sábado, 2 de dezembro de 2023

Grande Angular - Vésperas sicilianas

 Eleições! É do melhor que a democracia tem a oferecer. São ricas a despertar sentimentos e emoções. Ânimos e medos. Entusiasmos e mentiras. Ciúmes e alianças. Por vezes, também, razão e responsabilidade. É possível que as eleições não sejam necessariamente bons momentos criativos, nem sequer boa fonte de soluções. Mas uma coisa é certa: sem eleições, não há democracia. Em períodos de calma ou de agitação. Em ocasiões de paz ou de conflito. A eleição é sempre um passo solene. Mesmo quando não traz imediatamente soluções.

 

A preparação de eleições, já o sabemos há muito, provoca o melhor e o pior nos políticos. E em muitos eleitores também. As vésperas das eleições são momentos particularmente pródigos em surpresas, em pulhice e em revelações sórdidas. Neste nosso tempo, nada nos faltará, como já se pode ver.

 

Todas as eleições são importantes. E decisivas. Mas há umas mais do que as outras. Temos diante de nós uma dessas, tão essencial quanto todas as outras, mas mais determinante do que muitas. Tão perigosa nos seus resultados, como nos seus processos. Por razões nacionais e por motivos internacionais, estas eleições vão decorrer em momento de enorme tensão.

 

No mundo, é aflitiva a dificuldade em estabelecer acordos vitais, como sejam os relativos ao clima. Alguma coisa se fará, tarde ou cedo, mas será insuficiente. É inquietante a impossibilidade de se chegar a um acordo mundial razoável. A divisão do mundo não estava assim há décadas. Mau prenúncio!

 

Na Ucrânia e na Europa Oriental, em Israel, na Palestina, no Mediterrâneo e no Próximo Oriente, as coisas vão de mal a pior. Estes conflitos tiveram a capacidade de dividir o mundo. Dentro da União Europeia. Entre a Rússia e os Estados Unidos. Entre os Estados Unidos e a China. Entre a democracia e a autocracia. E temos ainda um quadro geral de dificuldade económica, de regresso ao proteccionismo, de aumento das desigualdades sociais e entre países.

 

Em Portugal, não teremos evidentemente qualquer influência nos problemas acima referidos. Muito menos nas soluções. Mas todos aqueles terão enormes consequências em Portugal. Como o agravamento da situação económica e o descontrolo dos movimentos migratórios.

 

Neste quadro geral, imprevisível e ameaçador, vamos a eleições. Inesperadas. Atabalhoadas. Eleições que provocarão, inevitavelmente, alterações no panorama político. Mas também causarão mudanças na definição programática dos partidos e respectivas direcções.

 

São grandes os riscos que corremos com estas eleições. O primeiro é o da divisão do país e do eleitorado como raramente foi o caso. Talvez como nunca. Paradoxalmente, as experiências de maioria absoluta (Cavaco Silva, José Sócrates e António Costa) não dividiram o país em dois blocos. Foi sempre possível ver, à direita ou à esquerda, uma salutar diversidade. Que tinha como principal efeito o de não misturar as esquerdas (democrática e não democrática) nem as direitas (democrática e não democrática). Agora, o desastre da divisão está na esquina da rua. Na direita e na esquerda, as forças de aglomeração crescem e ganham importância. Apesar da boa fama de que goza esta divisão, conhecida como bipolarização, a consolidação dos dois blocos é anúncio de catástrofe. Se as direitas (democráticas e não democráticas) e as esquerdas (democráticas e não democráticas) se unirem, temos desastre à porta.

 

Muita gente refere a probabilidade da fragmentação partidária. Quer isto dizer, a redução do peso eleitoral dos dois grandes partidos e a multiplicação dos pequenos e médios. Diz-se que esta situação torna o país ingovernável. Pode ser verdade, o que é mau. Mas pior ainda será o estabelecimento de blocos federados, à esquerda e à direita. Com uma agravante: sem força dominante, estes blocos são o reino da chantagem e das artimanhas.

 

Risco é ainda a impossibilidade futura da revisão constitucional. A que estava em curso não era grande coisa, nada queria fazer de essencial (o sistema eleitoral, por exemplo), mas havia uma energia salutar. Tudo isso acabou. Para recomeçar, seria necessário um esforço do centro político, desde que este exista no Parlamento e tenha eco no eleitorado. O que parece pouco provável.

 

reorganização dos dois grandes partidos já está em curso. No PSD, a conversa é a de uma maioria abrangente, no PS é a de uma estratégia de união das esquerdas. Ninguém se esforça por uma maioria absoluta. Também é verdade que ninguém a merece. Verifica-se o esvaziamento doutrinário dos dois partidos, que será combatido por uma reafirmação de programa e de prioridades. Vão estar em causa as preferências internacionais (UE, NATO, CPLP, Ucrânia, Israel, Palestina e EUA), as políticas de imigração, o papel da empresa privada, o Serviço Nacional de Saúde, a política de educação, a Segurança Social e a Justiça. Que ninguém duvide: os dois grandes partidos e os eventuais grandes blocos vão rever tudo isso. Para o melhor e o pior. A social-democracia e o socialismo democrático preparam uma revisão profunda. Feita mais por pressão do oportunismo eleitoral do que por evolução doutrinária.

 

Risco também é o de se proceder a um reforço dos lados negativos do semipresidencialismo, isto é, do conflito entre órgãos de soberania e da interferência do Presidente da República. Os sinais dados pelos primeiros mandatos de Mário Soares e de Marcelo Rebelo de Sousa são hoje longínquos e parecem pertencer à ficção. Tal como num vulcão adormecido, o pior do semipresidencialismo, os seus inúteis conflitos, volta à actualidade.

 

As eleições, sobretudo as controversas, são oportunidades para as mais inesperadas operações. Este ano, estamos bem servidos. Intervenções de ministros estridentes não faltaram. Manobras com grandes serviços e empresas públicas foram muitas. Iniciativas inusitadas dos altos poderes judiciais surpreenderam toda a gente. Tremores nos grandes processos adiados, Operação Marquês, Face Oculta, Influencers, Sócrates, Salgado, Pinho, Berardo e outros sucedem-se.

 

Parece ser neste universo pré-eleitoral, de revisão disfarçada e de reorganização partidária, que se pode incluir a revelação do caso das “Gémeas brasileiras”. Ou toda a gente se portou mal, ou toda a gente mentiu, ou ambas as coisas. Raramente se viu em Portugal história mais mal contada. É possível que, entre os mencionados, haja inocentes. Mas nem esses conseguem defender-se com clareza. Confirma-se: vésperas de eleições, tempos de traições!

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Público, 2.12.2023

sábado, 25 de novembro de 2023

Grande Angular - 25

 Hoje, 25 de Novembro, é dia de festa. Apesar de ser data controversa e detestada por alguns. Mas é natural que haja opiniões diferentes relativamente ao 25 de Novembro, sua importância e sua recordação. Ainda bem! Foi mesmo para isso, também para isso, que se fez o 25 de Novembro: para permitir que se tenham opiniões diferentes. Também há muita gente que não aprecia especialmente o 25 de Abril, mas tal não basta para que se apague a data.

 

Os que perderam, nesse dia de Novembro de 1975, choram e fazem o possível por esquecer. São, em geral, comunistas, outros de extrema-esquerda e militares revolucionários. Desses, uns estão hoje no PCP, alguns no Bloco de Esquerda e outros em sítio nenhum. 

 

Os que ganharam recordam com prazer, às vezes com orgulho. Uns estão hoje nos grandes partidos da democracia, o PS e o PSD, alguns em todo o sítio e outros em parte nenhuma.

 

Mas há grupos especiais e que merecem referência. Alguns militares moderados do MFA (Movimento das Forças Armadas) e uns tantos socialistas venceram então e têm vergonha hoje. Fazem o possível por esquecer. Não querem que se recorde, pois tal pode “abrir feridas”, dizem. É este grupo que merece ácida reflexão.

