Entre outras características, as instituições podem ser fortes e independentes. Ou o seu contrário: fracas e submissas. A força das instituições advém-lhe da história, da tradição, do consentimento renovado e da sua independência. Actualmente, é bem provável que a vulnerabilidade das instituições seja o elo mais fraco da democracia portuguesa.
Sem instituições fortes e independentes, os direitos fundamentais, com as designações variadas de direitos humanos, do cidadão, cívicos e políticos, são fracamente defendidos. A liberdade humana e a cidadania não se esgotam nos regimes políticos, nem nos sistemas constitucionais e jurídicos. São conhecidos Estados que utilizaram o Direito para limitar, reduzir ou até contrariar os direitos humanos e as liberdades. O Estado Novo, uma “ditadura jurídica meticulosa”, como lhe chamou em tempos Manuel de Lucena, é um bom exemplo. O Direito e a Constituição não defendem necessariamente as liberdades e os direitos humanos. Nem respeitam infalivelmente as actividades e iniciativas de outra índole, como sejam a religião, a cultura, a arte e a ciência.
O que faz com que os sistemas políticos, o direito e a lei respeitem os direitos fundamentais e as liberdades é justamente a força institucional. Esta última mede-se pela sua independência e pelo permanente consentimento social. A evolução recente da sociedade portuguesa dá indicações de perigos que espreitam, de instituições frágeis e de tentativas de redução da sua autonomia. Se é verdade que a democracia erige o povo em soberano, em princípio organizador da comunidade, também é verdade que tal génese não permite acreditar que, neste regime, quem manda é a política, que a política se sobrepõe ao direito, à cultura, à economia, à religião e à arte. Na verdade, no respeito pela liberdade, a política tem de compor com todas aquelas esferas de acção humana.
Vivemos quase quatro décadas de corporativismo autoritário e de ditadura, durante as quais vigorou o princípio do predomínio da política e do Estado. Assim como vigorou, em consequência, a submissão de quase todas as actividades às regras e às leis aprovadas autoritariamente. Não se tratava de regime totalitário, no qual as instituições são destruídas ou eliminadas, mas sim de regime autoritário e ditatorial, que submetia as instituições e mantinha sob vigilância todas as actividades e iniciativas públicas.
Desde a fundação da democracia, nos anos 1970 e 1980, os portugueses vão conhecendo uma vida colectiva até então inédita, assente, entre outros, na liberdade, no primado do direito, nas garantias fundamentais e no pluralismo. Mas, sob pressão dos partidos, foi-se criando a ideia de que a política se sobrepõe a toda a vida pública. Assim se faz com que, dia após dia, ano após ano, se fortaleça o Estado, em detrimento das instituições como, por exemplo, as academias, as associações, os sindicatos, as empresas ou as religiões. A centralização administrativa, o primado da política, a dependência financeira e a tutela europeia completam o quadro de vulnerabilidade. A que também não é estranha a ingerência política.
Olhemos à nossa volta. Que organizações aumentam os seus poderes e as suas funções? O Estado central. A União Europeia. A grande banca e as muito grandes empresas multinacionais. Os partidos políticos. Os clubes de futebol. Quem perde poderes e autonomia? As magistraturas. As Forças Armadas. As universidades e as academias. As associações profissionais. Os sindicatos. A Igreja católica e as restantes religiões. As escolas. A imprensa. Neste panorama cinzento, as autarquias municipais ocupam lugar especial: ainda fortes, mas dependentes.
O caso da justiça é talvez o mais grave. Dela dependem a democracia e a liberdade. Os episódios quase quotidianos relativos a crimes de corrupção e nepotismo, a abuso de poder e branqueamento, a roubo e aproveitamento indevido, aos seus julgamentos e à instrução de processos, deixam a população inquieta e desconfiada. É estranho que os titulares dos cargos políticos não compreendam o mal que se está a fazer. Confiar na justiça é hoje raro ou impossível. A morosidade, as chicanas, a incompetência, a manipulação e a distorção de procedimentos são excessivos. Alguns bandidos da política e da finança formam uma legião que vai deixar gerações de portugueses descrentes da democracia e da justiça. Não há estrada que não esteja manchada. Não há PPP que não esteja sob forte suspeição. Não há concurso de que não se suspeite. Todo este universo de corrupção, incompetência, roubo e injustiça é, para alguns, fonte de regozijo: assim se mostra a pulhice da economia de mercado, a vulnerabilidade da sociedade liberal e a corrupção endémica da democracia. Para eles, quanto pior, melhor. Sempre tiveram a certeza da superioridade da economia estatal, da banca nacionalizada, da justiça dependente e da democracia temperada por regras que não apenas a da representatividade democrática. O que realmente impressiona é que os dois grandes partidos não percebam que os alicerces da sua vida e os factores da sua sobrevivência estão em séria crise.
Também nas Forças Armadas assistimos a acontecimentos que sublinharam a fraqueza desta instituição. As Forças Armadas não se querem independentes do soberano (monarca, Estado ou povo), mas sim autónomas dos governos. Tal como as magistraturas, querem-se impendentes dos governos, dos partidos, das profissões, dos sindicatos e das associações. Mas são dependentes, em última instância, do povo soberano, sobretudo para respeitar e fazer respeitar a lei, que não é da sua autoria. As universidades querem-se independentes de tudo e de todos, no que à ciência, à investigação, ao saber e à pedagogia diz respeito. Mas, nas suas funções de serviço público, dependem do soberano e dos órgãos de soberania. É este equilíbrio, entre autonomia e independência, por um lado, e dependência da decisão soberana, por outro, que é difícil de manter, mas que é o segredo da liberdade.
A fraqueza e a debilidade das instituições em Portugal serão talvez as principais ameaças das liberdades e da democracia. Ao lado da pobreza, da desigualdade e da falta de cultura, a fraqueza da democracia portuguesa reside na fraqueza das suas instituições.