não cessam de aumentar. Mesmo assim, as filas de espera são inacreditáveis, sobretudo num país com números elevados de médicos e enfermeiros. Mesmo assim, há serviços que fecham por falta de pessoal. Mesmo assim é possível acontecer o que está agora diante de nós: todas as semanas, todos os meses, maternidades e hospitais anunciam a suspensão de nascimentos e de internamentos de urgência! É esta uma das mais escabrosas situações existentes na saúde em Portugal ou em qualquer sector da vida social, perante a qual dirigentes políticos e sanitários são capazes de alegar com problemas estruturais e causas longínquas, recusando as suas responsabilidades e ficando satisfeitos com qualquer melhoria, mesmo provisória, mesmo temporária, mesmo insignificante.

 

Saúde e educação! Dois bons exemplos, talvez os melhores, do que é a incapacidade de gestão, a deficiência de previsão, a falta de planeamento e a ausência de espírito prático e realista. Os governos sucedem-se na elaboração de estratégias a longo prazo, de planos integrados, de reformas estruturais, de políticas sustentáveis e de programas de recuperação e resiliência, assim como na criação de grupos de acção, de conselhos consultivos e de observatórios, todos de enorme sabedoria, mas sem qualquer noção das responsabilidades, de sentido prático e de espírito realista.

 

Sabe-se que a gestão, boa ou má, é quase sempre também uma questão política. O tratamento das questões de saúde e de educação depende muito das opções políticas, da ideia que se deve ter do público e do privado, do centralismo ou da autonomia, da política ou da tecnocracia, da ciência ou do social. Mas, a partir de ideias esclarecidas, de programas aceites, de leis aprovadas e de enquadramento definido, é a capacidade de gestão responsável que surge no primeiro plano. Na educação e na saúde, sobretudo nos casos referidos, nas filas de espera, na desigualdade social, na ausência de equipamentos, na descoordenação de instituições, na falta de pessoal e na absurda incapacidade de previsão e planeamento, o estado actual é deplorável. Sem desculpas. Não há anteriores governos, nem guerra, nem pandemia que justifiquem o estado de coisas. Nada justifica a incompetência, a falta de visão e a ausência de sentido prático da vida.

Público, 17.9.2022

sábado, 10 de setembro de 2022

Grande Angular - Serviço público

 Alguns casos recentes trouxeram até nós a sempre actual questão do serviço público. É problema complexo, nas suas várias dimensões: justiça, igualdade e humanidade. E também complicado nos aspectos mais práticos: dimensão, custo, pessoal e organização.

Se olharmos com espírito exigente pra a sociedade que nos rodeia, rapidamente veremos a miséria do serviço público. Após décadas de melhoramento constante, verificamos, por um lado, que o progresso foi enorme, mas, por outro, que as deficiências, nomeadamente a injustiça e a ineficácia, são as regras.

Em teoria e na generalidade, quase toda a gente está de acordo. O serviço público deve ser a primeira razão de existir e o principal objectivo dos mandatos políticos. Deve ser exigente, justo, eficiente e estar presente nas principais áreas de vida da comunidade: habitação, saúde, educação, justiça, transportes… Em poucas palavras: nas sociedades modernas, onde há pessoas e comunidades deve haver serviço público. Este destina-se não só a melhorar a nossa vida em comum, mas também a cuidar, com humanidade, dos mais vulneráveis e carentes… Não se trata evidentemente de afirmar que os outros não necessitam de tudo isso, justiça e humanidade. Mas há quem necessite mais do que outros. Ou há quem tenha mais dificuldades em aceder ao serviço público. Por isso, este deve ir ter com o cidadão e não o contrário.

Se, na generalidade, reina o consenso, no pormenor e nas escolhas, o desacordo é a regra. Pior ainda: na prática, a realidade é a permanente negação da lei. 

 

A questão dos preços e dos circuitos de comercialização do gás parece um “sketch” de humor. Negro, evidentemente. Não se percebe o que é necessário fazer, quando e onde. Não se entende por que razão, para o mesmo produto e a mesma rede de distribuição, se cobram preços tão medonhamente diferentes. A maior parte das pessoas, está simplesmente desorientada com a situação actual, apenas sabendo que corre sérios riscos de ver a sua factura grosseiramente aumentada.

A distribuição de dinheiro líquido directamente aos cidadãos (os 125€ e mais prestações) é outro bom exemplo do desnorte. A solução é política e socialmente discutível, como todas, felizmente. Mas, tendo em conta que está decidido, falta saber o como. A reduzida literacia financeira e institucional de milhões de cidadãos é a causa de muita perplexidade. As necessidades burocráticas, a exigência de certidões e a obrigação de apresentar números de Segurança Social, de Cartão de Cidadão ou de IBAN eliminam muitas pessoas. Repete-se o habitual: as regras definidas na lei e nos regulamentos estão perfeitas, mas a realidade não cabe nelas. A sociedade tem de se adaptar aos regulamentos, não o contrário. Pessoas sem cartões, sem números ou sem contas bancárias ficam excluídas ou suspensas, a não ser que inventem e contornem. Grande número das situações reais relativamente à paternidade, aos casamentos e aos estatutos familiares, sem falar na situação fiscal e de residência, fica excluído desta distribuição. A não ser que tenha tempo, mobilidade, meios e conhecimentos.