 

A polémica alimenta-se de ridícula comparação: qual é a data mais importante, o 25 de Abril ou o 25 de Novembro? É tão idiota a ideia que nem apetece perder tempo. Por todas as razões, o 25 de Abril é a principal data, a mãe de todas. Mas também há o 25 de Abril de 1975, dia das primeiras eleições livres, as constituintes, que revelaram a fraqueza dos revolucionários e afirmaram a vantagem dos democratas, assim como desviaram, para os eleitores, os poderes que se limitavam aos activistas. E ainda há o 25 de Abril de 1976, dia das eleições legislativas, alicerce do Estado democrático em vias de fundação. Entre estes 25, há o de Novembro, o motivo das polémicas, mas que entra, de pleno direito, nesta espécie de galeria. Neste último dia, derrotaram-se os revolucionários que queriam uma ditadura e que procuravam explicitamente impedir a democracia parlamentar.

 

Ao lado destas datas, ainda é possível acrescentar o 1º de Maio de 1974. É talvez o dia das maiores manifestações da história do país. Com a particularidade de não se manifestar contra ninguém, mas com a intenção de festejar a liberdade. Foi nesse dia que o “golpe de Estado” se transformou em levantamento popular. Foi nesse dia que a liberdade se socializou. Foi nesse dia que se percebeu que a democracia não seria outorgada, nem de cariz militar ou hipotecada aos movimentos revolucionários, antes seria de todos, do soberano, do povo. Ainda demorou muito. Ainda houve riscos, tentativas revanchistas e tentações totalitárias para implantar regimes de farsa, como uma “democracia avançada”, eufemismo para ditadura. Tivemos isso tudo, mas foi o 25 de Novembro que estabeleceu as fronteiras. 

 

É possível que, sem o 25 de Novembro, não houvesse necessariamente ditadura comunista ou militar. Era muito arriscado, mas teoricamente possível. O problema é que o maior risco ainda era a guerra civil e a divisão definitiva de portugueses. Nesse sentido, ao contrário do que se diz hoje em certas instâncias, o 25 de Novembro não é fracturante. Não foi na altura, nem a sua comemoração o é hoje. Pelo contrário, o 25 de Novembro impediu uma fractura radical, violenta e ameaçadora.

 

Além de tudo o mais, o 25 de Novembro contribuiu para um dos mais importantes traços da democracia portuguesa: afastou uma revolução e impediu uma restauração, sem vingança, sem novos presos, sem novas interdições, sem adiamentos eternos de eleições e sem vagas promessas de democracia. Deste ponto de vista, o 25 de Novembro e a democracia que se seguiu fizeram algo de único ou de raro na história recente: derrotaram uma revolução e não fizeram prisioneiros nem proibições. E muito menos mortos e feridos. A vaga das democracias europeias dos anos 1990 e seguintes deu exemplos notáveis de instauração pacífica do novo regime. É verdade. Mas não resultaram de processos exclusivamente internos, de revolução e derrube de ditaduras. Nem travaram uma revolução em curso. Na verdade, o apodrecimento do comunismo começou, sem revolução, na União Soviética e contagiou vizinhos e clientes.

 

Sabe-se que há gente de direita que vibra mais com a correcção de Novembro do que com início de Abril. Como há muitas pessoas de esquerda que sonham com o que se perdeu em Novembro. Tudo isso é normal e previsível. O problema não é o de quererem comemorar uma data e outra não. Nem o de saber por que querem festejar ou de que modo pretendem recordar. Os gostos discutem-se, é bom que assim seja. O problema também não é o de não querer comemorar. O problema é o de quem quer que os outros não comemorem. De quem não reconhece o valor nacional de uma data libertadora (Abril ou Novembro). E de quem quer impedir que as instituições democráticas festejem o que democrático é.

 

Como é sabido, os despotismos e as vocações ditatoriais, de esquerda ou direita, são muito exigentes na semântica. O politicamente correcto, por exemplo, é em parte uma luta por uma semântica aceite e outra condenada. Também neste caso estamos perante uma destas armadilhas de vocabulário. Para os candidatos a déspotas, Novembro não rima com democracia. Por isso, estes esforços incansáveis de pessoas e partidos contra a comemoração de Novembro em sede oficial, nas instituições. Chocante, todavia, é ver tantos que a Novembro muito devem aceitar o ditame comunista contra a vitória democrática daquela data. 

 

Alguns socialistas, em especial, têm enorme jeito para acrobacia e outras artes de contorção. Um partido que cresceu, em 1975, graças à luta contra o comunismo, acabou por não ter remorsos numa aliança com aquele partido. De modo parecido, um partido que sobreviveu graças ao 25 de Novembro, não vê com bons olhos os que o querem assinalar.

 

Em Portugal, em 1975, Novembro salvou Abril. Salvou a liberdade e a democracia. Permitiu a Constituição e as eleições. Prometeu o pluralismo, que garantiu. Não vingou, não matou, não prendeu, nem proibiu os responsáveis pela deriva autoritária e revolucionária. Sem Novembro, teríamos talvez a ditadura ou uma a guerra civil. Mas não a liberdade.

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Público, 25.11.2023

sábado, 18 de novembro de 2023

Grande Angular - Corrupção e impunidade

 Por António Barreto

Nos anos a vir e nos seguintes, assim como na história futura, esta semana, estes tempos e os próximos ficarão para sempre. Inesquecíveis. De triste recordação. E de inquietação crescente. Entraram em crise elementos básicos da confiança e da esperança. A certeza das instituições, a serenidade das elites e a segurança da justiça falharam. Ou não deram garantias. O Estado de Direito foi posto explicitamente em crise.

 

Descobrem-se em abundância casos de corrupção e favoritismo. São ordenadas detenções apressadas e mal fundamentadas. Reinam as fugas de informação e as violações do segredo de justiça. Uma reunião confidencial do Conselho de Estado, um dos últimos redutos da serenidade, é desvendada. O Primeiro ministro demite-se de modo incompreensível. A dissolução do Parlamento não é cabalmente justificada. As decisões do Ministério Público e da Procuradora Geral revelam ligeireza e leviandade. Um Parlamento dissolvido, a prazo, aprova um orçamento de Estado, a correr, antes de partir para campanha eleitoral. Um governo demitido, a prazo, aprova aumentos da Função Publica e do salário mínimo. Um ministro demitido, a prazo, pretende resolver, à pressa, a crise dos médicos e da saúde.

 

O Primeiro-ministro e outros governantes sugerem que, em certos casos, a necessidade política e as exigências da vida económica podem obrigar a ponderar o sentido da aplicação da lei. Parece que basta o rigor legal na decisão, sendo que a aplicação prática das leis obedeceria a outros critérios, designadamente do interesse público definido pelos próprios políticos. É possível que nunca se tenha ido tão longe, nas últimas décadas, no desrespeito pelo Estado de Direito.

 

Por vezes importa tomar um pouco de distância. Como se pode corrigir? Que se pode fazer para melhorar, punir e prevenir? Pouco. Muito pouco. Talvez nada a curto prazo. Talvez alguma coisa a longo prazo. Com outras gerações. Mais leis, não vale a pena. Já temos e a mais. Formar novo pessoal político e novos magistrados? É possível. Demora décadas e coloca sempre o problema existencial: quem forma o pessoal e quem forma os formadores? Liquidar a democracia? Não resulta, pois já sabemos que a ditadura e o populismo são, sempre e em todo o sítio, piores do que a democracia.

 

A nossa democracia não conseguiu, nas áreas da corrupção e da justiça, ser melhor do que a ditadura. Tem mil vantagens. É superior em muitos aspectos, na liberdade, nos direitos individuais, na dignidade das pessoas, na cultura, na educação, no trabalho e na saúde. Mas na justiça e na corrupção não consegue ser melhor. Até porque, com o capitalismo, a democracia e a sociedade aberta, há mais corrupção e mais interesses. Mais e mais democratizados. O nacionalismo demagógico, o justicialismo virtuoso e a ditadura puritana são sempre e serão piores do que a democracia. A história de Portugal e do mundo demonstra-o nitidamente.

