sábado, 10 de junho de 2023

Grande Angular - Ainda a dissolução

A interpretação dominante é a de que a dissolução do Parlamento é um castigo. Assim como um instrumento de fabrico de uma maioria ou de uma nova solução de governo, justamente com o objectivo de castigar o anterior. Só não partilham desta interpretação os apoiantes dos partidos no governo. Isto é, os militantes do PS, hoje; os do PSD, ontem. Se os partidos trocam as suas posições, no governo e na oposição, os seus apoiantes também.

 

Isto quase elimina uma das mais importantes causas da dissolução: a vontade do Governo de verificar o seu mandato, os seus poderes e a sua força. Esta deveria ser a principal causa de dissolução, logo a seguir à mais evidente: o termo da legislatura e o fim do respectivo mandato.

 

A terceira razão, que se aplica mais explicitamente à demissão do Governo e que deveria ser excepcional, é a da verificação que não há condições para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas. Isto faz com que seja ao Presidente que compete avaliar. Ele dissolve quando “acha” que os mandatos estão esgotados ou quando “acha” que é necessário assegurar o regular funcionamento das instituições. 

 

Ora, ao contrário do que pensa muita gente, as instituições funcionam regularmente. Sem qualquer dúvida. As tristes figuras dos interrogatórios parlamentares que passam por comissões de inquérito não constituem argumento suficiente. Aliás, sem eleição uninominal, o Parlamento futuro seria parecido com o presente e os deputados seriam mais ou menos os mesmos, o que faz com que os defeitos actuais sejam os defeitos do país. Não há dissolução que lhe valha.

 

O mau desempenho do Ministério Público e da Procuradoria geral da República também não chega para qualificar de irregular o funcionamento das instituições. Na verdade, estas, na maior parte dos casos, funcionam. Têm os seus problemas, que teriam de qualquer maneira, antes ou depois de eleições. A sua abstenção, designada pelos interessados por “falta de recursos”, deve-se a orientações específicas, em casos de certa natureza de crimes, de investigações e de prováveis arguidos. Nenhum destes problemas seria resolvido com a dissolução. Não seria um novo Parlamento que resolveria os processos de corrupção dos políticos e dos banqueiros.

 

A sucessão de trapalhadas e incompetências do governo ilustra bem a falta de valor do argumento do regular funcionamento das instituições. O caso TAP não seria resolvido com a dissolução. Aliás, foram vários os governos e as legislaturas com responsabilidades directas na má gestão, nas más decisões, nos actos duvidosos e nos gestos suspeitos da TAP e da sua tutela. A dissolução não resolveria o caso da TAP.

 

Melhor ainda, o caso do aeroporto, a jóia da coroa das barafundas deste governo. São vários os ministros e diversas as legislaturas responsáveis por esta história. A dissolução do Parlamento não traria solução eficaz. O mais provável seria mesmo que um novo Parlamento trouxesse mais uma variante.

 

Estará o regular funcionamento das instituições prejudicado pela crise da justiça, dos seus atrasos, da sua ineficácia e da sua possível parcialidade? Será esse um motivo suficiente para dissolver o Parlamento e convocar novas eleições? É evidente que não. A justiça portuguesa funciona mal, cada vez pior, há anos ou décadas. Nunca uma dissolução trouxe melhoria no funcionamento da justiça.

 

Também não é provável que a dissolução do Parlamento seja remédio eficaz para alguns dos casos mais gritantes da vida social: a Educação e o Serviço Nacional de Saúde. Este último, em particular, encontra-se em miserável estado. Quase todos os últimos ministros, provavelmente todos, garantiram que a situação era difícil e todos declararam que os problemas seriam resolvidos dentro de pouco tempo e terminaram os seus mandatos deixando a situação pior do que quando lá chegaram. Sem mudança de política, sem uma revisão nacional do programa de educação, sem um novo consenso maioritário sobre a saúde, será muito difícil que uma mera dissolução, seguida do mesmo governo ou parecido, seja solução.

 

Pedro Nuno Santos e João Galamba são seguramente as pessoas que mais danos causaram a este governo e mais prejuízos deram ao Partido Socialista. Mas o grau de descontentamento da população é muito superior ao causado por aqueles dois desastres e pelos seus colegas abstencionistas ou invisíveis. A insatisfação dos cidadãos tem fonte nos cada vez piores serviços públicos, a começar pela saúde e pela educação. Tem também origem na crise crescente da justiça, da habitação e do custo de vida.

 

A sucessão de erros e incompetências avulsas, com casos de gravidade diversa, ilustra bem a deriva política em que se encontra este governo, mas que não é equivalente a uma crise institucional. Trapalhadas como os problemas do consumo do tabaco, a revenda da EFACEC, os lucros cosméticos forjados da CP e da TAP, a crise dos transportes públicos e os problemas laborais com os oficiais de justiça, os professores, os auxiliares de educação e os enfermeiros, são todos casos de políticas, não de regular funcionamento das instituições. Ora, quem avalia os problemas de políticas é o eleitorado, não o Presidente da República. As avaliações do eleitorado fazem-se com datas marcadas e calendários previstos. Estas avaliações fazem-se após o cumprimento ou desenrolar de mandatos. Estas avaliações não se fazem de acordo com o que “acha” o Presidente da República. Este tem funções e poderes muitos mais importantes e nobres, convém reservar-se para isso. Aliás, mais do que um remédio, a dissolução é, ela própria, um exemplo de não funcionamento regular das instituições.

 

Na opinião pública, na comunicação social, nas redes sociais e nas academias, é comum e crescente a opinião de que são necessárias eleições. Mas esses reflexos traduzem um real descontentamento, não o irregular funcionamento das instituições.

 

Já nos partidos políticos e nos órgãos de soberania há muita gente que quer novas eleições, mas não o diz. Há mesmo quem não queira, mas diga que não se importa. Ou sobretudo quem queira, mas não tenha coragem para o dizer. Em poucas palavras: quer a dissolução quem pensa que pode ganhar com novas eleições. Não as deseja quem pensa que as pode perder. Isto não é mau funcionamento das instituições.

 

O 10 de Junho é o momento adequado para o dizer: a nação está em muito mau estado. É ao eleitorado, em eleições regulares, que compete verificar isso. Não ao Presidente, em dissolução irregular.

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Público, 10.6.2023

terça-feira, 6 de junho de 2023

Grande Angular - A consciência tranquila

Ter “a consciência tranquila”! É um dos mais interessantes fenómenos da vida política, mas também de outras vidas, como por exemplo, a económica. Ter “a consciência tranquila” é uma fase obrigatória de qualquer processo que envolva erro ou pecado. É indispensável em qualquer ocorrência que inclua culpa ou insídia. 

 

Quando alguém, nomeadamente um político, é acusado do que quer que seja, desvio, fuga fiscal, cunha, erro, ocultação, roubo ou mentira, rapidamente aparece a público a justificar-se, depressa desmonta as acusações, procura explicações e encontra desculpas, umas mais críveis do que outras, terminando muitas vezes os seus esclarecimentos com a beata frase: “tenho a consciência tranquila”. 

 

Em geral, salvo raras excepções, mesmo muito raras, essa belíssima frase quer dizer que o suspeito, arguido ou acusado é culpado. É um par estranho: a consciência tranquila e a culpa! Em Portugal, infelizmente, não se pode dizer que as cadeias estejam cheias de consciências tranquilas! Pela simples razão de que os processos judiciais ou policiais raramente chegam ao fim, não se realizam, esperam, são transformados em megaprocessos, encontram-se em segredo de justiça ou simplesmente prescrevem. Mas se olharmos para os casos mais flagrantes, os que incluíram cadeia ou pulseira electrónica, os que passaram pelo termo de residência, os que se encontram em fase de busca internacional e mandato de captura e os que chegaram já à prescrição, é muito fácil verificar que praticamente todos incluíram a sacrossanta frase “estou de consciência tranquila”! Pode mesmo considerar-se que essa frase é a mais certeira admissão de responsabilidade sem confissão de culpa. A intenção é oposta, o resultado involuntário, mas quase nunca falha!

