sábado, 28 de dezembro de 2024

Grande Angular - A Europa em perigo

 Estes anos vão ficar na história da Europa. Pelas boas ou pelas más razões. As boas: se a Europa, a sua União e as suas nações conseguirem ultrapassar as derrotas passadas e os perigos próximos. As más: se a Europa e as suas nações soçobrarem, perderem, forem derrotadas e não saibam ou não consigam recuperar. Parece apocalíptico? É. Exagerado? Talvez não. Possível? Sim.

 

Nas derrotas (políticas, militares, económicas, desportivas e outras), o pior é quando o potencialmente derrotado não se dá conta e não percebe que caminha para a sua perda. Ainda por cima, quando tem meios para evitar a derrota, mas não sabe, não quer, não consegue ou prefere não os utilizar. É o caso da Europa. Está à beira de derrotas históricas, mas nega a evidência. Tem meios para, a prazo, evitar a derrota, mas não os utiliza. Sabe quais são os caminhos para vencer ou pelo menos evitar o pior, mas, por miopia política, recusa percorrê-los. Prefere a complacência. E esperar que as coisas acabem por correr bem.

 

Que erros já cometeu a Europa? Que novas derrotas se preparam? A começar pelo princípio: a Europa esticou excessivamente a corda federalista, sem a conseguir finalizar; destronou as nações, sem as eliminar. Ficou a meio caminho, local de todas as derrotas: nem nações orgulhosas, nem federação poderosa. Os alargamentos foram excessivos e arriscados. O avanço a Leste foi imponderado.

 

A Europa deixou correr a NATO e os Estados Unidos, ficando paulatinamente para trás, poupando recursos e dinheiros, evitando gastos e investimentos, ameaçando a Rússia de modo inconsequente e substituindo a defesa pelos benefícios sociais. Ficou a reboque da América. E desarmada diante da Rússia.

 

O BREXIT constituiu uma das maiores derrotas da Europa em toda a sua existência. Da Europa continental, da União e da Grã-Bretanha. Uma das mais importantes nações europeias e mundiais, um dos melhores exércitos da Europa e do mundo e uma cultura empresarial única abandonaram a Europa. Para nunca mais voltar.

 

Ao longo de décadas, por cupidez e preguiça, por espírito snob e ganância, por facilidade e irresponsabilidade, a Europa deixou definhar a sua indústria, subsidiou a sua deslocalização, fomentou o recurso às empresas do Terceiro Mundo e entregou à China toda a sua capacidade manufactureira. A Europa libertou-se da sua sujidade, do seu lixo e da sua poluição: à custa da sua independência.

 

Por miopia e ilusão, a Europa entregou-se nas mãos da Rússia, do seu gás e do seu petróleo, enfraquecendo-se e fortalecendo aquele que é seguramente o mais vil dos actuais impérios à face da terra.

 

Há várias décadas que a Europa vende tudo o que tem. À China e à Rússia, à América e às ditaduras islâmicas, aos poderosos africanos e aos salteadores asiáticos e latino-americanos. Não só a empresas e Estados, mas também a bandidos e predadores. Fábricas e hotéis, serviços públicos e habitação, estradas e comboios, aeronáutica e telecomunicações, praias e montanhas, energia e barragens.

 

Há décadas que a Europa vem substituindo as suas personalidades, os seus intelectuais, escritores e cineastas, músicos e artistas, os seus académicos, cientistas e humanistas, os seus políticos esclarecidos e cultos, os seus sindicalistas de combate e os seus militares de confiança, por gestores das coisas dos outros, administradores de outrem, solicitadores de bens alheios e empregados de ocasião.

 

A Europa do cristianismo, do individuo, da dignidade da pessoa humana, dos gregos e do Renascimento, do iluminismo, da república, da cidadania, da democracia, dos direitos humanos, do sindicalismo, da ciência, da coesão social, das artes e das letras, essa Europa já é pouco mais do que recordação, tudo estando cedido em troca da arte digital, da inteligência artificial e da criação em streaming.

 

A Europa que viveu de milhões dos seus terem emigrado para outros continentes e de ter recebido milhões de emigrantes das suas e de outras nações, que soube misturar com carácter e acolher com personalidade, essa Europa está hoje enredada e prisioneira da desordem do tráfico de pessoas e dos mesquinhos interesses de dinheiros.

