sábado, 24 de maio de 2025

Grande Angular - Uma boa revisão é útil e necessária

 Em resultado das eleições, a revisão da Constituição transformou-se naturalmente em assunto importante e imediato. As maiorias possíveis são diferentes de tudo o que se conhecia do passado. Há hoje uma maioria de direita que dispensa os socialistas. Há também uma maioria do centro que dispensa o Chega. Isto faz com que o assunto se tenha tornado interessante, quase picante. Mas a discussão em curso limita-se aos aspectos anedóticos, às lutas de capoeira, à coreografia e ao adjectivo. O que sobressai é saber “com quem” e “quem se quer diminuir”. O que anima a conversa é saber “contra quem se faz a revisão”. É pena. A discussão deveria começar com o “quê”, antes do “com quem”. A revisão deveria fazer-se a favor dos cidadãos e do país.

 

A Constituição é absurdamente mal escrita, inconstante, incoerente, contraditória, exuberantemente ignorante, inutilmente complexa, demasiado longa… Todavia, foi um milagre. E salvou a democracia. Não é pouco.

 

Vivemos com tantas coisas estúpidas que podemos certamente viver mais uns anos com esta Constituição. Traduz concepções paternalistas, directivas, autoritárias e elitistas das sociedades, dos cidadãos, dos poderes e da democracia, mas a verdade é que nos ajudou ou permitiu viver até hoje. Nem sempre bem, muitas vezes mal, mas em paz. Já não é pouco.

 

Discute-se agora a nova hipótese de revisão. Não pelos bons motivos. Uns porque querem mandar ou matar o regime. Outros porque pretendem defender o estado actual. Uns porque desejam mostrar que ganharam as eleições. Outros porque não querem reconhecer que as perderam. Mas a verdade é que há boas razões para o fazer. Há muitos anos que essas razões existem.

 

Há matérias que necessitam mesmo de revisão constitucional. Ou para fazer melhor do que lá está, ou para permitir evolução. Toda a matéria relativa à Administração Pública, à descentralização, aos órgãos regionais e à regionalização (ou região administrativa) deveria ser revista e actualizada. E sobretudo dever-se-ia permitir que as sucessivas gerações de cidadãos tenham o direito e a competência para decidir gradualmente como entenderem. O actual carácter imperioso é errado, como se tem visto. A necessidade de criar regiões em simultâneo é infantil e autoritária. O pior é o que temos: está na Constituição, mas não existe e não se respeita.

 

De igual modo, o poder popular a exercer sob a forma de referendos e iniciativas populares exige clarificação, sem o que são inutilidades que servem para pouco. Os constituintes portugueses, quer dizer, os partidos, sempre temeram estas formas de exercício de poder. Se assim for, a solução seria retirá-las definitivamente da Constituição. Mas o melhor é dar-lhes significado e função à altura. Por exemplo, alargar o elenco das matérias referendáveis. E reforçar o seu poder vinculativo.

 

O sistema judicial deveria também ser revisto. São mais de vinte artigos a pedir um reexame, além de outros, sobre deveres e direitos, por exemplo, com implicações na justiça. É esta talvez a mais importante das necessidades de revisão. Esta deveria ser precedida de debate, promovido pelos deputados, pelos órgãos de soberania, pelas magistraturas, pela academia e pelas associações. Há inúmeros capítulos e temas a necessitar de revisão: direitos e deveres dos cidadãos e sua tutela; direitos e deveres dos magistrados e dos tribunais; questões de funcionamento, como por exemplo as dos prazos, do segredo de justiça, dos deveres funcionais e dos recursos. Além das relações entre os órgãos de soberania (Parlamento, Presidente e Governo) e órgãos judiciais.

 

Também seria importante rever e apurar questões de funcionamento dos órgãos de soberania, como por exemplo a necessidade de aprovação, pelo Parlamento, dos governos e dos seus programas, assim como a aprovação, pelos deputados, das mais importantes nomeações de altos funcionários. Uma parte da instabilidade política nacional, sobretudo actual, resulta do dispositivo constitucional que promove governos minoritários.

 

Igualmente interessante seria rever certos aspectos do sistema eleitoral, como o alargamento das eleições individuais e uninominais, além das candidaturas independentes.

 

Uma boa revisão é útil pelos seus próprios termos, pelo seu conteúdo, não pela capacidade de fomentar a luta de armadilhas. Uma boa revisão afasta do horizonte o mito da revisão profunda e excessiva. Limpa repetições, erros e incongruências. Na verdade, há muitas matérias que deveriam estar contempladas na lei, mesmo se com necessidades de votos reforçados, mas cuja residência na Constituição acaba por ser uma diminuição dos poderes dos cidadãos de cada geração.

 

Além de útil e de melhorar a nossa vida colectiva, dando mais responsabilidade aos cidadãos e aos seus representantes, uma boa revisão afasta a revisão rancorosa e a mudança de regime.

 

Quanto mais a Constituição for fechada e conservadora, maior será a sua vulnerabilidade. Imutável, a Constituição convida a que se faça uma nova. Feita nas condições em que o foi em Portugal, sob pressão, dependendo das circunstâncias e do curto prazo, moldada por interesses menores e ocasionais, a nossa Constituição deveria ser mutável, poder evoluir. Com tantos pormenores mesquinhos e inúteis, esta Constituição, para manter o que tem de mais importante, precisa de ser flexível e adaptável ao nosso tempo.

 

A revisão pode ser levada a cabo com vários partidos, com todos ou quase todos. Há várias maiorias possíveis. Ao contrário do que alguns pretendem, a melhor revisão seria aquela que consegue mais vasto apoio, mesmo se sabemos que, na maior parte dos casos, isso não será possível. Mas é bom que seja tentado. É bom que os cidadãos percebam que os partidos fizeram os possíveis. É bom que os cidadãos percebam que os partidos não se limitaram a coreografias ridículas de culpabilização ou de humilhação do outro. Muito especialmente, seria excelente que a revisão fosse um verdadeiro e exemplar debate nacional. Tanto quanto o resultado, a revisão seria boa pelo processo que a ela leva. A participação de muita gente que não sejam os habituais profissionais da política só será útil. A academia, as profissões, as autarquias, as empresas, os sindicatos e os intelectuais dariam seguramente um contributo valioso e talvez mesmo criativo. Uma boa revisão afasta uma má revisão.

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Público, 24.5.2025

1 comentário:

Carneiro disse...

Mais importante do que a Constituição e as leis são os Homens/Juizes que interpretam e aplicam. O prática tem sistematicamente provado isso.

Portanto com os juizes certos a Constituição actual serve qualquer intento. Está maioria de direita pode escolher os seus preferidos (obedientes)!

Assim toda a discussão mais não será do que circo ou quezília partidária e fuga à governação no interesse das pessoas.