 

Licenciamentos duvidosos, autorizações discutíveis, adjudicações habilidosas e favorecimentos encapotados conduzem inevitavelmente ao testemunho público, por parte dos visados, de que a tranquilidade da sua consciência poderia ser a garantia de honestidade. Nomear amigos, contratar parentes, informar correligionários, denunciar pessoas à concorrência ou a embaixadas, encomendar estudos e pareceres a colegas, sabotar processos de decisão, manipular sorteios e divulgar segredos são tão comuns no nosso espaço público! Tão comuns quanto os seus responsáveis ou autores terem a “consciência tranquila”!

 

À falta aflitiva de justiça sucede, cada vez mais, o papel investigativo dos jornais e das televisões. Graças a este último, têm os cidadãos percebido e sentido que existe um mundo estranho feito de ilegitimidade e de abuso de poder, que geram, paradoxalmente, não a inquietação e o receio, mas a tranquilidade da consciência! Nas últimas semanas foi um autêntico festival. Primeiro, as nomeações e as demissões da TAP, eram, por si só, casos enormes. Mas depressa ficaram medonhos, por causa das ramificações e implicações, incluindo as famigeradas operações de privatização, nacionalização e reprivatização. Sem falar nas compras e vendas de aviões. Segundo, o caso SIS, que ganhou vida própria dada a gravidade da ocorrência e a atrocidade da acção política subsequente. Terceiro, a agora rejuvenescida operação Tutti Frutti, que envolve estranhas alianças entre partidos rivais e cumplicidade entre poder central e câmaras. Dois factores comuns a todas estas situações: o abuso de poder e a “consciência tranquila”!

 

Quase todos os envolvidos no agora famigerado caso TAP, incluindo praticamente todos os ministros e secretários de Estado, assessores e adjuntos, administradores e directores, deputados e altos funcionários, muitos dos que tiveram intervenção pública passaram por esse momento de verdade que é o da “consciência tranquila”. 

 

O mesmo se terá passado com o complexo e infindável processo de decisão sobre o futuro aeroporto de Lisboa, que já envolveu uma dezena de localizações e variantes, milhões de euros gastos em estudos definitivos, processos de adjudicação, expropriações, declarações de interesse público, preparação de construção de estradas e projectos de caminhos de ferro, portos, pontes e aeroportos propriamente ditos. Quando postos em causa, governantes, técnicos, estudiosos e consultores, praticamente todos tiveram o seu momento de honra: “tenho a consciência tranquila”!

 

Se formos um pouco mais atrás, a processos mais antigos e já quase íntimos que podemos tratar por tu, a sensação é a mesma. São designações familiares que usam os nomes dos arguidos, das operações policiais ou das empresas e instituições.  Vistos Gold, Marquês, Freeport, Lex, EDP, BES, BPN, TGV, Monte Branco, Casa Pia, E-Toupeira, Bragaparques, Tecnoforma, Luanda leaks, as PPP, Futebol leaks, vários presidentes de clubes, diversas SAD e algumas das câmaras municipais mais importantes do país: o rol é longo! São cerca de 1.000 os processos pendentes cuja resolução se arrasta muito lentamente ou simplesmente não avança. Quase sempre, cada vez que ocorre uma expressão pública, tivemos o prazer de ouvir manifestar-se a “consciência tranquila”.

 

É interessante e curioso notar que não se trata apenas de casos de corrupção e roubo. Conforme as ocorrências, há muito mais do que isso. Há sobretudo a sensação de que o uso do poder e da influência no nosso país está sujeito a regras e práticas vergonhosas que todos os dias negam os direitos do cidadão e a honradez do serviço público.

 

A maneira como muitos políticos usam o seu poder e as suas funções denota um espírito de predador sem remorsos. O modo como alguns altos funcionários e empresários exercem os seus cargos revela uma insuportável atitude: a de quem utiliza regras e poderes como se o espaço público fosse propriedade sua, reserva de caça ou trampolim para a notoriedade e a importância. Nem sempre estamos perante os clássicos procedimentos de roubo, desvio e ganho sem causa legítima. Tão usual quanto isso é o comportamento que se destina a aumentar poder e importância, influência e protagonismo. Favorecer grande potência e respectivas embaixadas nem sempre dá dinheiro e lucro, mas muitas vezes dá alavanca e ponto de apoio. Deixar abrir um Plano Director Municipal pode dar lucro, mas também reputação e pose. Empregar amigos e ocupar cargos é compensador. Nem tudo é vil dinheiro, mas tudo é sinistra importância.

 

Uma coisa é certa: a “consciência tranquila” de uns é a inquietação de todos nós. 

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Público, 3.6.2023

sábado, 27 de maio de 2023

Grande Angular - Golpe de misericórdia

 Discutem-se, com leviandade, as hipóteses de dissolução e de convocação de eleições antecipadas. São maus hábitos. Quando há crise, em Portugal, logo se pensa na dissolução. Além de ser um pensamento inadequado, é pouco frequente nos países democráticos. Nestes, quando atravessam crises, a dissolução é mesmo o último recurso, quando já não há governo possível nem solução parlamentar.

 

A decisão de dissolver um Parlamento e convocar eleições antecipadas pertence, nos países democráticos, ao Chefe de Estado, Presidente ou Monarca. Mas a iniciativa é do Governo ou do Parlamento. Portugal é, neste capítulo, país à parte, um dos muito raros, quase único, onde a iniciativa e a decisão pertencem a quem não governa nem legisla, isto é, ao Chefe de Estado. É mais uma especialidade de um regime inventado por juristas sofisticados.

 

Países há, como a Itália, onde a iniciativa e a decisão parecem pertencer ao Chefe de Estado, mas, na verdade, aquele age depois da tomada de posição do governo e do parlamento. Também há países, nomeadamente a França, onde o Chefe de Estado toma claramente a iniciativa e a decisão. Mas o chefe de Estado francês também é, para todos os efeitos políticos, chefe de governo.

 

É legítimo defender a utilização intensiva do poder presidencial de dissolução do Parlamento e de convocação de eleições antecipadas. Acontece que tal prerrogativa pode ser muito negativa para a estabilidade institucional, assim como pode ser danosa para a natureza do regime. Realmente, em regimes parlamentares, a decisão da dissolução e da convocação de eleições é assunto do governo e do Parlamento.

 

É difícil sublinhar a inspiração parlamentar do regime português. Na verdade, quase tudo se inclina sempre para reforçar o seu lado presidencialista. É pena. O carácter semipresidencialista é tipicamente nacional. Nem peixe, nem carne. Juridicamente sofisticado. Deliberadamente complexo. Inocentemente destinado a criar problemas, não a resolvê-los.

 

É notoriamente mais democrático um entendimento restritivo dos poderes de dissolução. Só em caso muito grave. Só em caso de ingovernabilidade. Sem cuidar de sondagens ou de alternativas. Sem pedir ao Presidente que encare as hipóteses de ajudar este ou aquele. Sem lhe dar a oportunidade de fazer o que mais lhe convém. Os exemplos que temos da história recente mostram como a dissolução pode ser vassoura de aprendiz ou ferramenta de feiticeiro. Nem uma nem outra parecem úteis. Para a convocação de eleições antecipadas, os argumentos essenciais são a maioria impossível ou esgotada, a impossibilidade de formar governo e de aprovar orçamento e a necessidade, sentida pelo governo, de refazer uma legitimidade. O resto, os sentimentos e as sensações do Presidente da República, deveriam ser evitados.

 

Há hoje uma crise política? Há. Há ministros incompetentes? Não é o que falta. Há governantes inexperientes? Muitos. Há fragilidade na coordenação governamental? Visível. Há oscilações programáticas e de orientação? Flagrantes. Há ministros imaturos desejosos de conspirar? Sabemos quem são. Tudo isto se resolve com meios tradicionais e soluções conhecidas. A remodelação pontual é feita para isso. As grandes remodelações servem grandes desígnios, nomeadamente o de começar de novo. A demissão do governo, a pedido do Primeiro ministro, a quem o Presidente da República solicita nova solução, é remédio usado em todo o mundo democrático.