 

A Europa nunca chegou a ser Governo e Parlamento. Deixou de ser Banco. Não é mais Fábrica. Já tinha deixado de ser a Universidade. Já não é Igreja. A Europa é tudo isso, a prestações, mal e toscamente, sem personalidade nem identidade. A Ilustre Casa Europeia, casa de fidalgos arruinados e de pomposos gestores dos interesses de outros, perde todos os dias força e carácter. E, como acontece nas fábulas, não sabe que está a perder. Ou nega.

 

Em crise, nas vésperas de previsíveis derrotas de civilização, a poucos dias do novo e terrível presidente americano, a semanas ou meses de uma temível derrota ucraniana, no início de uma hegemonia sino-americana conflituosa, perto de uma verdadeira conquista islâmica e à beira da humilhação que será a do abandono da Europa pela América, os europeus, muitos europeus, sobretudo os seus dirigentes, comportam-se como se de nada se tratasse. À iminência do desastre chamam exagero e ansiedade. Como antes, aos cemitérios, outros chamaram paz.

 

Como sempre na vida e na história, a glória e a fama não conseguem esconder a vilania e a maldade. Os grandes feitos europeus não fazem esquecer a conquista, a escravatura, a opressão e a ditadura. Mas a Europa soube sempre ser a primeira a criticar os seus próprios erros, as suas malfeitorias e os seus desmandos. Será agora novamente capaz de reconhecer erros e evitar derrotas?

 

A Europa e as suas nações ainda têm alguma força, algumas empresas, alguns cientistas, alguns políticos, alguns intelectuais, alguns trabalhadores, alguns artistas e alguns militares com os quais se possa imaginar que seja possível evitar o desastre, transformar a derrota em vitória e garantir, mais do que uma ressurreição, um renascimento. A Europa tem beleza, natureza, cultura, tradição, história, reputação, património, diversidade e riqueza suficientes sobre as quais pode reconstruir e recomeçar. E ainda tem empresas e instituições.

 

Basta a vontade? Não. De modo nenhum. É necessário um colossal esforço. Muito estudo. Trabalho e ciência. Investimento. Defesa própria. Segurança autónoma. Muita liberdade e crítica. Direitos humanos. E liderança política.

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Público, 28.12.2024

sábado, 21 de dezembro de 2024

Grande Angular - Ainda e sempre a imigração

 As migrações mudam os países e as sociedades. Muito ou pouco, depressa ou devagar. Mas sempre. Para melhor ou pior, depende. Mudam os que imigram, mudam os que emigram. Mudam os que recebem e acolhem. Mudam os que saem e chegam. Muito ou pouco, mas sempre.

 

Há migrações e mudanças que se fizeram em paz, com bons e maus resultados. Migrações e mudanças que se fizeram bruscamente, em guerra, com más e boas consequências. E mudanças que provocaram a vida de uns e a morte de outros. Mas todas as mudanças, todas as sociedades se fizeram com povos distintos, várias etnias e gente diversa. Não há sociedade uniforme e original. Todas as populações são fruto e resultado de misturas, conquistas, migrações, fugas, derrotas, massacres, glórias e vexames.

 

Na origem de Portugal, há uma dúzia ou mais de povos. A unidade nacional, a uniformidade de raça e de cultura, a singularidade de língua, a especificidade do povo e da etnia são meras construções históricas, umas pacificas, outras violentas e forçadas. Umas agressivas, outras defensivas. A expulsão de vários povos europeus da Península e o abandono de outros, a derrota ou a conversão dos Mouros, a expulsão ou a cristianização dos Judeus, são episódios bem conhecidos da história que muito contribuíram para a formação da nossa nacionalidade. Tal como a conquista e os descobrimentos. Foi assim que se fez a nação.

 

Nacionalismo é, em geral, hoje, sinónimo de opressão, racismo, domínio político e religioso, xenofobia e conservadorismo. Mesmo moderado, o nacionalismo não goza hoje dos favores das doutrinas. O universalismo e a globalização surgem como novas virtudes, enquanto internacionalismo e cosmopolitismo parecem ter êxito assegurado na crónica e na lenda.