 

A situação, na justiça e na política, por causa da corrupção e do favoritismo, está má. E vai ficar pior. E não tem cura tão cedo. Pessimismo? Nem por isso. Realismo, talvez. A sociedade e as instituições não são melhores do que as classes dirigentes e ilustradas. Nem melhores do que os políticos. E estes não são melhores do que a sociedade em que têm origem. E é mesmo isso que é crítico, é esse o problema: das classes dirigentes, das elites, esperava-se mais e melhor!

 

Portugal sofre, há décadas e séculos, de peste de país pobre, de povo sem liberdade e de país dependente do Governo. Sem liberdade, sem democracia, sem imprensa livre, sem empresas poderosas, sem mercado e sem sociedade aberta, cultiva-se facilmente a corrupção, o nepotismo e o favoritismo. A “cunha” e o “jeitinho” fazem parte do quotidiano. A “palavrinha” e o “empenho” são modos de vida. A nomeação de parentes e de correligionários também. Passar à frente nas filas de espera ou nas competições é usual. Abrir concursos “com fotografia”, isto é, que só podem ser ganhos por pessoa certa, é uma arte. Rechear os gabinetes com assessores, consultores e especialistas, pagos pelo erário público, mas para benefício do próprio, é aceitável.

 

As modalidades de pequena e média corrupção abundam e são bem conhecidas. Uso privado de carros de função, realização de obras domésticas à custa de dinheiros públicos, nomeação de filhos e afilhados, pagamento de refeições caras, luvas de grandes negócios, estágios e cursos superiores em instituições reputadas, percentagens depositadas “lá fora” e avenças estranhas, de tudo um pouco, os portugueses conhecem bem. Infelizmente, parece que também vivem bem com isso. O que é triste e desesperante é verificar que os raros mecanismos de combate à corrupção e ao favoritismo são a inveja e a concorrência. Quando são vários os predadores e só uns os beneficiários, é quase certo que os outros arranjarão maneira de denunciar. Em nome do bem público, alegam.

 

O problema, não sabemos bem se sobretudo nosso ou se partilhamos com outros, é o da dualidade de conceitos. Por um lado, como no futebol, o que os “nossos” fazem está bem, o que é da autoria dos “outros” é condenável. Mais inquietante é a diferença moral entre a esfera privada e a partidária. Para muitos, a verdadeira corrupção é aquela de que se aproveitam os indivíduos, as suas famílias e os seus amigos. O que é para proveito pessoal é condenado e pode ser exposto. O que é para uso do partido não tem o mesmo tratamento: a “ética republicana” e a legitimidade política garantem que é justa a distribuição de despojos e razoável o benefício partidário. Quer isto dizer que, para muitos, as eleições democráticas conferem uma legitimidade a toda a prova, que se sobrepõe a outros critérios morais ou legais. Por outras palavras, quem está no poder, usa-o.

 

É este sentido de legitimidade que explica, em parte, o facto de tantas pessoas inteligentes, sabedoras, por vezes competentes, eventualmente cultas e experientes terem comportamentos condenáveis sem recear a lei ou a opinião. É o pior de tudo: o sentido da impunidade. A certeza de que o voto dá direitos e de que a democracia oferece vantagens pessoais e partidárias. O “quero, posso e mando” do soba ou do ditador não é pior do que o “quero, posso e mando” do democrata eleito…

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Público, 18.11.2023

 

sábado, 11 de novembro de 2023

Grande Angular - Um verdadeiro desastre!

 É o maior desbaratamento da história da democracia portuguesa. O governo tinha tudo o que era preciso. Um Primeiro-ministro hábil e habilidoso. Uma maioria absoluta. Um partido de governo coeso e unido. Um Presidente da República cooperante e colaborador como nunca se tinha visto. As esquerdas destroçadas. O Chega a subir, não de mais, mas o suficiente para diminuir o PSD. Uma oposição tépida e desorientada. Um Programa de financiamento europeu de montante inimaginável. Uma situação económica e financeira melhor do que se esperava ainda há pouco tempo. O erário público com uma folga confortável. A admiração, o respeito, a necessidade e a dependência das academias, da administração, das instituições e da imprensa. A colaboração do capital internacional. A atenção dos empresários. E os autarcas em fila de peditório.

 

Por isto tudo, não se percebia bem a razão pela qual o governo não conseguia tratar da situação social que não corria muito bem. As lutas e as greves nos hospitais, nas escolas e nos tribunais persistiam e os respectivos ministros não conseguiam tratar nem dialogar. Os serviços públicos em geral davam claros sinais de que se aproximava o colapso, com enormes prejuízos para a população. Os aumentos do custo de vida e a inflação ameaçavam o bem-estar de grande parte das famílias. A crise na habitação atingia alturas de quase calamidade. Alguns ministérios ressentiam-se da mediocridade dos seus ministros, com relevo para a saúde, as infra-estruturas, a educação e a justiça. O governo sabia distribuir, mas não organizar e criar.

 

Em oito anos de governo, várias perturbações gravíssimas ameaçaram tudo. A pandemia dominou a vida pública durante dois anos. A guerra na Ucrânia destruiu a paz europeia, com efeitos nefastos para todos os países. Agora, a guerra na Palestina e em Israel revelou novas ameaças para o mundo, cujas consequências estão ainda longe de ser medidas.

 

Não foram, todavia, as dificuldades sociais internas nem as perturbações internacionais que deram cabo do governo e da estabilidade política. Foram questões morais, foi a falta de seriedade, foi o nepotismo partidário, foi a incompetência de vários ministros, foram os escandalosos abusos de poder dos ministros nas questões do aeroporto, da TAP, do lítio e de outros grandes projectos. Foi a auto-suficiência de ministros e de dirigentes partidários que se sentiam capazes de tudo, do melhor e do pior e que julgavam que podiam tratar da felicidade dos outros e da riqueza de alguns. Foi a incapacidade de servir o país e os cidadãos.

 

A causa da crise não foi social, nem económica, muito menos internacional. Foi o mau governo. O bem e o mal andam de braço dado! O que parecia um bom governo era feito de maus ministros. Em certos casos, gente vaidosa e prepotente. Noutros, medíocres fantasmas.

 

Esta crise surpreendeu toda a gente. Não só a crise, como também o modo como muitos reagiram. Alguns comportamentos das autoridades deixaram perplexos os cidadãos. O Presidente da República aceita o pedido de demissão, mas não demite, para já. Anuncia a dissolução do Parlamento, mas não dissolve, por agora. Apesar de anunciar a sua intenção de demitir o governo e dissolver o Parlamento, marca eleições! Será que estamos perante a criação de novos dispositivos constitucionais, tal como a declaração de intenções?

 

O Presidente da República afirma que é necessário aprovar o orçamento de Estado e promulgar várias leis e dispositivos legais necessários à economia. Por isso, afirma que demite e dissolve, mas só o fará daqui a umas semanas! Entretanto, o governo e o Parlamento exploram o mais possível este extraordinário período de terra de ninguém e de tempo de todos. Sem orçamento de Estado aprovado, depois de aceite o pedido de demissão do Primeiro ministro e de marcadas as eleições sem dissolução prévia, o Conselho de Ministros aprova, a correr, o maior aumento da história do salário mínimo! Antes de estar aprovado o orçamento de Estado, já depois de o pedido de demissão do Primeiro ministro ter sido aceite e depois de o Presidente da República ter declarado que dissolveria o Parlamento, o Conselho de Ministros aprova aumentos salariais para a Função Pública.

 

Esta crise ainda revela fenómenos estranhos. Um Primeiro ministro, cuja pedido de demissão foi aceite, propõe ele próprio o seu sucessor! O Parlamento é ignorado em todo este processo. O partido maioritário é marginalizado. O grupo parlamentar do partido maioritário é ignorado pelo chefe do partido, pelo Primeiro-ministro e pelo Presidente da República. O presidente não se sente obrigado a pedir ao partido maioritário (e não apenas ao Primeiro ministro demitido…) que indique, se for capaz, um novo Primeiro-ministro, como se faz em países com experiência democrática. Todos concordam, estranhamente, com a ideia de que o governo da nação não é do Parlamento, nem do partido maioritário, mas sim do chefe do partido.