 

Outros meios mais simples têm os mesmos efeitos, os de renovar e corrigir. Por exemplo, a apresentação ao Parlamento de novo programa de governo. Tal como o recurso à moção de confiança devidamente votada. Ou o uso da moção de censura, tão denegrida, mas tão útil. É interessante saber se a maioria ainda existe, se esta se mantém coesa, se a composição do governo pode ser ajustada, se os apoios parlamentares podem ser renovados, se ministros mais competentes podem ser chamados e se é conveniente afastar ministros moralmente fragilizados ou metidos em sarilhos. Há tantos meios constitucionais que devem ser utilizados antes da dissolução! As eleições antecipadas são ferramentas naturais, mas excepcionais. Dissolução, só em último caso. Não é por acaso que lhe chamam “bomba atómica”!

 

Em que medida uma dissolução resolveria um dos problemas actuais? Visivelmente, nada! O que é que a dissolução não resolve? A Justiça! Os serviços públicos! O SNS e as filas de espera. Os alunos sem aulas. As greves dos transportes públicos. As greves dos tribunais. Os adiamentos dos processos judiciais. O custo de vida e os preços dos alimentos. As migrações clandestinas. Os trabalhadores ilegais empilhados em dormitórios. Para tudo isto, há soluções conhecidas: novos ministros e dirigentes da administração, novos programas e orçamentos… Dissolução é que não!

 

Mesmo a questão do SIS, verdadeiramente demoníaca, pode ser resolvida de mil maneiras sem ser necessário recorrer ao poder de dissolução. Aliás, esta última, em si, nada resolveria. O caso do SIS necessita de várias respostas: demissões de membros do governo envolvidos, substituição de responsáveis, alteração da lei orgânica e redefinição de regras de envolvimento. A dissolução da Assembleia é que não leva a sítio nenhum.

 

Nas actuais circunstâncias, a dissolução, antes e em vez dos outros mecanismos, parece um capricho do Presidente, um cheirinho a sondagens, um favor, um jeito, um palpite, um receio, uma vaidade… A verdade é que não se deveria dissolver, nem antecipar eleições, com desígnios suspeitos, como por exemplo o de proporcionar maiorias aos amigos ou facilitar a vida a outro partido.

 

Antecipar eleições destina-se a pedir legitimidade e decisão ao eleitorado, não a pedir confirmação de desejos secretos do Presidente da República. Não se dissolve a pensar nas sondagens. Nem nos amigos a crescer ou nos inimigos a diminuir. Seria condenável dissolver com segundas intenções.

 

No momento presente, seria aliás inaceitável o PR dissolver um Parlamento e pôr um termo a uma legislatura no momento em que prossegue um dos mais complexos e controversos inquéritos parlamentares! Seria um gesto político que permitiria especulações legítimas. Favoritismo? Proteger um ministro? Favorecer um governo? Destruir um inquérito que poderia revelar factos inquietantes? Ao dissolver, o PR estaria a liquidar um inquérito, incluindo possíveis conclusões. Convocar eleições nestas condições é evidentemente suspeito e inquietante!

 

Dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas é mais um golpe na democracia parlamentar.

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Público, 27.5.2023

sábado, 20 de maio de 2023

Grande Angular - Uma República de Garotos

Podemos ter a certeza: neste caso da TAP, dos respectivos antecedentes e das devidas sequelas, há, entre os seus intervenientes, um ou vários malfeitores. O problema consiste em saber se são todos ou só alguns.

 

Podemos ter outra certeza: há, neste processo, um ou vários mentirosos. Falta saber se são todos ou só alguns.

 

É ainda certo que há alguém a preparar um roubo, a cometer uma fraude, a obter algo indevidamente, a tentar assassinar politicamente alguém, a liquidar um adversário e a destruir quem sabe segredos. Só não sabemos se é só um, se são vários ou se são todos os intervenientes.

 

Sabemos também que estão envolvidos titulares de cargos políticos, altos funcionários do Estado e altíssimos responsáveis da Administração Pública, universo este que pode incluir um Primeiro ministro, vários ministros e ex-ministros, diversos secretários de Estado e ex-secretários de Estado, chefes de gabinete, adjuntos, assessores, auditores jurídicos e administradores de empresas públicas. Uma vez mais, não sabemos se todos ou só alguns têm culpas e responsabilidades.

 

É seguro que algo está em causa, mais importante do que um computador, dois socos, três bofetadas e uma ameaça de agressão. Num ministério como este, das Infra-estruturas, é difícil encontrar documentos confidenciais muito sérios. Também num país como o nosso, não é crível haver segredos de Estado vitais, ainda por cima gravados no computador de um adjunto! Muito dinheiro, muitos interesses, enormes favores e imensas negociações: eis o que pode estar em causa.

 

Temos diante de nós a coreografia ou o cenário perfeito da mentira: do mesmo acontecimento, dos mesmos factos, com os mesmos protagonistas, existem pelo menos duas versões contraditórias, dois elencos factuais diferentes e opostos e evidentemente dois perpetradores.

 

Um bando em funções de Estado, instituições supostamente respeitáveis, departamentos governamentais com responsabilidades, deputados eleitos e representantes directos dos cidadãos, empresas públicas, escritórios de advogados famosos, salteadores de capitais internacionais, funcionários de Estado obrigados a limpar as estrebarias e empresas internacionais de consultadoria estão atarefados à volta de um ministério. Este, por sua vez, ocupa-se de tudo quanto é importante na economia futura do país: aviões, aeroportos, comboios, caminho-de-ferro, portos fluviais e marítimos, grandes pontes, energia, rede eléctrica nacional, barragens e centrais térmicas e mais, tanto mais, em duas palavras, quase tudo, nas mãos de um ministro… É isso que está em causa! São decisões de muitos milhares de milhões! São os marcos da economia futura do país. É o maior investimento de que há memória e de que haverá crónica no futuro! É isso que está em causa, não é um computador, um telemóvel, uma ameaça contra quatro mulheres, um murro de um homem, uma grosseria de um ministro, um engano de um telefonema… 

 

Já se percebeu que houve mentira, traição, ciúme, engano, ameaça, violência e abuso. Mas porquê? O que estava em causa realmente? Dinheiro? Interesses estrangeiros? A companhia de aviação? O aeroporto? O lítio? Os comboios e o TGV? A rede eléctrica nacional? As “renováveis”? Uma coisa parece certa: para que os intervenientes se tenham deixado enredar em cenas ridículas próprias de telenovela, é necessário estarem de acordo sobre um ponto: o silêncio sobre o essencial. Fica-nos a certeza de que este silêncio e a zanga têm origem num passado de cumplicidade.

 

Ao longo deste processo, pelo que se sabe, alguns ou todos se portaram mal, abusaram de poder e de funções, mentiram, esconderam, ameaçaram, agrediram, roubaram, destruíram, quebraram, negaram, tentaram liquidar, apagaram documentos, “limparam” telemóveis e computadores, sonegaram provas, esconderam fontes e acusaram falsamente outras pessoas. Todos? Só alguns? Quem?

 

Raramente, nestas décadas que levamos de democracia, se atingiu um ponto tão baixo de miséria moral, de atentado político, de vilania, de imoralidade e de sem vergonha! Há gente que, por bem menos, reside actualmente na Penitenciária, em Custoias ou em Pêro Pinheiro. Raramente como agora a Justiça portuguesa esteve tanto em causa. Raramente como agora o Estado de Direito esteve tão ameaçado.

 

Na mafia, nos gangues de Nova Iorque, entre oligarcas de Moscovo, nas redes de tráfico de droga, no mercado do sexo e de trabalhadores clandestinos, nos serviços de imigrantes, no comércio de armamento, nos arranha-céus de magnates do petróleo ou nos resorts dos bilionários dos metais raros, há procedimentos parecidos com aqueles que se adivinham neste processo. Com a diferença de montantes e de pessoas envolvidas, com certeza. Mas com uma similitude moral indiscutível.