 

É verdade que há qualquer coisa de tentador nas fábulas do internacionalismo. Somos todos iguais, não há melhores nem piores, não há amigos e inimigos, somos todos irmãos, filhos do mesmo deus, naturais da mesma terra, gente do mesmo sangue, raça do mesmo genoma… É tentadora a mitologia da igualdade absoluta e da livre circulação.

 

Certo é que, historicamente, a democracia e as liberdades tiveram uma geografia. A autenticidade cultural teve e tem um território. As fronteiras são tantas vezes agressivas, símbolos de perda de liberdade e resultado de opressões, mas também são defesas de povos e de nações, de culturas e de línguas, de património e de modos de ser e viver. As fronteiras portuguesas, das mais antigas da Europa, podem ser consideradas opressivas, limites à circulação e aos movimentos, mas também são e foram protecção dos portugueses diante de espanhóis e franceses, europeus em geral, norte-africanos e outros… O mesmo se poderá dizer de tantos países europeus e de tantas fronteiras.

 

O sonho europeu, o encanto federalista e a fantasia de uma Europa sem fronteiras nem Estados podem ter enorme capacidade de atracção. Mas não é seguro que sejam só um grande passo em frente pela liberdade e para a democracia. No essencial, a defesa de Portugal e dos portugueses são Portugal e os portugueses. Mesmo com a ajuda dos aliados. Mesmo com o apoio dos europeus. Mas é aqui que começa a liberdade. É aqui que mora a democracia. Um Português defende-se recorrendo ao Estado, às polícias, aos magistrados e à Justiça. Ao povo e aos seus iguais. Um português que queira ser representado, vota num português. Nem um francês representa um português, quanto mais um Croata. E não há português que represente um polaco ou um grego.

 

Há qualquer coisa de formidável e de encantador na ideia, na imagem e na sensação de ver e sentir nas ruas de Lisboa ou do Porto todos os cheiros deste mundo, todas as roupas imagináveis, todos os deuses, todas as cores, todas as línguas, todas as modas, todas as músicas e todos os costumes do mundo! Mas sabemos que os últimos recursos, as últimas defesas, as últimas protecções, os últimos reconhecimentos, as últimas identificações são com os portugueses, os nossos iguais, os que cá vivem, os que cá estão, nascidos cá ou não, mas vividos cá. Portugueses de origem ou de adopção, mas portugueses, com a sua cultura, a sua justiça e a sua democracia. Nascidos ou naturalizados portugueses com as suas crenças e sobretudo as suas leis.

 

Assistimos, durante décadas, ao repúdio crescente do nacionalismo, do patriotismo e do Estado nação. Este último recuou em todas as frentes, em todos os aspectos. Na economia e na cultura, na sociedade e na política. Pior ainda, os casos mais evidentes de manutenção do nacionalismo foram, em geral, os de ditaduras. Da China à Rússia, da Coreia a Cuba, passando por vários Estados africanos e asiáticos que inventaram histórias nacionais para justificar poder autoritário. Parecia que a liberdade e a democracia se alimentavam da globalização e nela criavam raízes. Até que se percebeu que a desnacionalização e a globalização tinham uma capacidade autoritária devastadora, eram capazes de destruir países e nações, mais ainda democracias e liberdades.

 

Em quase todos os países europeus ou ocidentais, tem-se verificado um aumento permanente do número de imigrantes assim como do contributo destes para o desenvolvimento económico e o progresso das sociedades. Mas também para o surgimento de problemas de integração, de convívio e coexistência entre comunidades, de pressão sobre o Estado social, de deslocação e acolhimento entre países e de percepção recíproca entre comunidades.

 

Não é possível, em democracia, controlar absolutamente os movimentos da população. Só as ditaduras o permitem. Mas prever, ordenar e estabelecer condições não só é possível, como parece cada vez mais necessário. Não o fazer, entregar-se a uma passividade complacente, na esperança de melhor explorar o trabalho alheio, é destruidor da democracia.