 

Outros factos surpreendentes são visíveis para todos. Circulam nos jornais, nas televisões e nas redes centenas de transcrições de interrogatórios, de declarações, de despachos confidenciais e de escutas telefónicas. A Procuradora geral da República utiliza formas sibilinas e estranhas à clareza do Direito e ao respeito pela dignidade das pessoas, com o que desencadeia uma crise política sem precedentes. Se não tiver razão, deve ser banida e afastada. Se tiver razão, tem de mudar o seu estilo, dado que o actual não é próprio da democracia e da justiça.

 

Mais ainda do que noutros tempos, vamos ter meses sem governo pleno, sem Parlamento completo, sem orçamento a sério, sem novo programa… O próximo governo vai querer mudar e alterar. Não há costumes nem tradição suficientes para poder viver uns tempos sem governo ou com pouco governo. Tudo depende do Estado e do governo. Vão ser precisos meses para demitir, dissolver, convocar, realizar congressos, estabelecer listas de candidatos, sanear uns, promover outros, fazer campanha, eleger, apurar, formar governo e ir ao Parlamento. Sem orçamento, sem autonomia financeira e sem autoridade de serviço público. Há países onde é possível viver meses e meses sem novo governo e sem novo parlamento em plenas funções. Aqui, não. Os prazos legais são absurdos. Os costumes obsoletos. As regras fantasmagóricas.

 

É assim que os portugueses vivem.

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Público, 11.11.2023

 

sábado, 4 de novembro de 2023

Grande Angular - Uma reforma de papel

 O novo sistema de controlo de estrangeiros e de imigração entrou em vigor há dias. É provável que a causa desta reforma das instituições ligadas às migrações seja o homicídio de um candidato ucraniano ao refúgio (ou imigração). O caso teve lugar nas instalações do SEF, no aeroporto, há cerca de três anos. Se assim é, a boa notícia é a de saber que as autoridades reagem com preocupação a esta lamentável ocorrência. A má notícia é a de ver que se aproveita a situação para fazer reformas aparentemente fundamentais. Este género de resposta, em cima do acontecimento, é raramente equilibrado e eficaz, mostra inquietação, mas na verdade revela má consciência.

 

Aprovada a respectiva lei há mais de dois anos, só agora o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a que pertenciam os culpados pelo homicídio, está extinto. Foi substituído por vários organismos. O AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) surge à cabeça. Mas funções muito importantes são delegadas ou transferidas para a PSP, a GNR e a PJ, assim como para o IRN (Instituto dos Registos e Notariado). Além destes, são definidas competências para as autarquias, o SSI (Sistema de Segurança Interna) e a nova UCFE (Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros).

 

Ainda é cedo para avaliar estas reformas. Também é cedo para ter uma ideia sobre este novo sistema. Mas já é possível exprimir dúvidas. Uma é evidente: uma autoridade que necessita de centralidade de planeamento, eficácia e capacidade de resposta acaba por ser pulverizada. As diversas funções são distribuídas por várias instituições. A ponto de se ter também criado um gabinete de coordenação entre todos, isto é, o Gabinete de Coordenação e Gestão Integrada de Fronteiras!

 

A nova legislação e o novo sistema foram apresentados a público, há dias, com aparato. A Ministra anunciou pomposamente “um novo paradigma” e referiu-se aos méritos de Portugal na recepção de estrangeiros e subsequente hospitalidade, uma verdadeira “referência de humanismo e respeito pela dignidade humana”. O facto de Portugal ter adoptado um sistema único na União Europeia, diferente de todos os outros países, parece não ter suscitado dúvidas. É sempre assim, quando se diz que somos diferentes dos outros! Mas a verdade é que, numa área como esta, que inclui circulação entre países, aceitação de refúgio, regras de Schengen, valor dos passaportes, travessia de fronteiras e títulos de residência, seria bom que, em vez de brilhar pela diferença, nos ilustrássemos pela adopção de sistemas experimentados e consagrados. Mas as autoridades preferem a vaidade, talvez injustificada, de termos “um modelo único na Europa”! 

 

De qualquer maneira, convém estar atento. A concepção de reformas dos governantes nacionais, talvez especialmente dos socialistas, envolve sempre reformas globais, abordagens “sistémicas” e teorias grandiloquentes. As promessas imediatas referem a necessidade de legalizar, renovar e autorizar mais de 600.000 candidatos até Março de 2024! Como se fosse possível! Destes, mais de 350.000 são “pendências”, isto é, atrasados e ilegais à espera. Como é possível acreditar na boa fé e na eficácia de governantes que, em oito anos de governo, deixaram apodrecer a situação deste modo, com centenas de milhares de ilegais e atrasados? Pretende o governo esconder o facto de que é ele o principal responsável por esta situação?

 

Esta reforma, burocrática e de fachada, evita tudo o que é essencial. Na verdade, as políticas portuguesas para as migrações limitam-se a banalidades abstractas. Acolhimento generoso, regresso dos portugueses à pátria, direitos dos imigrantes, vantagens do multiculturalismo, tolerância, etc. As questões difíceis e que deveriam estar no topo das definições estão em geral afastadas.

 

Portugal opta pela porta aberta a todos? Quantos imigrantes podem entrar em Portugal? Há limites? Se sim, quais? E quem os define? Interessam-nos imigrantes de todos os continentes? Ou preferimos de países com os quais temos relações estreitas? Podemos fixar montantes ou fasquias para certas nacionalidades? Temos uma política igual para todos ou preferimos os originários de países de língua portuguesa? Há prioridade para trabalhadores desqualificados e indiferenciados ou para técnicos e pessoal qualificado? Portugal deve exigir contrato de trabalho prévio e residência assegurada antes de dar acolhimento? Podemos expulsar os ilegais ou devemos legalizar todos os que entrarem no país? Se os portugueses preferem emigrar para certos países, é justo que também possam preferir certos nacionais em detrimento de outros? Aceitamos que vivam em Portugal dezenas de milhares de ilegais?

 

Convém notar que, na história dos movimentos migratórios, há constantes bem interessantes. Os emigrantes vão dos países pobres para os ricos. De países sem emprego para onde há trabalho. De países onde há trabalhadores, mas não trabalho, para os que têm trabalho, mas não trabalhadores. De países em guerra para locais de paz. De países sem liberdade para democracias. De países atrasados para mais avançados. Portugal, tal como outros, tem a particularidade de estar em duas posições, a de atrasado e a de desenvolvido. Dezenas de milhares de portugueses partem todos os anos para a Europa e as Américas, enquanto dezenas de milhares de estrangeiros chegam de África, da América Latina e da Ásia.

 

Tentar controlar ao pormenor estes movimentos de população é do domínio da fantasia ou do impossível. As sociedades e o mundo têm uma margem de liberdade e de imprevisto que não se pode dominar ou extinguir. Mas é possível medir e avaliar, tentar orientar e adequar acontecimentos às necessidades. Fixar quantitativos, preferir nacionalidades de origem, valorizar as qualificações, exigir a legalização e o contrato de trabalho, punir a ilegalidade e o tráfico de força de trabalho e recusar a entrada aos criminosos são atitudes e opções aceitáveis e convenientes.

 

Nos tempos actuais, as migrações estão no centro das preocupações europeias. E talvez mundiais. O pior que pode acontecer, a Portugal, à Europa e a outros países, é deixar correr. A pretexto da “porta aberta” e do “acolhimento generoso”, cometem-se verdadeiros crimes políticos e deixa-se desenvolver o conflito, o crime e o tráfico. As velhas e doces ideias da liberdade de circulação e da escolha de local de vida e de residência, ligadas à cultura e ao trabalho, são postas em causa por esta negligência irresponsável.

