É um dos mal-entendidos do nosso tempo: a escola deveria transmitir valores. Na esquerda e na direita, há quem pense assim. Democratas, fascistas e comunistas têm esse traço comum. Entre cristãos, muçulmanos, judeus e hindus, assim como entre laicos e ateus, há quem não tenha dúvidas: a escola deve dar valores. Deve ensinar a viver, preparar o crescimento, garantir o bom comportamento e formar cidadãos. O problema surge quando tentamos perceber o que cada um quer. E depressa se vê que querem coisas diferentes e contraditórias.
De comum, em abstracto, querem valores e crenças nas escolas. E recusam a “escola neutra”. Esta sempre foi um diabo maior. Salazar era fervoroso adversário da escola neutra. Tal como eram Perón, Pétain, Hitler, Mussolini, Goebbels, Estaline, Krupskaia, Mao Tsetung e os Ayatollahs. Todos querem que a escola se substitua às famílias, que os professores ensinem os jovens a viver e a jubilar nos bons costumes. Como é sabido, o que um católico quer da escola não é o que pretende um muçulmano. O que um nacionalista deseja não é a mesma coisa do que um laico socialista. O modo como António Sérgio idealizava a sua escola nada tinha de comum com a instituição de Carneiro Pacheco ou Hermano Saraiva. O que um comunista espera do ensino é muito diferente do que pensa um democrata-cristão. Europeus, ciganos, brasileiros, ucranianos, indianos, africanos e paquistaneses têm expectativas diferentes e esperam que as escolas transmitam as suas crenças e as suas tradições. Numa palavra, os seus valores. Mas os seus, não os dos outros. Assim é que todos os regimes autoritários pretenderam sempre o mesmo: as escolas devem formar os seus cidadãos, os cidadãos do seu regime.
Pouco a pouco, tem-se vindo a criar um “fundo comum”, uma espécie de ideologia que valoriza uma escola mais ecuménica. Há já alguns anos que os ministérios da educação, os deputados, muitos professores, várias associações e igrejas vêm trabalhando esta questão da construção de uma escola de valores e de crenças. Mais ainda, defendem, em abstracto, que a escola deve desenvolver a cidadania e a moral, para que se formem cidadãos livres e conscientes. Consideram mesmo que a escola deve substituir-se à família, aos amigos, à rua, aos grupos culturais e a outras formas de socialização, a fim de criar “verdadeiros cidadãos”. Os textos oficiais, elaborados nos últimos vinte ou trinta anos por todos os governos e todos os partidos, dão bem conta dessas ideias. Por exemplo, temos até, em Portugal, uma “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania”, assim como conceitos, organismos, documentos, guias, leis e regulamentos que dão conteúdo ao desejo de que a escola forme “cidadãos livres, democratas, responsáveis, igualitários e plurais”.
Pretende-se que a educação para a cidadania se ocupe de “direitos humanos, da igualdade de género, da interculturalidade, do desenvolvimento sustentável, da educação ambiental e da saúde”. Assim como de “sexualidade, media, instituições democráticas, literacia financeira e educação para o consumo, segurança rodoviária e risco (sic)”. Além disso, os jovens devem ser educados para o “empreendedorismo, o mundo do trabalho, a segurança, a defesa e a paz, o bem-estar animal e o voluntariado”. A fechar este missal, diz o texto que “os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas”.
A escola de valores e a educação para a cidadania criam problemas sem solução. A codificação desses valores é simplesmente impossível. Fica a cargo de quem? Existem pessoas e instituições que, para tratar do nacionalismo, do género, da sexualidade, da autoridade paterna, da organização da família ou do capital e do trabalho, sejam capazes de equilíbrio entre todas as sensibilidades doutrinárias e culturais? Como eleger valores de uma cultura sem afastar os de outra tradição? Pior ainda, como agregar valores de todas as culturas diversas e contraditórias? Outro problema é o da autoridade moral que zela pela aplicação das regras. Quem? O Parlamento? O governo? A Igreja? O sindicato? A academia?
Ensinar matemática e geografia, estudar história e ciências naturais, aprender a escrever e a falar línguas estrangeiras, consultar dicionários e bibliotecas, fazer fichas e resumos, preparar memorandos e sumários, tomar a iniciativa de estudar e investigar, debater questões morais e filosóficas, perceber e utilizar a tecnologia, prever uma actividade ou uma profissão, numa só palavra apender a pensar! Tudo o que precede parece estar submetido à principal função do professor: formar cidadãos!
Não vale a pena pensar que o Estado é o vilão e que as famílias são vítimas do Estado que se esforça por retirar as crianças e os jovens à influência familiar. Não. É verdade que o Estado, qualquer Estado contemporâneo, tenta afastar as famílias dos sistemas educativos. Mas os pais e as famílias agradecem e pedem mais. Uns não têm formação. Outros não têm meios. Uns trabalham longas horas por dia e não têm tempo e há quem queira os tempos livres para outros fins. Quaisquer que sejam os motivos, muitas famílias procuram com prazer que o Estado se ocupe da educação dos filhos. Não apenas da instrução e do ensino, mas também da formação e da educação.
Se uma escola der instrumentos e ferramentas para estudar e aprender a matemática, as línguas e a história, as ciências naturais e a geografia, a física e a química, ver-se-á rapidamente que os jovens crescem melhor. Se a mesma escola proporcionar aos seus jovens tempos e modos de cultura e artes, de música e de literatura, de pintura e de dança, as famílias depressa ficarão surpreendidas com as capacidades juvenis em desenvolvimento, sem necessidade de doutrina social. Se a escola conseguir organizar visitas de estudo, ateliers de criatividade e meios de expressão, prontamente surgirão resultados inesperados. Se a escola for capaz de ocupar os jovens durante dias inteiros, sem “furos” nem “folgas”, as consequências surpreenderão os pais e os mentores das escolas de valores. Se a escola for ela própria pontual e rigorosa, o seu exemplo será pedagogia maior. A escola tem de acreditar em si, nos seus alunos e nos seus professores, não tem de pregar valores e crenças. A escola deve respeitar a igualdade de todos os cidadãos, não deve fazer propaganda de uma qualquer forma de igualdade em detrimento de outra. A escola não deve promover uma religião, deve apenas respeitar os que professam uma qualquer. A escola tem de ser democrática, não tem de impingir a doutrina democrática.
.
Público, 12.7.2025