 

Não há solução fácil para os problemas de imigração e de acolhimento. Mas a passividade é a pior atitude. Deixar correr, não tentar controlar, não ordenar, não definir horizontes, não estipular condições e não fazer um colossal esforço de integração são erros crassos cujos preços a Europa começa a pagar. Ter medo da imigração é ter medo da liberdade. Deixar correr as migrações é destruir a liberdade. Qualquer povo tem o direito de definir, por vias e métodos legítimos, os povos que quer receber. Assim como as condições legais, sociais e culturais de integração. A começar pela língua, evidentemente. E sempre, mas sempre, no respeito pela lei do país.


Público, 21.12.2024

sábado, 14 de dezembro de 2024

Grande Angular - Debate impossível ou quase

 Um dos maiores problemas do mundo ocidental e das democracias é o da imigração. Nas ditaduras, esse problema não existe: não há imigrantes, as fronteiras estão fechadas e estritamente controladas. Salvo excepções, nos países pobres também não: a emigração, não a imigração, é a sua sina.

 

Todos os dias, nos jornais e nas televisões, há uma qualquer questão de imigração. Barcos carregados de miseráveis, naufrágios às centenas, campos de concentração ou trânsito, bairros marginais, incidentes raciais, exploração de trabalhadores, crime de tráfico de mão-de-obra, economias paralelas… Não faltam os motivos. O desespero e a luta pela sobrevivência quase fazem heróis. As atitudes dos países de acolhimento oscilam entre a democracia, a complacência, a culpabilidade, o racismo e a exploração. Na verdade, são milhões de pessoas a bater às portas dos países mais ricos. Os gestos destes têm muitas vezes maus resultados, seja porque a generosidade provoca o abuso, seja porque a severidade cria a violência. Os Estados dos países de acolhimento têm-se revelado incapazes de prever e prevenir, muito menos ordenar. No mundo empresarial, há de tudo, desde gente séria e humana, até oportunistas que querem sobretudo retirar o melhor partido da precaridade, dos baixos salários e da exploração. Os Estados dos países de origem fazem o melhor que podem para aproveitar, explorar e vender, tentando ganhar em comissões e favores. Entre os imigrantes, como não podia deixar de ser, há de tudo, de trabalhadores a bandidos, de cidadãos a marginais, de talentosos a oportunistas. 

 

Pior que tudo, é o ambiente geral em que se vive, feito de acidez crescente, de acusações nervosas e de preconceitos fortíssimos. De um lado, tudo o que se ouve contra os imigrantes. São bandidos e não respeitam as leis do país de acolhimento. Por serem descendentes de escravos julgam-se hoje membros de raças superiores. Roubam as filhas, os empregos e as casas dos residentes nacionais. Mentem no fisco e na segurança social, escondem as identidades, procuram subsídios ilegítimos e montam um verdadeiro mercado negro. Batem nas mulheres e nos filhos, vendem as filhas e não enterram os seus antepassados cujos paradeiros se desconhecem. Mantém toda a espécie de comportamentos ilegais, incluindo a excisão das raparigas, o casamento contratado, a cara coberta das mulheres, a poligamia e a proibição de prosseguir estudos imposta às filhas. Maltratam os animais, comem gatos e cães, estragam os espaços públicos, não limpam as ruas e fazem barulho nas ruas durante a noite. Não respeitam as filas de espera nos serviços públicos, aterrorizam funcionários, médicos e enfermeiros.

 

Reciprocamente, o preconceito nada fica a dever. Os residentes nacionais, europeus ou caucasianos, exploram os imigrantes, roubam-lhes tempo de vida e forças e usam as suas mulheres que tratam com luxúria machista. Consideram os imigrantes seres inferiores, sobretudo se forem africanos ou asiáticos. Pensam que os imigrantes são incapazes de respeitar as leis e apenas se preocupam com o que podem ganhar e roubar. São racistas estruturais e sistémicos, são colonialistas crónicos e são supremacistas brancos. Por serem descendentes de descobridores e conquistadores, julgam-se membros de raças superiores. Exploram os imigrantes, não lhes pagando o que se deve, não tratam da segurança social, reservam-lhes as piores escolas, dificultam-lhes a vida nos centros de saúde e maltratam-nos nos transportes públicos. Prejudicam os imigrantes nos concursos públicos, na procura de emprego e na busca de casa. Olham para os imigrantes com sobranceria e sentimento de superioridade, só se mostrando humanos quando têm qualquer coisa a ganhar com isso. Reservam para os imigrantes os piores bairros, as piores ruas e os alojamentos mais degradados. Tudo fazem para manter os imigrantes fechados em guetos raciais ou étnicos, impondo-lhes a sua ordem através de autoridades brancas e de polícias nacionais. 