 

Parece a República dos Garotos. Pelo que se julgam superiores e infalíveis. Pela superioridade moral de que crêem usufruir. Pela inteligência sistémica com que tratam as estratégias de longo prazo e nada entendem da vida real. Pelo desprezo com que avaliam os outros, a opinião pública e os eleitores. Pelo modo como substituem as regras e as leis pelos seus gestos, o seus gostos e os seus valores. Pelo seu carácter atrabiliário e pela irascibilidade adolescente. Pela palavra gratuita, pela moral que muda, pela crueldade constante, pelo cinismo indisfarçável e pela hipocrisia como hábito e regra: por estes e outros atributos, estas pessoas, algumas destas pessoas, muitas destas pessoas não deveriam ter acesso a postos de comando, nem ter a capacidade de influenciar a vida de outros. Estamos perante pessoas que só têm regras claras e precisas: eles próprios, os seus amigos, os seus partidos, as suas famílias, as suas empresas e as suas auréolas de glória narcisista que designam por interesse público. Estes Garotos divertem-se com o mal dos outros, brincam e desprezam os inferiores e os menos dotados, odeiam e perseguem os superiores e mais capazes. E têm enorme consideração por si próprios.

 

Como é possível que alguns ministros capazes, alguns governantes decentes, alguns altos funcionários competentes, alguns deputados honestos e alguns profissionais honrados se deixem enlamear por estes Garotos? Nunca se perceberá a razão pela qual académicos probos, professores dedicados, engenheiros competentes, autarcas responsáveis, sindicalistas empenhados, intelectuais com sentido moral da vida e políticos ciosos do bem comum se deixam envolver nesta história a todos os títulos tão sórdida.

 

 

Público, 20.5.2023 

sábado, 13 de maio de 2023

Grande Angular - Prestar contas

 É certamente uma das mais nobres e interessantes actividades da política: prestar contas! Aos clientes, aos militantes e aos apoiantes. Aos adversários, aos independentes e aos neutros. Às instituições, às empresas, aos sindicatos e às associações. Mas sobretudo aos eleitores.

 

A prestação de contas, um dos trunfos, uma das virtudes e uma das armas mais importantes da democracia, inclui actividades diversas. Por exemplo, comparar o que se fez com o que se prometeu. O que é anunciado nos programas eleitorais, os balanços e os relatórios, os programas para novas eleições e sobretudo a liberdade de expressão revelam o grau de cumprimento. A palavra dada foi cumprida? Será que se ficou aquém ou foi além? Os imprevistos justificam-se? Há quem proponha melhor?

 

Além de outras formas de prestação de contas, a mais importante, mais certeira e mais concreta é a que se traduz em custos. A noção de contas revela a sua absoluta adequação. Quanto custou? Quanto se gastou? Quem pagou? Como compara com o prometido? Justificam-se os custos a mais ou as despesas imprevistas? O que se gastou é superior ao que se ganhou? Quem ganhou e quem perdeu?

 

A nossa democracia, que faz em breve 50 anos, tem muitos defeitos e muitas virtudes. Como todas. Mas tem um mal particularmente chocante: a falta de prestação de contas. Curiosamente, não são só as autoridades que não prestam contas (o que prometeram e o que gastaram), como são as oposições que raramente se interessam por isso, provavelmente na esperança ou com o receio de que chegue um dia a sua vez.

 

Os orçamentos do Estado (assim como os orçamentos das instituições, das administrações e dos serviços) são belos exemplos desta falta de prestação de contas e da respectiva explicação. Diz-se quanto se vai gastar (é uma necessidade legal e contabilística), mas não se diz quanto se gastou, quanto se perdeu, quanto se ganhou. Quando se aprova um orçamento anual, nunca se tem em mãos os resultados do ano ou dos anos anteriores, o que faz com que o essencial das discussões se resume aos governos a gabarem-se do que querem gastar e as oposições a dizerem que é pouco, que não basta e que é preciso gastar mais com todas as rubricas: saúde, educação, obras, autarquias, estradas, segurança social e tudo o resto.

 

Por várias razões, entre as quais figura o desnorte actual do governo, vivemos tempos em que a ausência de contas e de prestação se faz especialmente sentir. As perdas imprevisíveis, como as das crises internacionais, da inflação, dos custos da energia, da guerra na Ucrânia e da pandemia, têm sido enormes e transformaram as contas em nebulosas. Mas isso, que os governos entendem ser justificações para a sua incúria, o seu abuso e o incumprimento de dever, é exactamente o contrário: tudo deveria ter como efeito uma maior exigência de informação, uma mais apurada prestação de contas e um reforçado rigor na sua apresentação pública. Mesmo a louvável e talvez bem conseguida política de “contas certas” tem que se lhe diga. Na verdade, as “contas certas” são de ordem orçamental, contabilística e global, não política, não democrática e não pormenorizada. São contas certas feitas de rubricas incertas.

 

Quanto se gastou já com o aeroporto de Lisboa? Em estudos, indemnizações, expropriações, contratos e preparativos? Quanto custou mudar três ou quatro vezes de ideias e de opiniões? Quanto custaram os projectos e as avaliações? Quanto está previsto que venham a custar os novos projectos e as novas avaliações? Quais são as implicações das mudanças e dos adiamentos? Em novos custos? Em obras na Portela? Em voos perdidos? Em passageiros, emigrantes e turistas desviados para outros aeroportos e outros países? Quanto se gastou e perdeu já em expropriações e indemnizações? Quem pagou umas e outras? Quanto se vai gastar a mais por causa do adiamento e dos atrasos?

 

Quanto se perdeu já com a TAP? Quanto custaram as fantasias da privatização, os pesadelos da nacionalização e a loucura da reprivatização? Quanto se perdeu com as compras, vendas e trocas de aviões e outros equipamentos pesados, com as indemnizações, os adiantamentos e as compensações devidas pelos negócios frustrados, pelas alterações imprevistas e pelas mudanças intempestivas? Quanto perdeu a TAP? Quanto a TAP deixou de ganhar? Quanto perdeu o Estado accionista? Com tudo o que se passou recentemente, que valor a TAP perdeu no mercado e quais as perdas potenciais que se verificarão, em caso de privatização? O que custou mais à TAP e aos contribuintes: as greves do pessoal ou a resistência do governo?

 

Quanto tem custado aos cidadãos a desordem nos transportes públicos, sobretudo nos comboios? Quanto tem custado a falta de manutenção e de investimento nos caminhos de ferro? Quanto já custou o fecho da linha do Douro e os estudos para a reabrir? Quanto se gastou com o frustrado TGV, cujos estudos iniciais se fizeram, incluindo primeiros investimentos, obras paradas e interrompidas, grandes indemnizações pagas a empresas de construção e eventuais expropriações? Quanto se está a perder com os principais comboios e as principais linhas em estado deplorável?

 

Quanto custaram as privatizações aceleradas, seguidas de desmantelamento, fecho ou transformação radical das empresas de bens e serviços especialmente valiosas, como a electricidade, o gás, o petróleo, os cimentos, a celulose, a rede energética, as telecomunicações e outras?

 

Quanto se ganhou e perdeu, quanto se está ainda a perder, quem ganhou e quem perdeu, com a venda das empresas e das redes energéticas, assim como com a das barragens, cujos negócios parece terem sido ruinosos para o erário público, sobretudo para os cidadãos, mas cujos valores aproximados são desconhecidos?

 

Quanto se tem perdido, quem tem sido prejudicado, quanto perdem e pagam os cidadãos com as greves e a desordem nos tribunais, com deslocações inúteis, dias perdidos no trabalho e no emprego, despesas efectuadas e causas não resolvidas? O que o Estado tem perdido e o que tem sido pago pelo cidadãos não são já muito superiores aos custos de um possível acordo salarial com os oficiais de justiça? 

 

E, finalmente, a pergunta do bilião de dólares: quanto pagaram até agora os contribuintes pelos desmandos do BES, do BPN, do Banif e do BPP? Quanto poderia ter sido evitado?