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Público, 4.11.2023

sábado, 28 de outubro de 2023

Grande Angular - No círculo do Inferno

 O secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, teve uma frase infeliz, pouco cuidadosa, susceptível de interpretações contraditórias, erradas ou equívocas. A não ser, evidentemente, que ele quisesse dizer exactamente o que disse. Se for esta última hipótese, o assunto é mais grave e o tema mais importante do que um mero deslize de linguagem. Com efeito, tal quereria dizer que o Hamas tem explicação e motivos para fazer o que faz. Ora, quem tem explicação e motivos tem, sempre ou frequentemente, desculpa. O massacre de 7 de Outubro teria assim as suas raízes nas decisões das Nações Unidas de 1947, na opressão israelita, na desigualdade social, nos colonatos e na pobreza do povo palestiniano. O que quer dizer que, além do Hamas, também o Hezbollah, a Jihad, a Al Qaeda, o Irão e a Síria têm desculpa e justificação. O que significa que também a Alemanha nazi, os Estados Unidos, Israel, a Rússia, o Congo e o Ruanda têm explicação e justificação. O que se aplicaria ainda a Hitler, Mengele, Eichmann, Estaline, Mao Tsé Tung e Pol Pot. O que nos ajuda a perceber as causas do comportamento de Al Capone, Pablo Escobar e Jack o Extirpador. De acordo com o argumento inicial, toda esta gente, todos estes povos e os respectivos governos foram sempre meros agentes históricos, veículos sociais, protagonistas involuntários, sem responsabilidades pessoais, sem culpas de partido ou de grupo, sem livre escolha dos seus actos. Todos os comportamentos sociais e políticos teriam assim justificação. O que é diferente de explicação. O que diminui a culpa e a autoria. E reduz as responsabilidades.

 

Evidentemente, não deveria ser necessário dizê-lo, tudo tem as suas origens e as suas causas. Como tudo tem o seu contexto e a sua circunstância. Cada momento da história de um povo tem as suas grandezas e as suas misérias. Mas nada permite que as glórias e os sofrimentos passados justifiquem e desculpem os crimes de hoje, as agressões, os massacres e as violações do direito internacional. O massacre de 7 de Outubro não tem justificação nem desculpa. É um acto de pura agressão e de mortandade. Como tal tem de ser julgado. A responsabilidade não é de 100 anos de pobreza palestiniana, nem de 50 de colonatos. É, sim, das escolhas e das decisões dos dirigentes do Hamas e dos seus aliados.

 

            Compreende-se a reacção de Israel, que pretende justamente liquidar um movimento político que proclama a destruição de um Estado e de um povo. Mas, pela mesma ordem de ideias, não se compreende que esse mesmo Estado recorra a meios condenados pelo direito internacional, tal como o bombardeamento sistemático de populações. Não por causa do passado, nem da história, nem do contexto. Mas simplesmente por causa da humanidade e da vida. Nem um nem outro se justificam. A pobreza não desculpa o 7 de Outubro. Como os pogroms não perdoam o bombardeamento.

 

Globalmente, no universo das rivalidades, no panorama das relações internacionais, estou do lado de Israel. Não porque esteja sempre de acordo com os seus governos. Não porque aceite tudo quanto fazem. Também não por tudo o que são e defendem. Nem por serem brancos. Nem ainda por terem sido vítimas de perseguições, de expulsões e de massacres. Mas apenas e tão só porque, tudo somado, Israel está mais do lado da liberdade e da democracia do que os outros países seus rivais, adversários e inimigos. Em caso de divergência e luta, não é a cor da pele, a religião, a tradição, a etnia e a língua que me fazem tomar partido ou simpatizar com uns, em detrimento de outros. É o lado da liberdade e da democracia. Em caso de conflito, nenhum critério, pele, língua, etnia ou religião, me faz tomar partido por um qualquer país, em qualquer parte do mundo, Rússia, China, América ou África. Mas a democracia, sim. Não tenho dúvidas: em última instância, Israel fará sempre mais pela democracia do que o Hamas, o Hezbollah e os governos do Irão, da Síria ou da Rússia. Como também não tenho dúvidas em condenar a política do governo de Israel e de Netanyahu relativamente aos colonatos, ao reconhecimento do Estado da Palestina e ao embargo contra Gaza. Mesmo assim, estas políticas não são argumento suficiente para ter uma qualquer simpatia por quem quer destruir o Estado de Israel. E nem mesmo a compaixão pela sorte do povo da Palestina me faz acreditar no Hamas e desejar a extinção de Israel.

 

Mais do que uma moda, é um vício do pensamento. Tudo justificar pelo contexto, tudo explicar pelas origens e pelas causas, tudo desculpar pelo sofrimento de alguém. O assassino é filho de alcoólico, os seus actos necessitam ser compreendidos pela condição paterna. O ladrão cresceu na barraca, os seus gestos compreendem-se pela origem social. O desordeiro nasceu numa colónia, a sua conduta tem essa explicação. O traficante de droga é filho de pais divorciados, a falta de amor explica as suas acções. O violador é de uma família de capitalistas, os seus procedimentos têm essa justificação. O activista viveu sob domínio, pode cometer actos de terrorismo. Vítimas da colonização, da prisão dos pais, da etnia de origem, da condição da família, dos bairros de nascimento, da falta ou do excesso de religião dos progenitores, tudo é invocado para explicar e justificar. As escolhas de cada um, individuo, grupo, comunidade ou povo, têm sempre explicação e justificação. O crime é filho da miséria, da pobreza e da submissão. A violência é o resultado directo da desigualdade. Um povo historicamente perseguido tem o direito de perseguir outros. Uma comunidade submissa tem autoridade para destruir outras. Noutras palavras ainda: as opções de cada um não são as opções de cada um, são o resultado das origens. Os gestos dos indivíduos, das classes e dos povos não são as suas decisões livres, mas tão só os resultados dos processos históricos, das condições sociais e dos percursos de vida. Este é o reino da indiferença, da ausência de lei, da incerteza da responsabilidade e da marginalização dos indivíduos.

 

É também o reino da neutralidade, doença da humanidade, tal como diria Dante: é o local mais quente do Inferno, mais insuportável, reservado para os neutros, para os que escolheram a neutralidade em tempos de crise e de confronto. Reservado também para os obcecados com o compromisso. Não necessariamente o equilíbrio razoável, mas o compromisso entre tudo e todos. Ora, não há equidistância entre paz e guerra. Entre democracia e ditadura. Entre liberdade e totalitarismo.

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Público, 27.10.2023

sábado, 21 de outubro de 2023

Grande Angular - O fogo, a razão e o sentimento

 Há momentos na história em que a razão se encontra cercada por anéis de fogo: quase com estas palavras, foi um pensamento que nos deixou Marguerite Yourcenar a propósito de outros tempos e outros locais. Eram tempos de combates de morte, em que se afrontavam religiões e se digladiavam impérios e senhores. Momentos desses repetem-se ao longo dos tempos, nunca muito parecidos, a não ser na devastação do mundo, na destruição da razão e na perda de humanidade. Tivemos disso durante o século XX. Parece agora, neste novo século que se iniciou com esperança e confiança, que entramos gradualmente, mas depressa de mais, numa dessas épocas perigosas. Na Ucrânia e na Palestina, na Europa de Leste e no Próximo Oriente, tal como em partes importantes de África, chegámos a um desses momentos com todos os perigos já detectados. Aumentam as guerras, cresce o terrorismo, recua a democracia, diminui a coexistência e agrava-se a rivalidade entre países. Apesar de insuficiente, o retrato é aterrador.

 

Por mais que tentemos arranjar um “lado” e definir os “bons” e os “maus”, sabemos, no nosso íntimo, que encontrar lados já é mau caminho e que identificar os bons e os maus é um gesto recheado de mentira e de riscos. Também sabemos, para agravar as coisas, que é importante tomar partido, ser solidário, condenar quem o deve ser e apoiar os justos que o merecem. Mas nada disto é simples. Nem durável. Apoiar o lado da democracia, da liberdade e dos direitos humanos é imperioso. Mas sabe-se que, deste lado, os perigos, as distorções e as perversões são mais que muitos.