 

Abaixo de tudo, na escala de valores, estão os traidores. Para uns, os brancos que tomam o partido dos outros, dos negros, dos índios, dos indianos e dos árabes, que defendem os outros, que são verdadeiros travestis étnicos. Para outros, os imigrantes que se entendem com os nacionais, os que consideram que as leis se devem respeitar e que se deve acatar a cultura dos povos de acolhimento. Os trânsfugas e os traidores de ambos os lados são os piores, os mais racistas, os mais violentos, os mais amigos do conflito e os maiores adeptos do afrontamento.

 

Como é evidente, há, nas várias comunidades, muita gente decente, pessoas que não cultivam o preconceito, homens e mulheres que gostariam de poder entender-se e dar e receber contributos para uma sociedade melhor. Com certeza. Mas não são essas as vozes dominantes, as que mais se ouvem, as que mais se imprimem. Há muita gente que espera por um equilíbrio, que julga que é possível e enriquecedor a coexistência sob a mesma lei e na mesma ordem democrática. Mas o que mais progride é a procura do conflito e a busca da ruptura. 

 

Lentamente, o mundo ocidental está a ficar subjugado por este conflito, por este problema. O mais simples seria ignorar, como muitos fazem. Considerar que os afrontamentos são menores e temporários. Que tudo se resolverá com emprego e ordem pública. Que as sociedades mudam devagar e ordeiramente. Que a mistura de povos e de culturas se fará em paz e sossego, com prosperidade e progresso. Que não há verdadeiramente um problema. Que, com boa vontade, tudo acabará bem.

 

Sabemos, com certeza e receio, que não será assim. Os desequilíbrios demográficos, sociais e económicos são já tais que a evolução social e política tenderá a escapar às regras e às previsões. Os conflitos potenciais são muito sérios e só evitáveis com enormes doses de boa vontade, de racionalidade, de poder estável e de autoridade legítima. Estamos a falar de mudança da sociedade em profundidade, de mudança de costumes e de cultura de tal dimensão que ninguém pode, em seu juízo, considerar coisa fácil. Ainda por cima, trata-se de mudança que pode implicar perda. Para ambos, os que recebem e os que chegam. Noutras palavras, mudança necessária que, a ser feita sem razão, implica destruição de muito que apreciamos e desejamos, a começar pela cultura e pela liberdade. E pela humanidade.

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Público, 14.12.2024

sábado, 7 de dezembro de 2024

Grande Angular - Mário Soares, europeu

 antigo regime queria, antes de 1974, uma qualquer forma de associação, distante, leve e possivelmente superficial, com a Comunidade Europeia. Estava satisfeito com a EFTA. Além disso, a Comunidade implicava condições políticas democráticas que as autoridades de então não queriam aceitar. Assim é que se preparava um acordo diplomático. Depois de 25 de Abril, o debate foi aberto e novas hipóteses estavam em causa. Os Liberais do marcelismo e os principais do PPD queriam um novo contrato de associação. Talvez um pouco mais pormenorizado ou mais vinculativo do que durante o anterior regime, mas só associação certamente. Garantiam que Portugal não estava preparado, que a economia ainda não estava à altura da concorrência europeia, que o proteccionismo era necessário e que as empresas portuguesas tinham de ser defendidas. A EFTA era uma boa alternativa.

 

As esquerdas do PCP queriam tudo menos a Comunidade Europeia, que consideravam capitalista e contrária ao socialismo que se preparava vigorosamente em Portugal. Os comunistas olhavam mais para Leste, União Soviética e seus satélites, países com os quais se deveriam desenvolver relações o mais rapidamente possível. Preparavam-se afanosamente acordos políticos e tratados comerciais, incluindo cooperação em matéria de energia nuclear, a fim de explorar e consolidar este novo horizonte estratégico. Era claro que o objectivo não seria o de integrar o Pacto de Varsóvia. E os soviéticos não estavam muito interessados em arranjar uma nova Cuba na Europa. Mas ficar longe da Comunidade Europeia e da NATO era a prioridade.