 

Sem respostas a estas e outras perguntas similares, Portugal será sempre uma sociedade refém e uma democracia hipotecada.

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Público, 13.5.2023

sábado, 6 de maio de 2023

Grande Angular - Quem perdeu. E quem ganhou.

 Foram, têm sido, momentos inéditos na recente história portuguesa. E não parece que tenham acabado. Foram momentos de confronto público particularmente graves e ácidos, com pouco ou nenhum precedente. Os cidadãos tinham o direito de ficar a saber melhor o que se passou e passa, mas sobretudo a conhecer para poder escolher. Qualquer pessoa pensou que o embate podia ser sério e grave. Mas não. Tratou-se de uma competição. E não se ficou a conhecer a causa nem o que estava em jogo.

 

Muito ou tudo parece resumir-se ao confronto entre o Primeiro-ministro e o Presidente da República. Este frente-a-frente, com origem aparente no governo e no mais incompetente e egocêntrico de todos os seus ministros, João Galamba, era simplesmente sobre as relações entre os dois órgãos de soberania.

 

Diante de grandes afrontamentos, há sempre quem pergunte: Quem ganhou? Quem perdeu? Neste nosso caso, não falha a regra. E a resposta não é muito complexa ou imprevisível: perderam todos. Uns mais do que outros, mas todos perderam. E os portugueses também. 

 

O governo perdeu. Perdeu força, sentido e seriedade. O governo ficou condicionado por este confronto e todos os seus membros ficaram reféns da solidariedade com João Galamba. Os ministros passaram a ficar sob inspecção, auditoria e fiscalização permanente por parte do Presidente da República, função inédita no regime constitucional. O governo desperdiçou um formidável capital, único desde há quarenta anos, que era a convergência com o Presidente da República e a solidariedade institucional.

 

António Costa perdeu. No partido. Em metade do governo. Perante o Presidente da República. Diante dos eleitores. Ainda se pensou que o seu ar de orgulhoso “Toreador” era prenúncio de vitória, mas não foi o caso. Perdeu em toda a linha. Saiu diminuído politicamente. E moralmente. Não se percebeu por que lutou nem por que esticou a corda.

 

O Partido Socialista perdeu. A entrada em novo e glorioso ciclo de vida, com maiorias possíveis e desejadas, sem amarras às esquerdas radicais, sem necessidade de recorrer à direita, nem de depender do Presidente da República, está definitivamente comprometida e perdida. O partido parecia conseguir libertar-se do legado de Sócrates e das lutas internas, assim como das obsessões da esquerda radical, demonstrou estar enredado e desorientado. O partido entrou em momento desnecessário de fracção e fragmentação. Já nem sequer sabe tratar do que tem.

 

Perderam os grandes aventureiros do socialismo, Pedro Nuno Santos e João Galamba. Amigos de teóricos e delinquentes, deixam deliberadamente o partido alquebrado e fracturado, mas tinham a esperança de o recuperar, a breve prazo, com a ajuda dos herdeiros de Sócrates, dos activistas de causas perdidas do comunismo e dos incansáveis derrotados do Bloco de Esquerda. O que era uma grande visão da esquerda do futuro será agora resíduo de marginais.

 

Perderam as infra-estruturas nacionais mais importantes, o aeroporto e o avião, o comboio e o transporte público, a rede eléctrica e os portos, as telecomunicações e a energia. Depois de uns anos de experiências atabalhoadas e de gestão narcisista, estão hoje, em geral, sem orientação e com financiamento imprevisível, sem destino nem eficiência, à espera de novos predadores internacionais. Foi o resultado da entrega de todo este sector, que incluía aliás a habitação durante um tempo, a inquietantes jovens políticos de elevado potencial e enorme ambição, sem currículo nem obra feita, a não ser no partido, na conspiração e nos manuais.

 

O SIS perdeu crédito, confiança e recato. Desde que um ministro, há décadas, mandou publicar no Diário da República a lista de espiões, o SIS demorou anos e anos a refazer a sua reputação. Vai ser difícil respeitá-lo.

 

A TAP perdeu fama, seriedade e sobretudo valor. Em vésperas de ser vendida, vale menos do que pouco. Ninguém respeita a autoridade do accionista, ninguém acata a avaliação que se vai fazer. Qualquer abutre ou predador pode candidatar-se e vencer. A TAP não vai descansar com tudo o que terá a fazer em tribunais, com as indemnizações que vai ter de pagar, com os processos que já estão a ser fabricados pelos melhores advogados portugueses e internacionais, com os movimentos dos seus trabalhadores cada vez mais inquietos. Quem quiser negociar com a TAP, quem pretender comprar a TAP e quem desejar associar-se à TAP, sabe desde já que terá de o fazer com Galamba, o mais desqualificado dos vendedores. Mas também, a partir de agora, o mais frágil dos negociadores. Chegou a hora dos que querem desfazer a TAP ou transformar Lisboa numa sucursal: sabem que o accionista é fraco e o vendedor incompetente.

 

Perdeu o Presidente da República. Apesar de ser dele a última palavra e de ter ficado para ele a última arma, sabe que ficou na praia, nem mar nem terra, nem cidade nem montanha. Fica com um suspeito, cansativo e inédito poder fiscalizador e de inspecção que obviamente não deveria ser o seu. Perderam o seu programa e a sua noção de solidariedade institucional. Sem parceiro, não há solidariedade.

 

Por que razão ocorreu este confronto entre Presidente da República e Primeiro-ministro? Quais eram e são ainda as causas deste combate? Havia uma discussão sobre a Europa, a NATO, a Defesa e as Forças Armadas? Era ameaçadora a crise na educação, na saúde, no custo de vida e na segurança social? A perturbada e perigosa situação da habitação exigia esclarecimento legal, medidas e recursos imediatos? Havia graves decisões a tomar sobre o investimento público ou privado, a fiscalidade ou a dívida pública? Havia dilemas importantes sobre a política de imigração, a situação dos imigrantes ilegais e a permeabilidade das fronteiras? Importava prosseguir, interromper, cessar ou acelerar a concessão indiscriminada de vistos e autorizações a estrangeiros? Havia a necessidade de fazer escolhas difíceis e complexas sobre a Justiça, este que é o mais grave, mais desajustado e mais ineficaz de todos os sistemas públicos? Estávamos novamente em momento de decisão dolorosa sobre o centro de gravidade da política nacional, à esquerda, à direita ou ao centro? 

 

A todas as perguntas que precedem, a reposta é sempre, sim. Mas também é, não, não foi sobre isso que houve este confronto. Uma coisa é certa: nada hoje está melhor do que antes. Com mais uma certeza, está pior. Com os eleitores mais desconfiados dos políticos e da política.

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Público, 6.5.2023

sábado, 29 de abril de 2023

Grande Angular - Não basta. Nem chega.

 As últimas semanas, entre o famigerado “caso TAP” e as cenas pouco recomendáveis da Assembleia da República, passando por revelações assustadoras dos processos Sócrates e Salgado, foram ricas em acontecimentos que sublinham a provocação de uns e a tibieza de outros.

 

Entre as fraquezas da democracia está a mais citada: é o regime de todos, incluindo os não democratas e os antidemocratas. Além desta, outras fragilidades mostram bem como, mais do que imperfeita, a democracia tem vícios, alimenta vícios e premeia vícios. O regime democrático inclui corruptos, mentirosos, exploradores, ladrões e os representantes das várias cáfilas conhecidas. A democracia coexiste ainda com cunhas, droga, machismo, assédio sexual e tráfico de influências. Muitos destes vícios e defeitos têm de ser tratados com civilização. Outros, com a Justiça e o Estado de direito. Quando estes últimos falham, perde a democracia.

 

Os últimos episódios “mediáticos” revelaram o papel crescente do partido Chega e os receios, igualmente crescentes, dos que se dizem defensores da democracia. E que talvez sejam, em título, pelo menos. Mas convém olhar melhor para este confronto que parece simples, mas não é. Na verdade, os provocadores do Chega, ridículos, mas eficazes, são tão perigosos quanto os prevaricadores do PS e do PSD. Os oportunistas do Chega são tão ameaçadores quanto os que não são capazes de gerir a democracia. Sem falar naqueles que se querem aproveitar da democracia.