A gratuitidade dos transportes públicos em Lisboa, para jovens com menos de 23 anos e idosos com mais de 65, é outro caso. As dificuldades em aceder, as necessidades de burocracia, a imposição de um cartão renovável todos os meses (mesmo sem custos…)  e o número muito reduzido de locais onde se pode tratar da adesão vão criar mais um pesadelo.

Finalmente, as regras relativas aos cuidados de saúde paliativos ou continuados. As disposições legais, relativas à Segurança Social e ao Serviço Nacional de Saúde, parecem excelentes e cuidadosas. Os cuidados a domicílio também estão disponíveis e acessíveis. Na verdade, tudo é de enorme complicação. Inacessíveis. Inexistentes. Indisponíveis. As leis e as regras parecem feitas para outro planeta. O recurso à NET, solução promissora e miraculosa que tudo tornaria mais fácil, é muitas vezes um novo pesadelo. Teoricamente, tudo se pode resolver através do mundo digital. Na verdade, é tudo mais difícil. A não ser que se tenha experiência, conhecimentos, tempo e paciência.

 

Em todos estes casos e tantos outros semelhantes, as regras essenciais da filosofia e da política do serviço público estão em crise de modo permanente. As dificuldades de acesso são enormes. A burocracia é pesada e exclusiva. Há uma grande desigualdade prática e efectiva. A proximidade, palavrão político de todos os dias, é inexistente. A transparência, outro lugar comum, é uma ilusão.

Certidões, atestados, códigos de acesso…. Só quem nunca passou por estas andanças imagina o que pode ser o martírio, a burocracia e a espera. Os serviços exigem porque desconfiam dos cidadãos.  Os “sites” dos serviços são óptimos exemplos de falta de clareza e de dificuldade. É provável que os mestrados em informática se desenrasquem, mas essa não é a maioria da população. Perdem-se horas e dias. Telefona-se e ninguém atende. O “site” remete para o telefone, o telefone remete para o “site” …

Importa ainda referir os serviços e as empresas privadas que hoje, com a ajuda das autoridades, dominam os cidadãos, os condicionam, tantas vezes os enganam, os convencem a “fidelizar” por uns anos, naquela que é a mais importante receita de aldrabice, o estímulo à vigarice e a autorização para, com protecção legal, enganar os consumidores! Estas empresas, que alteram unilateralmente os contratos, fazem o que querem dos seus clientes, trabalham sobretudo nas áreas das telecomunicações, da electricidade, do gás e da água.

O rol da desumanidade é infinito. Longas filas para as consultas médicas, análises, cirurgias e serviços de enfermagem, além da Segurança Social e do fisco. As horas passadas ao telefone, com música estridente, à espera que nos atendam. A permanente invocação da transparência e da proximidade, lugares-comuns de quase todos os políticos, mas evidentemente uma mentira colectiva. As alterações contratuais sem aquiescência dos cidadãos. A criação ou imposição de taxas de toda a espécie. A falcatrua da “fidelização”, verdadeira armadilha para os incautos.

Já se pensou que de tudo isto quem mais sofre são os menos competentes informaticamente, os que têm menos conhecimentos e menos “contactos”? Será que as autoridades já gastaram uns minutos a ouvir quem procura e não consegue, quem espera e não alcança?

O maior teste do governo e das instituições democráticas é o do serviço público. Da sua humanidade.

Público, 10.9.2022

 

 

sábado, 3 de setembro de 2022

Grande Angular - Euros caídos do Céu

Basta ler jornais, ouvir rádio e ver televisão. O PRR está aí para gastar. Apesar da guerra na Ucrânia, da persistente pandemia, do rescaldo dos fogos florestais e da balburdia inédita do SNS, mau grado estas e outras grandes dificuldades, um sinal está já visível no firmamento: euros para distribuir. Benefícios a administrar. Subsídios a espalhar. Não obstante a inflação, talvez até por isso mesmo, toda a gente se prepara para gastar. O que não é mau, nem defeito. Só que… para gastar, é preciso criar riqueza!

É um dos grandes mitos da história e da política nacionais: os portugueses são incapazes de criar riqueza! Trabalham (e muito) com o dinheiro dos outros, mas os lucros vão-se. Trabalham (ainda mais) no estrangeiro ou sob as ordens dos outros, mas os rendimentos desaparecem. Trabalham (com gosto) graças aos dinheiros que os outros (a União Europeia) nos enviam, mas gastam muito e investem pouco. Se, finalmente, há momentos de prosperidade, é sempre graças ao estrangeiro. Foram os recursos e as matérias primas de África, da Ásia e da América Latina. Ou os empréstimos ingleses e franceses. Ou ainda os investimentos alemães, ingleses e americanos. Foi a emigração para o Brasil, a América do Norte e agora a Europa. Assim como tivemos a Europa em todas as suas versões: a EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio), a CEE (Comunidade Económica Europeia), agora a UE (União Europeia). São, finalmente, oligarcas chineses, russos e angolanos. Verdade é que os rendimentos e as riquezas que vêm do estrangeiro ficam nas mãos de poucos ou ao estrangeiro regressam.