 

Condenar países ou nações é absurdo. É como condenar religiões. Ou povos. Mas pode condenar-se um governo, um partido ou um movimento, sem necessariamente condenar um Estado ou um povo. Condenar o Hamas, pelo terrorismo, não implica condenar os Palestinianos. Castigar o Hamas ou o Hezbollah não significa castigar os povos respectivos. Tal como condenar Netanyahu e as suas políticas não implica condenar Israel nem os Israelitas, muito menos os Judeus.

 

Aliás, em relação aos países ocidentais, está bem mais estabelecido que a condenação dos governos e das políticas não significa criticar as nações e os Estados. O governo italiano, o primeiro-ministro espanhol, o partido independentista catalão, o governo americano ou o presidente francês podem e devem ser criticados sem piedade, o que não quer dizer que queiramos destruir ou aniquilar os respectivos Estados. Criticar a política europeia ou americana actual não implica que queiramos pôr em causa a América como nação ou a Europa como União!

 

Estas verdades simples parecem não se aplicar ao Próximo Oriente. A amálgama entre Estados, povos, religiões, governos e dirigentes políticos é a destruição do espírito, a tradução exacta do clima de guerra e de irracionalidade. 

 

Toda esta questão do Próximo Oriente não é evidentemente apenas a questão do Próximo Oriente. É também da rivalidade entre as grandes potências ou entre vários países directamente interessados e vizinhos. É ainda uma questão de recursos financeiros, de petróleo e de gás. E do comércio de armamento. E um problema de nações, religiões, famílias, dinastias e tribos. Estes últimos factores, que envolvem identidade, são os que transformam os conflitos em guerra e morte. Poder político e recursos económicos são já letais em si. Com as identidades nacionais e as religiões, quase tudo deixa de poder ser possível.

 

Por toda a evidência diante dos nossos olhos, nos jornais e nas televisões, mas também por tudo quanto sabemos e se passou nos últimos anos, desde 1948, e nas últimas décadas, desde finais do século XIX, e desde sempre há dois mil anos, esta questão de Israel, da Palestina e do Próximo Oriente não tem solução durável. Poderá ter arremedos de equilíbrio temporário, mas o conflito e a guerra regressarão sempre.

 

A maior parte dos “defensores” dos Palestinianos, designadamente os governos do Irão, da Síria, da Rússia e de vários países árabes da região, não quer saber dos Palestinianos para nada, a não ser para servir de pretexto, isco, carne para canhão e causa piedosa. Os heróis são os Hamas, as vítimas são os Palestinianos. 

 

O Hamas, o Hezbollah, a Jihad islâmica e outros movimentos e partidos têm como objectivo central da sua existência a liquidação dos judeus e do Estado de Israel. Acessoriamente, fazem tudo o que podem para evitar que os projectos de dois povos vizinhos e de dois Estados viáveis tenham uma qualquer hipótese de concretização. Derrotar estes movimentos, sem massacrar o povo palestiniano, é condição essencial para o desenvolvimento de qualquer hipótese de paz.

 

O governo de Netanyahu é hoje um dos grandes obstáculos à paz na região. Em nome da sua sobrevivência, ele e os seus governos fizeram tudo o que puderam para tornar o Estado palestiniano inviável, para desenvolver os colonatos com pura agressividade militar e para manter o povo palestiniano arredado de um tratamento digno. A oposição israelita a Netanyahu, que tanto se manifestou e exprimiu nos últimos meses, é uma das raras esperanças de paz para a região.

 

É indispensável que o corredor humanitário seja permitido. É imperioso, até por uma questão de dignidade humana, levar água, alimentação e medicamentos aos Palestinianos em necessidade e sofrimento. É intolerável que o governo de Netanyahu impeça que esta ajuda chegue a quem dela necessite. É verdade que muitos “terroristas” quererão aproveitar este corredor. Mas também é possível permitir que a ajuda chegue sem que isso signifique que se está a alimentar o terror.

 

Se os Palestinianos forem massacrados, nunca mais a região viverá em paz. E a Europa também não. Se Israel for liquidado, será uma das maiores derrotas da história da democracia. Os países ocidentais, com os Estados Unidos e a União Europeia à cabeça, não têm feito o suficiente e o necessário, longe disso, para obrigar o governo israelita a aceitar a coexistência e a vizinhança de dois Estados viáveis. O governo russo tem feito tudo o que pode para impedir as soluções de viabilidade, para manter o clima de confronto e de guerra em potência. Tal como alguns governos vizinhos, do Irão e da Síria, por exemplo.

 

O que precede não tem provavelmente nenhuma novidade. É tão só uma maneira de evitar o fanatismo, de defender a paz, de reclamar compaixão e de condenar o belicismo. Sem ilusões. Apenas com uma réstia de esperança.

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Público, 21.10.2023

sábado, 14 de outubro de 2023

Grande Angular - As guerras, os refugiados e as migrações

 Mais uma vez, Israel está a ser miseravelmente atacado por terroristas. Mais uma vez, os Palestinianos vão ser a principais vítimas. O Próximo Oriente vai ser novamente sítio de desordem e de horror, de sangue e de morte. Para lá da região, grande parte do resto do mundo vai sofrer graves consequências desta guerra. O terrorismo inicial foi o que foi, terrorista. A reacção de Israel está a ser desproporcionada. Na continuação, haverá mais desproporção, que é o próprio das guerras. Não se conhecem guerras equilibradas, proporcionadas e com a justa medida! Se fossem, não eram guerras. Mesmo reconhecendo que Israel tem o direito e o dever de se defender do terrorismo e da guerra não provocada, é previsível que a resposta acrescente violência à violência.

 

É possível que esta guerra e suas consequências tenham efeitos sobre a política israelita, sobre um futuro governo e sobre as políticas ulteriores. E que mudanças políticas em Israel sejam inevitáveis. Como talvez se possa acreditar em que um ou outro grupo terrorista sejam definitivamente derrotados. Mas de uma coisa podemos estar seguros: no mundo actual, a liberdade e a democracia estão ali em causa. Como na Ucrânia. Espera-se, todavia, que o mundo ocidental e democrático, geralmente apoiando Israel, não se deixe também arrastar para aprovar as políticas erradas do governo israelita.

 

A infame ofensiva do Hamas contra Israel provocou milhares de vítimas inocentes. Por falta de preparação e excesso de presunção, a derrota do governo de Netanyahu está também na origem de milhares de vítimas igualmente inocentes. A reacção das Forças Armadas de Israel provocou já milhares de mortos e feridos sem culpas. É provável que esta guerra dure ainda bastante tempo e é possível que se alargue geograficamente. Não está fora de questão que outros países, Estados vizinhos ou distantes e outros movimentos políticos, incluindo milícias, mercenários e grupos terroristas intervenham e se envolvam no conflito. Dadas as circunstâncias da guerra e a configuração do meio geográfico, vai ser, ou já é elevadíssimo o número de mortos e feridos civis, de crianças sem protecção e de idosos indefesos.

 

É provável que as consequências desta guerra sejam terríveis, durante anos, para vários povos e muitos países. Tudo leva a crer que os efeitos económicos, políticos e sociais sejam destruidores e que a paz naquela região e no mundo esteja ameaçada e periclitante. É possível prever consequências muito negativas e efeitos devastadores para as sociedades e as economias europeias, ocidentais e outras. Tudo o que se pode prever quanto a conflitos locais e regionais, graves perturbações económicas e aumento da pobreza e da desigualdade acontecerá. Mas será ainda pior do que se imagina hoje.

 

Uma coisa é já clara nos espíritos: tal como em todos os conflitos locais e regionais, entre os efeitos imediatos e desmesurados pode contar-se o exponencial aumento de refugiados e de migrantes. Como sempre e em todas crises políticas nacionais ou internacionais, sobretudo nas que envolvem violência e guerra, há refugiados, há milhares de famílias à procura de paz e de casa, dezenas de milhares de crianças sem nada nem sequer pais e mães. Também haverá, certo e seguro, às dezenas ou centenas de milhares, simples candidatos à emigração. Os países europeus e da América do Norte, assim como alguns asiáticos, já se ofereceram para ajudar. Portugal também o deveria fazer, seja isoladamente, seja, de preferência, no quadro do esforço europeu. Mas, espera-se, com uma intenção política clara: a de separar a questão da emigração do problema dos refugiados de guerra.