 

O Chega parece ter uma agenda clara. Começa por dar eco aos descontentamentos. Onde estes faltam, inventa. Onde sobram, aproveita. Depois, usa a democracia, aproveita as suas facilidades, incluindo representação e tribuna. A seguir, desacredita a democracia, põe em crise as suas falhas e cria novas. Sabe-se que entre as causas da morte das democracias encontram-se a incompetência e os abusos dos democratas. O populismo não se alimenta de druidas e sonhos, bebe nos erros e nas insuficiências da democracia. O Chega vai esforçar-se, dia após dia, por perturbar as instituições em que está presente, tanto “por dentro”, como “por fora”, na rua. A salvação e a glória do Chega residem na morte da democracia.

 

Para a democracia, há tanto perigo nas provocações do Chega, quanto nas insuficiências dos democratas. A estes, não compete tratar da educação dos populistas, convertê-los ou proibi-los. Compete-lhes, isso sim, retirar argumentos, não abusar e fazer com que, para a população, a liberdade seja superior às promessas dos justiceiros. Aos democratas, não lhes compete prender, banir ou mandar calar os populistas. Aos democratas compete-lhes fazer melhor e com mais competência do que fazem hoje. E de modo a que a população sinta e perceba.

 

São conhecidas as piores nódoas do governo e do regime na actualidade. A crise da justiça vem à cabeça. Gera desconfiança e descrédito. Estimula a corrupção. Incita ao abuso e à fraude. Destrói quaisquer fundamentos morais da vida pública. Se existe desilusão e frustração dos cidadãos relativamente à democracia, é seguramente na falta de justiça e no seu enviesamento. O rol de vícios da justiça, que inclui a impunidade, os favores, o nepotismo e a ineficiência, é enorme e está colado aos casos de corrupção, de branqueamento, de roubo e de abuso de que beneficiam os poderosos da economia, da política e da sociedade. Sem justiça, não há liberdade nem democracia. Com uma certeza que a história nos ensina: os populistas, as ditaduras de direita ou de esquerda e os “justicialistas” nunca brilharam pela liberdade e pela democracia, nem sequer pela justiça. Mas alimentam-se dos defeitos da justiça das democracias.

 

A incapacidade de conduzir ou a impossibilidade de acabar um processo judicial contra um grande corrupto ou um grande corruptor é mais grave para a democracia do que as acções propriamente ditas do grande corrupto ou do grande corruptor. Os magistrados, os oficiais, os advogados, os altos funcionários de Estado e os legisladores são mais responsáveis, pelo declínio da justiça democrática, do que o banqueiro, o político e o empresário. 

 

A seguir, o Serviço Nacional de Saúde, que corrói a confiança e retira as últimas defesas dos mais frágeis e vulneráveis. Depois, as escolas sem professores, as avaliações sem exames e as aulas em greve que destroem a esperança.

 

A incompetência tão visível na TAP, no Aeroporto de Lisboa, nos transportes públicos e no caminho-de-ferro estão a criar um clima de incredulidade difícil de imaginar ainda há poucos anos. É difícil encontrar as causas deste estado de incapacidade, de falta de previsão e de erro. Em todos estes casos, a incompetência e a descoordenação foram evidentes. E dão a sensação de que as autoridades se julgam impunes e proprietárias do bem comum.

 

As grandes obras de Lisboa, do porto à drenagem, da habitação à circulação, dos comboios ao tráfico automóvel, sem informação suficiente, sem cuidado para com os habitantes, sem faseamento mais confortável e sem consideração pelas comunidades locais e pelas pessoas, são mais sinais de que a gestão do espaço público não está a ser feita à altura das ansiedades da população. 

 

É verdade que vivemos horas, dias, semanas e meses difíceis. Talvez até anos. Nem o sistema democrático, nem os políticos actualmente em funções, têm revelado serenidade e saber para encarar esses tempos, para resolver os problemas que daí resultam, para satisfazer aspirações e diminuir ansiedades. Realidades que todos vêem. Rapidamente surgem ideias ou reflexos sobre o futuro imediato e os remédios para as crises. Eleições e coligações estão entre as primeiras reacções. Demissões e dissoluções, também. E também há quem sonhe com novas soluções e novos regimes. É muito fácil encontrar, à esquerda e à direita, quem afirme convictamente que “a democracia está esgotada”. São estes os suspiros melancólicos que se ouvem. As soluções a encontrar para estes tempos difíceis são conhecidas e estão ao alcance das mãos. Encontram-se com os partidos que temos, com os meios que são os nossos e com algumas circunstâncias inescapáveis. Os sonhadores que tomem nota. Não há solução fora da Europa, nem fora de Portugal. Como não há soluções fora da democracia. Ou antes: há, mas são piores.

 

Não basta ser democrata para defender a democracia. Nem chega ser provocador para a derrotar.

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Público, 29.4.2023

sábado, 22 de abril de 2023

Grande Angular - Demissão, Remodelação e Dissolução

 Ao menor problema, o que se ouve em Portugal é um imediato pedido de demissão do Ministro, do Primeiro-Ministro ou do governo. Para as oposições, a demissão do ministro é quase o primeiro passo de uma luta. Este hábito, ou vício, é próprio de todas as oposições, qualquer que seja o governo em exercício. Tenha este uma maioria ou não, seja de um só partido ou de coligação.

 

Convencionou-se, há muitos anos, que fazer oposição era falar duro, o que se traduz por regras simples. Pedir a demissão do membro do governo. Exigir uma remodelação. Pedir que o Primeiro ministro e seu governo sejam substituídos. E exigir a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições.

 

Esta liturgia é quase independente da força do partido de oposição. Seja o deputado único, seja o grupo parlamentar de meia dúzia de deputados, seja finalmente o partido com 80 deputados, em todos os casos a exigência da demissão ou da dissolução é considerada a mais forte voz de oposição.

 

Os partidos que todas as semanas pedem demissões, exigem remodelações e procuram convencer o Presidente a demitir o Governo ou a dissolver o Parlamento (que não são a mesma coisa, pode haver uma sem outra) não mostram outra coisa que não seja a impaciência, a sofreguidão e a vacuidade política. Aquilo que se chama na gíria política “elevar a voz”, “ser duro com o governo” e “fazer verdadeira oposição” tem, entre nós, uma versão muito especial: pede-se a demissão e a dissolução. O problema é que se percebe logo: é quem não sabe o que fazer.

 

É verdade que, em vários sectores, a acção do governo actual se tem revelado desastrosa. Alguns ministros foram ou são manifestamente incompetentes ou têm visões estranhas do interesse nacional e do bem público. Já ninguém duvida de que este governo e o seu partido têm uma estranha concepção de família política e de legitimidade partidária. Mas também é certo que alguns ministros se portam bem, desempenham com honra e eficiência as suas funções e se mostram capazes de gerir a Administração. 

 

Nada do que precede justifica uma dissolução. Por vezes, nem sequer uma remodelação. Estamos muitas vezes diante de políticas, de doutrinas e de visões particulares do interesse público. Tudo isto faz parte do que deve ser avaliado em eleições a realizar a seu tempo. Nestas, confirmam-se os vitoriosos e despedem-se os que erram. Chamam-se novos, substituem-se velhos e castigam-se incompetentes. 

 

Entre os que reclamam demissões e dissolução, um argumento frequente é o de que já não se pode garantir o “regular funcionamento das instituições democráticas”. Quem o invoca, não necessita argumentar: o peso da acusação basta-se a si própria. Ora, tal não é verdade. O regular funcionamento das instituições democráticas está sobretudo ligado à demissão do governo, isto é, à competência do Presidente da República para demitir o governo. No caso da dissolução da Assembleia da República, esta ressalva do “regular funcionamento” não está explícita na Constituição. Isto é, a dissolução é um “acto livre” do Presidente, apenas limitado pela necessidade de, previamente, ouvir o Conselho de Estado e os partidos, sem que tenha de obedecer ou seguir o que dizem as pessoas ouvidas. Mas é um “acto livre” de gravidade extrema para uma situação muito grave.