Os mitos não ficam por aqui. As grandes empresas portuguesas (indústria, bancos e serviços) são estrangeiras na origem ou à chegada. A maior parte das grandes empresas e dos grandes serviços privatizados e reprivatizados, depois da revolução de Abril, ficou nas mãos de estrangeiros, tendo as empresas sido desvalorizadas e descapitalizadas. Estas empresas são submetidas aos interesses das multinacionais. Os estrangeiros só investem em Portugal em condições leoninas, exigem benefícios excepcionais, condições especiais e facilidades fora do normal.

Mas há mais. Os grandes empresários portugueses são podres de ricos, têm o dinheiro lá fora, pagam poucos impostos, são iletrados e egoístas, situam-se sempre à direita e sobretudo dependentes do Estado e dos favores políticos. Os trabalhadores portugueses são analfabetos e mandriões, só mandados à força e dirigidos por estrangeiros, têm inveja dos ricos e não defendem as suas empresas. As classes médias, as mais prejudicadas de todas, são miseráveis, detestam os ricos e os pobres, não sabem poupar, querem fugir para o estrangeiro. Todos eles, empresários, trabalhadores e classes médias, só pensam em si, não têm consciência do bem comum e acham sempre que tudo o que é estrangeiro, vive no estrangeiro ou vem do estrangeiro é sempre melhor.

Finalmente, o Estado cobra impostos a mais, gasta tudo consigo próprio e com os seus funcionários, que aliás são mal pagos. É incapaz de bem gerir e bem administrar. É vítima permanente da corrupção, está nas mãos dos interesses, das corporações, dos sindicatos e das empresas privadas. Não é capaz de bem administrar a saúde, a educação, a segurança social e a justiça, sectores onde reina a desigualdade social e nos quais o Estado português gasta mais do que a maior parte dos Estados europeus. Mas é nesses mesmos sectores, onde se revela um permanente caos, que os mais desfavorecidos são sistematicamente preteridos.

Portugal nunca soube criar riqueza de modo durável e estável. Nunca investiu com o sentido do tempo e das gerações futuras. Os Portugueses quiseram sempre ganhar depressa, muito e rapidamente, explorando e roubando se fosse necessário, desde que fosse no estrangeiro e fácil. Especiarias, escravos, açúcar, ouro, pedras preciosas, café, diamantes, petróleo e outras matérias primas fizeram riquezas fáceis e rápidas, mas frágeis e inconstantes. 

Muito do que precede é mentira. Ou enganador. E muito é verdade. Ou factual. Mas o problema é real: há incapacidade para criar riqueza em Portugal. Pelo menos em proporção do que se gasta, do que se necessita ou do que se espera. A legislação de atracção de investimentos estrangeiros é tosca, insuficiente, parola e venal. A actuação dos governantes e dos empresários junto dos meios financeiros mundiais dedicadas ao investimento é medíocre e pedinte. As condições legais e fiscais de desenvolvimento de uma actividade lucrativa em Portugal são difíceis, pouco atraentes e até repelentes. Os parceiros portugueses para grandes empresas e grandes investimentos estrangeiros são pouco experientes, muitas vezes tacanhos e quase sempre débeis. O Estado português, que cresce pouco, mas engorda muito, não tem agilidade para atrair investimento, ser flexível, garantir estabilidade e segurança. O Estado refugia-se no que sabe fazer, a burocracia, a corrupção e o favoritismo.

O PRR, Programa de Recuperação e Resiliência (designação europeia estúpida e saloia), é sinal exacto de que vêm aí Euros. Como se sabe e viu, não é a primeira vez que tal acontece. O governo faz propaganda todos os dias e anuncia medidas que são um verdadeiro bodo aos pobres. A oposição de centro e direita tenta antecipar-se e já propôs gastar, ainda mais do que o governo pretende, com a saúde, a educação, a segurança social, os idosos, os pobres, os sem abrigo, os imigrantes, os grupos do rendimento mínimo, os desempregados… A esquerda quer gastar ainda mais, evidentemente, liquidando, de passagem e preferência, a economia privada. Todos, aliás, governo, direita e esquerda, exigem uma acção imediata para contrariar a inflação, minimizar os efeitos dos aumentos do custo de vida e apoiar os aumentos das rendas de casa. Mas poucos, muito poucos, propõem ou exigem que se crie riqueza.

A pergunta é simples: quem vai pagar? Aonde há recursos financeiros para distribuir, para pagar as benesses e os benefícios, para sustentar aumentos de salários, subsídios e pensões, assim como para custear o aumento das despesas com a saúde, a educação e a segurança social? É tão estranho vivermos num país onde a principal preocupação é a de gastar dinheiro, mas nunca ou quase nunca de fazer dinheiro, criar negócios, desenvolver actividades e, numa só palavra, criar riqueza! 

Uma coisa sabemos: gastar sem criar pagar-se-á muito caro dentro de pouco tempo.

Público, 3.9.2022