 

Portugal não tem influência neste conflito, nem força política suficiente para se envolver. As questões militares estão fora do nosso alcance e dos propósitos actuais do Estado português. Também não temos peso suficiente para uma qualquer intervenção de carácter económico. Sobra, evidentemente, a eventualidade do contributo humanitário, essa sim, possível. Os emigrantes, as vítimas, os feridos, os sem abrigo, as crianças sem escola, os idosos sem sítio e os refugiados serão aos milhares. Um dos mais felizes destinos para tantos será, novamente, o dos campos de refugiados (alguns parecidos com campos de concentração) espalhados pela região. Neste capítulo, Portugal pode contribuir com significado. Afastar os campos e acolher crianças desalojadas e sem família, idosos desamparados e doentes ou feridos, pode ser um contributo real e humanamente significativo para um mundo decente.

 

Portugal tem uma larga experiência nestes domínios demográficos e populacionais. Uma longa e vastíssima vida de emigração, mas também, recentemente, um conhecimento directo da imigração. Além de um violento drama de repatriamento de portugueses. Tratou-se, histórica e actualmente, de movimentos descontrolados, sempre ao sabor das ondas, sempre com experiências dolorosas e perigosas. Então como hoje, na emigração de portugueses ou na imigração de estrangeiros em Portugal, o descontrolo, o acaso, a ilegalidade e a exploração foram quase regras. Mas há agora memórias e conhecimentos para mudar de atitude, para tornar humanos estes movimentos demográficos, para ajudar uns e outros, emigrantes e imigrantes, a usufruir de uma vida decente. Sabemos já que o controlo dos movimentos e das deslocações pode contribuir de modo decisivo para manter a realidade dentro das possibilidades. Como sabemos que esse controlo, com apoio e acompanhamento, pode ser crucial para evitar a exploração e a marginalidade criadas pela ilegalidade.

 

Toda a Europa, além de outros países, está à beira de conhecer e de viver episódios perigosos de conflitos raciais, culturais, religiosos e políticos directamente ligados com as migrações descontroladas. Estas resultam de situações económicas e sociais conhecidas, de desastres de toda a espécie, mas também de guerras e conflitos. Intervir depois dos acidentes e dos incidentes é sempre negativo e perigoso, para não dizer inútil e ineficaz. Esta situação de guerra, tão perto de nós, pode ser uma oportunidade para mostrar que aprendemos com a história. Impõe-se uma acção solidária e humana, como também um esforço de controlo dos acontecimentos. Portugal tem o direito de escolher as populações que quer receber. Como faz actualmente com brasileiros e falantes de língua portuguesa. Pode fazê-lo também com crianças e vítimas da guerra. Palestinianos e judeus sobretudo.

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Público, 13.10.2023

sábado, 7 de outubro de 2023

Grande Angular - Datas, comemorações e liturgia

 Em grande parte, e cada vez mais, as comemorações nacionais servem para enviar recados. Dos Presidentes da República, dos Primeiros-ministros, dos Presidentes de Câmara, dos chefes militares… De todos os que têm ou julgam ter qualquer coisa a dizer, alguém a quem atacar ou alguma coisa a criticar. A ideia de que comemorar a República deveria ser comemorar a República é muito pouco seguida. Os que comemoram pretendem endereçar flechadas a amigos e inimigos. Aliás, o número de oficiantes é cada vez maior, pois é uma maneira de marcar território. Também aumenta o número de oficiosos, perante a diminuição do público. Este último, diante do absoluto desinteresse dos procedimentos, é reduzido.  Até fisicamente, na praça habitual, cresce a distância entre oficiais e público.

 

Comemorar a República, hoje, é totalmente destituído de significado. Aliás, a própria origem do fenómeno é já de si suspeita. É verdade que a Monarquia, em 1910, estava pelas ruas da amargura, a merecer substituição. Mas, assassinatos de chefes de Estado e de governo, guerras civis durantes anos, prisões arbitrárias e terror de Estado, desordem nas ruas, falência económica e financeira e instabilidade de regime não são propriamente razões para comemorar o que quer que seja. Se acrescentarmos a perseguição religiosa, a repressão dos sindicatos e a participação trágica e caricata de Portugal na 1ª Guerra mundial, teremos um quadro quase completo do que comemoramos hoje. Pobre país que necessita de tão medíocres e tão equívocos factos para se festejar! Louvar a República, durante a ditadura, poderia ter sentido. Hoje, é inútil e desajustado.

 

É verdade que as liturgias nacionais são sempre assim. Convenções, vacuidade de pensamento e inutilidade da política levam a que se estabeleçam regras geralmente artificiais. Às vezes, como no caso do 10 de Junho, nem sequer há factos incontestados para comemorar: são meros acasos oportunistas. Outras vezes, são datas e factos razoavelmente travestis. Mesmo o derrube da ditadura, a 25 de Abril, ocorrência certa e segura, serve sobretudo para ajustar contas em público, mas com ar de cerimónia e boa educação. Outras datas, como a do 25 de Novembro, são vergonhosamente apagadas, pois não servem os intuitos inconfessáveis dos poderosos do dia.

 

O 5 de Outubro serve para alguns titulares de cargos oficiais e de partidos distribuírem punhaladas e indirectas. Mesmo se, como raramente acontece, com qualidade literária, os discursos do 5 de Outubro são perfeitamente inúteis. Até quando têm sentido da oportunidade, as proclamações do 5 de Outubro morrem no dia seguinte.

 

Apesar de tudo o que se diz, mau grado boas intenções e não obstante a virtude de alguns discursos, a verdade é que o 25 de Abril é cada vez mais a data de arremesso da esquerda contra a direita, enquanto o 25 de Novembro é o ricochete da direita contra a esquerda. O que os socialistas estão fazendo é inaceitável. Eles querem separar o que sabem ser contínuo: o 25 de Abril iniciou, o 25 de Novembro salvou e as eleições fundaram. É pena que assim seja, pois são todas boas datas. Já os nefastos 28 de Maio, 28 de Setembro e 11 de Março, apesar de haver quem as queira recordar, morrem devagar na sarjeta da história. O 1 de Dezembro já não existe, a não ser para nostálgicos de outras gestas. O 1 de Maio é um dia de férias, não um feriado. O 11 de Novembro, que já foi data, é um esquecimento. Sobram as datas religiosas e similares que, essas sim, pelas romarias, ainda têm clientes e seguidores. As festas do Senhor dos Passos, da Senhora da Agonia e do Avante têm mais apelo e carisma do que qualquer data nacional, oficial ou patriótica.

 

Por mais pesados que sejam os discursos, não é possível deixar de pensar na sua inutilidade. E no facto de serem vícios de liturgia e oportunidade. Até as candidaturas aos partidos e a futuras eleições são tema e pretexto. Comentadores e jornalistas estão à espera de uma só coisa: dos recados, das indirectas e das mensagens cifradas. Ouviu-se o Presidente da República, mas pensava-se no Primeiro-ministro. Escutava-se o Presidente da Câmara, mas a presença era a do líder do PSD. Ouviram-se todos, a pensar no partido Chega.

 

Comemorar é hoje fazer discursos! O mais penoso, nestas cerimónias, são os lugares-comuns. São em menor quantidade no 5 de Outubro, só há dois oradores. Mas a sua densidade é mesmo assim elevada. Os “clichés” mais habituais repetem o “mantra” mais famoso: não podemos esquecer os jovens. Outros divagam sobre as necessidades de fazer pedagogia: ensinar a democracia nas escolas e explicar a toda a gente, sobretudo os mais jovens, os feitos da democracia e a bondade da República! No dia em que os virtuosos republicanos tenham ensinado a democracia aos jovens e tenham publicado manuais sobre a democracia, nesse dia, final e felizmente, a democracia vencerá! Este último 5 de Outubro, um pouco mais denso e de mais recorte literário do que habitualmente, não escapou à tradição. Com mais condimentos: os próprios oradores desvalorizaram o poder da palavra, sugerindo que era a acção que podia salvar a democracia. Avisaram contra os perigos e garantiram que a democracia corria perigos. E alertaram para os riscos do atraso de reformas.