 

Mesmo não sendo rigoroso, o argumento do “regular funcionamento” tem efeitos e assusta. Mas é totalmente desadequado. Na verdade, o que mais está em causa, hoje, são as políticas, não as instituições. O Serviço Nacional de Saúde, a funcionar tão mal, não é uma instituição democrática. As escolas, em crise evidente, também não. A TAP, a CP e os transportes públicos, em situação caótica, não são instituições democráticas. São empresas, entidades e serviços públicos essenciais para a felicidade dos povos, para o bem-estar e para a economia. Mas não são instituições democráticas. Fernando Medina e Pedro Nuno Santos cometeram erros e são responsáveis por uma gestão muito controversa da política pública e da sua carreira. Mas não são instituições democráticas. Tiago Brandão Rodrigues e Marta Temido tiveram uma gestão desastrada dos seus ministérios, mas não são instituições democráticas. O Aeroporto de Lisboa, a COVID e a guerra na Ucrânia são assuntos graves, temas em que o governo se pode portar bem ou mal, mas não se trata de instituições democráticas.

 

Estas são as que garantem os direitos fundamentais dos cidadãos, as que fazem funcionar o sistema político, as que asseguram as grandes funções do Estado como a Justiça, a Administração Pública, a moeda, as forças armadas e a ordem pública. Quando o seu funcionamento deixa de ser regular, quando a ilegalidade invade estas instituições, quando estas ameaças não são devidamente contrariadas pelos poderes políticos, pelo Parlamento e pelo Governo, então aí sim, impõe-se uma dissolução do Parlamento ou a substituição do governo. Mas mesmo nesses casos, o que realmente se impõe não é a opinião do Presidente da República. O que se impõe é um veredicto popular e uma renovação da vontade dos cidadãos.

 

Entre os dispositivos que mais contribuíram para o prestígio da democracia conta-se a realização de eleições livres, com datas conhecidas e regras definidas. Assim como a ideia de mandato. Isto é, uma pessoa e um partido são eleitos com base nas identidades, na história e no programa, assim como no cumprimento do mandato conferido. Este não se mede semanalmente, nos jornais e nas televisões, com sondagens. O cumprimento dos mandatos mede-se periodicamente, em eleições, ao fim de um certo tempo conhecido. E os mandatos são para cumprir até ao fim. Salvo casos absolutamente graves e excepcionais. Ou então em situação de total impasse das instituições. Por exemplo, na impossibilidade de um governo passar no Parlamento e ter orçamento e confiança.

 

O Presidente da República, qualquer que seja o seu estilo, pode perfeitamente dar recados, tentar influenciar, fazer sugestões, chamar à atenção e até criticar. Tudo em recato. Por vezes até com algum grau, moderado, de publicidade. Mas não tem nem deve envolver-se na política e nas políticas, fazer opções, destinar, impedir e fomentar. A reserva presidencial é um dos mais valiosos dispositivos constitucionais que importa valorizar e proteger. São sinistras as ideias que sugerem que o Presidente da República deve calcular as hipóteses de haver alternativas, deve seguir as sondagens da semana e deve saber se os seus favoritos estão bem colocados para ir a eleições.

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Público, 22.4.2023

sábado, 8 de abril de 2023

Grande Angular - Falta de respeito

 Dizem os dicionários que o respeito é um sentimento que leva alguém a tratar as pessoas com deferência. Uma atitude que implica que se preste atenção aos outros. O comportamento de alguém que traduza consideração por outras pessoas. A maneira como se tem sempre em conta a dignidade humana e social de qualquer pessoa. O modo como se acredita que os outros merecem a honra de ser bem tratados. O cumprimento das regras e dos códigos de conduta em sociedade.

 

Na vida política, o respeito pode traduzir-se de muitas maneiras. Na ideia de que os outros são iguais a nós e não menores ou incapazes. Na certeza de que os outros também têm opiniões válidas e diferentes das nossas. Na concepção de que os outros merecem a verdade. No modo como os políticos entendem que devem o que são aos cidadãos que os elegeram. Na capacidade de olhar para si próprio e perceber o que faz de certo e de errado. No comportamento que consiste em acatar as leis, ter em conta as tradições, seguir as regras da democracia e cumprir a palavra dada. E na prática de não enganar os seus eleitores e não ocultar factos úteis para a população.

 

As faltas a isto tudo, a estas regras e costumes, designam-se por uma expressão simples: falta de respeito. É o comportamento dominante de muitos representantes do povo, de actuais titulares do poder político, de muitos governantes, de vários dirigentes do Estado, de bastantes deputados, de múltiplos titulares de funções na justiça e nas forças armadas e de vários administradores de grandes empresas públicas. Nunca, na história recente do nosso país, o espaço público esteve, como hoje, tão desacreditado, a mentira tão frequente, o engano tão presente e a falsidade tão usada. Temos vivido semanas e meses de impostura, de verdade a prestações, de mentira pública e de ilusão dolosa. A ponto de se começar a pensar que mentir é normal e necessário, que enganar é um método de governo e que disfarçar é aceitável para as regras da democracia.

 

Volta a surgir a ideia de que aos “nossos” tudo é permitido, mentir, enganar e esconder, desde que em nome dos “nossos”, do nosso partido, do nosso governo e das nossas empresas. Inversamente, nada é tolerado aos “nossos” inimigos, acusados de todas as malfeitorias. Como os “nossos” têm razão, defendem o interesse nacional, são genuínos, protegem os seus amigos e amparam as nossas causas, não podem senão ter razão. E se por acaso, excepcionalmente, por acidente, algum dos “nossos” comete um erro que todos viram, rapidamente se encontra a desculpa e a complacência: são as circunstâncias atenuantes, as causas exteriores ou a culpa dos adversários. Em poucas palavras, a ética republicana, na sua versão actual, proclama que quem ganha tem razão, quem tem os votos, manda. Desde que seja um dos “nossos”, claro.

 

O que se passou e passa com a TAP e o Aeroporto de Lisboa, é revelador de tudo quanto acima se diz. Vimos o que por vezes é difícil imaginar. Negócios indevidos, traições, carreiras destruídas, mentiras sucessivas, desmentidos, negações, demissões forçadas, acusações infundadas e retiradas, compras e vendas de equipamento a preços duvidosos, destruição de capital e medidas contraditórias ruinosas (privatização, nacionalização e nova privatização), nada nos foi poupado. É um dos mais vergonhosos casos da democracia portuguesa. E não acabou. Ainda vai haver muita TAP para as notícias e muito Aeroporto para a crónica futura.

 

Os sectores sociais mais turbulentos, actualmente, parecem ser a educação, a saúde, a habitação e os transportes públicos. Em todos assistimos a comportamentos semelhantes. Mentiras públicas sistemáticas, desmentidos, negociações sindicais insuportáveis, greves que não são greves, prestação de declarações e de contas públicas falsas. Sucedem-se as greves e os atrasos, com enormes inconvenientes para todos. A falta de previsão foi erro comum aos governantes. A crise no Serviço Nacional de Saúde é um caso flagrante de erro de governo, de incapacidade de diagnóstico, de incompetência de gestão e de indiferença perante a população. Tal como nos transportes públicos, onde a imprevisão e a incompetência, aliadas à falta de investimento, liquidam, dia após dia, os já tão decadentes transportes urbanos e semiurbanos. 

 

A inflação, o aumento do custo de vida e os preços dos produtos de primeira necessidade atravessam igualmente período de grande instabilidade. Por isso se têm prestado a intervenções públicas, designadamente de governantes e deputados, em que se multiplicam as acusações e os bodes expiatórios, as mentiras e as falsas estatísticas. O cabaz alimentar, os apoios sociais e o IVA deram oportunidade às maiores tiradas de demagogia que se imagina. Ninguém consegue explicar as razões pelas quais um muito elevado número de alimentos tem, em Portugal, preços mais altos ou aumentos mais pronunciados do que em muitos países europeus com níveis de vida superiores ao português. 