 

Estas longas listas de lugares-comuns, de frases repetidas sem pensar e de fórmulas de retórica vazia são um inimigo mortal da inteligência, é evidente, mas também da liberdade. Uma das maneiras de destruir a democracia consiste em alimentá-la de lugares-comuns. Ou em deixar que os rituais percam razão e sentido, deixem de ser úteis ao equilíbrio das sociedades e da vida em comum.

 

Há rituais necessários. Como os que servem propósitos e fazem com que se respeitem regras. A democracia é isso mesmo: uma convenção que se deve respeitar. Desde que não seja destituída de razão, uma liturgia serve objectivos. Entre outros, o de recordar a origem das normas e dos valores. Ou então, tornar comuns certos hábitos. A força dos rituais é tal que, por vezes, nem é necessário recorrer à lei. Há costumes que se impõem por si, porque são úteis e porque ajudam na vida colectiva. Recordar ou comemorar pode ter essa intenção: a de dar uma vida e um presente. Mas é muito fácil perder de vista a origem e a função das regras. Quando os rituais não são mais do que isso mesmo, só rituais, algo está errado. É, sobretudo a perda de sentido. Esse é o grande perigo: a vacuidade da política.

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Público, 6.10.2023

sábado, 30 de setembro de 2023

Grande Angular - A Europa em perigo

Não é a luta de classes que ameaça a Europa e a paz. Nem o espectro do comunismo, reduzido agora à ínfima espécie. Pode ser que a globalização acelere a decadência europeia. Mas é sobretudo, uma vez mais, como quase sempre na história, a questão nacional que ameaça. As nações, os Estados nacionais e as ambições dominadoras manifestam-se e não se encontram respostas neste formidável arranjo que é o da União. Talvez seja a mais sólida aliança política pacifica da história recente, mas hoje revela-se frágil e insegura. Incapaz de progresso federal, aliás arriscado. Mas também inapta para resolver as perenes questões nacionais. Sem ultrapassar esta velha certeza: a de que a democracia é de pertença ou nacional.

 

Do Brexit à Catalunha, da Irlanda à Escócia, da Padânia à Polónia e da Península Balcânica ao Mar Negro, sucedem-se os sinais alarmantes de conflitos inevitáveis. Ou antes, dificilmente reparáveis. Agora, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, com os conflitos na Arménia e no Azerbaijão, com as candidaturas de mais nove países à União, com as dificuldades húngaras e polacas e com as vagas descontroladas de emigrantes africanos e asiáticos, a Europa conhece um período de vulnerabilidade como já não se sentia há muitas décadas.

 

Há uma espécie de regresso do nacionalismo que cria a intranquilidade. Todas as pulsões antidemocráticas e antieuropeias procuram no populismo nacionalista a sua energia. Com uma razão certa: a Europa e a sua União não têm sabido conciliar o espírito federal com a tradição nacional. As votações tão significativas das correntes nacionalistas em França, em Espanha, na Itália e na Alemanha, por exemplo, além da Hungria e da Polónia, são sinais de que o nacionalismo está em ascensão. As manifestações de crise das democracias e do sistema europeu têm sido tonificantes para a direita nacionalista. Nos programas de muitos partidos, é o nacionalismo o motor retórico, não a antidemocracia.

 

Desde os anos cinquenta que, por duas ou três vezes, os europeus conseguiram o que sempre pareceu impossível: conciliar, com paz e democracia, aspirações federais com tradições nacionais. Nem sempre foi fácil, várias vezes a Europa (o Mercado comum, a CEE, a CE, a UE…) esteve à beira do colapso. Mas talvez nunca, como agora, os perigos fossem tão grandes, as ameaças tão letais e os inimigos tão importantes.

 

Os dirigentes europeus têm o hábito de desvalorizar os problemas. É o que eles entendem por acalmar os espíritos. Mas esta maneira olímpica de considerar que graves são os problemas a longo prazo, como as alterações climáticas, para os quais tudo é urgente e nada imediato, pode levar facilmente ao desastre. No Brexit, em Barcelona, em Lampedusa, em Marselha e em Kiev está de facto a jogar-se tudo. É nestes sítios que a Europa morre devagar. É nestes locais que renasce o nacionalismo na sua vil espécie. Pior mesmo só o nacionalismo imperialista de Moscovo, que também é uma ameaça contra a Europa.

 

Com as más recordações da história e com a justificada repulsa do nacionalismo, os dirigentes europeus não conseguem encontrar o seu caminho. A resposta não é “mais burocracia europeia”, “mais fundos de coesão”, “mais indemnizações e subsídios” … Já se percebeu que esses argumentos, válidos durante décadas, não valem o que valiam. Parece evidente que só respostas que preservem o espírito nacional e as tradições culturais, em combinação com a ideia europeia, terão o condão de interessar aos eleitorados descrentes.

 

Faz parte da ortodoxia considerar que o patriotismo é bom e o nacionalismo mau. O primeiro significaria amor à pátria e à comunidade, assim como solidariedade para com os seus iguais. Enquanto o nacionalismo, tendo o mesmo ponto de partida, a nação, significaria o sentimento de superioridade de uma comunidade de cultura e etnia, com exclusão de outras. A nação, como tal e com esta designação, é recente, tem poucos séculos, serviu de base para a afirmação dos Estados modernos. Já a pátria, como sentimento de pertença, tem muitos séculos, talvez milénios. É muito fácil afirmar-se patriota e detestar o nacionalismo. Mas a verdade é que têm ambos a mesma fonte, a mesma etimologia e raízes afins.

 

A esquerda tem tendência a dizer-se patriota, mesmo quando é nacionalista. A direita prefere considerar-se nacionalista, mesmo quando não é patriota. Os russos em geral, e os comunistas em particular, sempre se disseram patriotas, até porque o seu Estado tem muitas nações submetidas. Mas o nacionalismo russo é uma das grandes ameaças contra a paz na Europa. Os nazis, pouco interessados em compor com outras nações, consideravam-se nacionalistas, sem remorsos e com orgulho. Cultivavam o espírito conquistador, como os russos sempre fizeram. Os revolucionários franceses foram nacionalistas e patriotas sem escrúpulos nem hesitação. Portugueses, espanhóis ou italianos oscilaram, ao longos dos tempos, entre o nacionalismo e a patriotismo. Já os ingleses foram sempre as duas coisas, além de imperialistas.

 

Como é evidente, não há um patriotismo europeu. Muito menos nacionalismo. Pode haver, é certo que há, um orgulho europeu, que a União tem sabido cultivar, com cautela e sabedoria. Mas sem grandes resultados. Na verdade, o patriotismo de cada nação europeia é mais forte. Em tempos de crise, como actualmente, a situação é ainda mais dedicada: na verdade, os argumentos políticos contrários à ordem estabelecida socorrem-se do nacionalismo para se oporem. Aí se fundam várias espécies de populismo.

 

A Europa da democracia e da liberdade e a Europa da grande cultura e dos direitos humanos só se defendem se conseguirem combinar os seus impulsos federalistas com os seus sentimentos nacionais. Só o alcançarão se souberem defender a nação, sem nacionalismo. E se souberem proteger a sua cultura sem xenofobia. E se perceberem que ter pátria é melhor do que ser apátrida.

Que existe de comum entre a guerra da Ucrânia, a crise económica internacional e o desastre migratório do Mediterrâneo? Aparentemente, nada. Na verdade, muito. A Europa está a perder, vive cada vez mais dependente, nas últimas décadas, da força americana, da indústria chinesa, da energia russa, da mão de obra asiática e africana, dos produtos alimentares e das matérias primas de todo o mundo. Parece que a Europa encontra satisfação na sua vocação de parque temático e de atracção turística. A sua força é o seu passado. Não o seu futuro.

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Público, 30.9.2023