 

O comportamento de grande número de governantes, de deputados e de dirigentes da Administração Pública, é essencialmente caracterizado pela falta de respeito pelos cidadãos. Estão absolutamente convencidos das suas verdades. Mostram-se, todos os dias, cada vez mais auto-suficientes e arrogantes. Têm mentido descaradamente, contradizem-se sem limites, tem-se negado a admitir os seus erros. Limitam-se a fazer propaganda e a anunciar medidas, todos os dias novas medidas, sem o menor pudor. Mentem sem se cansarem.

 

Dizem a verdade aos poucos, mas mentem de uma só vez. O ministro diz que não sabia, veio a saber-se que sabia. O secretário de Estado não esteve presente. Soube-se que afinal tinha escrito, tinha telefonado e tinha estado presente. Os administradores foram, mas dizem que não tinham sido chamados. Os deputados estavam ao corrente, mas diziam que não sabiam. Ninguém sabia. Ninguém esteve presente. Ninguém disse. Ninguém viu nem leu. Ninguém telefonou. Ninguém recebeu o telefonema. Ninguém concordou. Ninguém recebeu mensagens. Em poucas horas se foi sabendo que eram mentiras. Viram. Sabiam. Disseram. Entraram. Saíram. Telefonaram. Escreveram. Pagaram. Receberam. Leram. Concordaram.

 

Muitos políticos são surdos, não usam óculos, nem sequer têm espelho em casa. Perderam o sentido crítico. Perderam os remorsos e os escrúpulos. Não têm vergonha. Não respeitam a lei. Nem os eleitores.

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Público, 8.4.2023

sábado, 1 de abril de 2023

Grande Angular - Justiça, sempre. Justiça, nunca.

 É um dos mais misteriosos problemas da vida nacional: a permanente degradação da justiça. Quais são as verdadeiras causas deste estado de coisas? A política? As leis? As magistraturas? Os orçamentos? A sociedade? Os interesses? As faculdades de direito? Nenhum diagnóstico parece completo. Mas não há dúvidas de que a evolução, ao longo das últimas décadas, tem sido negativa. A justiça portuguesa teve dificuldades em adaptar-se a tudo o que de importante aconteceu. À democracia. Aos direitos dos cidadãos. À economia de mercado. À União Europeia. À globalização. Ao digital. E à liberdade de informação. Na verdade, ficou para trás e foi-se atrasando.

 

Só num aspecto os diagnósticos são convergentes: a situação é difícil ou grave. Uns acentuam os interesses das magistraturas. Outros sublinham as pressões dos poderosos da política, da economia, dos sindicatos e das instituições. Alguns garantem que as responsabilidades são dos partidos políticos, do legislador e do Ministério. Enquanto outros apontam para a venalidade dos magistrados e a tibieza perante as solicitações dos bandidos. Mas há ainda, finalmente, quem garanta que o essencial se deve ao espírito jurídico nacional, ao formalismo das tradições portuguesas e ao conservadorismo do ensino do Direito. Quais são as verdadeiras causas? Mistério.

 

Não se conhecendo as causas, é difícil encontrar os remédios. Talvez seja esse o sentido de outro dos mais enigmáticos problemas da sociedade contemporânea: por que razão nenhum partido político, nenhum governo, nenhum Presidente da República, nenhum Conselho Superior da Magistratura Judicial ou do Ministério Público, nenhum Supremo Tribunal, nenhum Procurador-Geral e nenhum Sindicato tentou ou protagonizou um processo de reforma?

 

Entre os diagnósticos, há uns mais certeiros do que outros. Por exemplo, a falta de preparação das leis, dos magistrados, dos tribunais e das polícias para tratar do crime organizado e da alta criminalidade ligada à corrupção política e económica. Ou então, a tradição burocrática nacional a que se juntou o excesso de garantias de todo o sistema. Ou ainda, finalmente, o livre trânsito dos magistrados entre os tribunais, as empresas, os partidos e os cargos políticos. Tudo isso é possível. Mas não se trata realmente de respostas. São novas perguntas às quais é necessário responder.

 

Uma das grandes dificuldades reside no facto de que reformar a justiça pode matar a liberdade e a democracia. Como pode destruir a independência dos magistrados e dos tribunais, valores insubstituíveis. Reformar eficazmente a justiça, em democracia e garantindo a independência dos magistrados é a grande dificuldade, o dilema da política de reformas. A justiça tem um paralelo possível com as Forças Armadas. São ambas essenciais à liberdade. Mas o seu funcionamento não é ou é pouco democrático. As decisões não dependem do voto dos cidadãos e dos utentes. O princípio da eleição não é geralmente aceite nestas organizações. Nem poderia ser. Mas ambas estão submetidas a uma génese democrática que lhes dá legitimidade. Em poucas palavras, a justiça não é democrática, mas a democracia depende dela.

 

O Tribunal Constitucional revela-se incapaz de substituir os seus membros, o que fere a sua própria legitimidade. Com suspeitas fundadas, a distribuição de processos continua inquinada. Sucedem-se as avarias dos sistemas, com quebras de comunicação que podem durar horas ou dias. Aumentam, com ou sem greve, os atrasos de julgamentos e outros actos. Seria interessante que alguns políticos, jornalistas e académicos visitassem os tribunais, reparassem nas testemunhas que esperam horas, nos adiamentos dos processos e nos julgamentos que não se realizam sem que as testemunhas sejam informadas. Quem pensa nas centenas ou milhares de pessoas, arguidos, assistentes, testemunhas e advogados que perdem horas e dias à espera, a “meter” baixas nos seus empregos, a ter de voltar uma, duas e três vezes?

 

A duração, os incidentes, as perturbações e as decisões contraditórias e incompreensíveis dos grandes processos de políticos e poderosos, as famosas causas célebres, já não se explicam nem justificam, mas deixam a sensação e a certeza de que a justiça portuguesa está cativa, é desigual e foi capturada por interesses ilegítimos.

 

Será que os magistrados, os membros dos Conselhos Superiores, as associações judiciais e a Ordem dos Advogados não se dão conta do mal que se está a fazer aos portugueses, à democracia e à justiça? Será que não percebem que o que fazem agora garantirá, por décadas, a má reputação da justiça? E os governantes que se ocupam directamente da justiça, os deputados que têm o exclusivo de competências em matéria judicial e os altos funcionários judiciais não se dão conta dos danos que estão a ser infligidos à Justiça e à democracia? E os magistrados que não são cúmplices, que cumprem os seus deveres, que respeitam as declarações dos direitos humanos, esses magistrados não se dão conta que, sem culpa nem proveito, sofrem da má fama que o sistema e as autoridades lhes infligem e provocam?

 

Os magistrados têm evidentemente culpas e responsabilidades no estado em que a justiça se encontra. Mas não tenhamos dúvida de que há outros responsáveis com o mesmo grau de culpa ou maior ainda: o legislador e o poder executivo. E os órgãos superiores do sistema judicial que se entendem bem com este estado de coisas. A entrada e a saída da profissão, a porta giratória com a política e a economia pública e privada, assim como a vizinhança com entidades políticas e partidárias, ajudam a explicar a inércia e a atitude conservadora da magistratura, do legislador e do governo. 

 

Quem poderá tomar a iniciativa de um movimento de reforma? Quem poderá iniciar um debate com sentido das realidades e eficiência? Que órgão de soberania, Presidente, Governo ou Parlamento poderia tomar a iniciativa de mandar elaborar um Livro Branco e um roteiro de reformas para a justiça? Que fundação privada, universidade ou academia poderia dar o sinal de partida para uma análise, um apuramento e um programa de reformas? Uma coisa é certa: aquilo com que sonham os antidemocratas e radicais de vária penugem, a “vassourada” ou a “barrela”, não é aconselhável. Além de que seria contraproducente: transformaria o caos democrático num caos autoritário, com sacrifício da liberdade e da democracia.

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Público, 1.4.2023