 

Os restantes grupos esquerdistas, sobretudo o MES e a UDP, assim como as facções radicais do MFA, estavam mais virados para outros continentes, para países africanos, árabes e latino-americanos. Assim como para países europeus vagamente dissidentes do universo soviético. A Cuba de Fidel de Castro, a Líbia de Kadhafi, o Iraque de al-Bakr ou Sadam Hussein, a Roménia de Ceausescu e a Jugoslávia de Tito eram alternativas e mereciam atenção. Aliás, quase todos estes dirigentes foram, naquela altura, convidados a visitar Portugal e seriam anfitriões de importantes delegações portuguesas. A independência nacional e a autonomia perante o capitalismo e as grandes potências eram os argumentos essenciais. Mais ainda: uma terceira via entre o capitalismo ocidental e o comunismo soviético surgia como hipótese atraente.

 

No PS, a situação era mais difícil. O PS de direita queria uma associação solta e distante com a Europa. Um contrato de associação parecia satisfatório, pelo menos para os primeiros tempos. Europeus sim, mas devagar. Havia medo por causa das empresas portuguesas que não estavam preparadas para a concorrência. O PS de esquerda preferia relações com o Terceiro Mundo, países africanos e árabes. Ao contrário dos esquerdistas, os seus porta-vozes queriam a democracia, seguramente, mas receavam a ingerência capitalista. Pensavam ainda que, com os produtores de petróleo e de matérias-primas do Terceiro mundo, era possível desenvolver vias alternativas. O PS do centro, se é que assim se pode chamar, era favorável à adesão Comunidade Europeia sem reservas. E quanto mais cedo melhor.

 

Não houve sondagens, mas é pouco provável que a maioria do PS fosse favorável à adesão plena à Comunidade. As reticências da direita e da esquerda militavam a favor de um compasso de espera, de um adiamento para melhor esclarecimento. Mas os que eram favoráveis à plena adesão tiveram em Mário Soares imediatamente, sem hesitações, a vontade de adesão, sem espera, sem períodos de transição e sem associações especiais que diminuíssem o gesto. As questões especiais dos preços da agricultura, da protecção das empresas portuguesas e do respeito pelas regras do “acquis communautaire” eram secundárias. Mário Soares pensava que a Europa ou a Comunidade Europeia era um atalho para a liberdade, uma garantia para a democracia. A adesão à Europa não era um projecto económico e financeiro, era um desígnio político. Com a Europa, vinham as liberdades e os direitos dos cidadãos, o respeito pela dignidade humana, as garantias dos parceiros e o apoio a dar, em caso de necessidade, a uma democracia recente e inexperiente. Sem falar na cultura ocidental e na história europeia.

 

Naquela altura, a esquerda democrática europeia tinha voz e peso. Momentos houve em que a maioria dos governos era composta de socialistas, social-democratas e aparentados. Nomes de homens de Estado de excepcional envergadura marcavam as políticas europeias. Willy Brandt e Helmut Schmidt, Olaf Palme, Harold Wilson e James Callaghan, François Mitterrand, Jacques Delors e Michel Roccard eram desse tempo, quase todos vieram a Portugal, todos apoiavam Mário Soares e a democracia portuguesa e com todos Mário Soares fez amizade pessoal.

 

Em Fevereiro de 1977, o Primeiro-ministro Mário Soares fez viagens a todos os países da Comunidade, assim como à sede em Bruxelas e ao Vaticano, a fim de apresentar a candidatura portuguesa a uma adesão plena. Antecipavam-se dificuldades, sobretudo por causa da junção das candidaturas portuguesa e espanhola. Os europeus receavam a dimensão e a produtividade da agricultura de Espanha. Além disso, pensava-se que as boas palavras dos políticos europeus relativamente à adesão de Portugal escondiam reservas e contrariedades dos técnicos e dos economistas. A primeira viagem do périplo meticulosamente organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros começava por Bruxelas. No momento da partida, no aeroporto, estavam presentes todo o governo e metade das autoridades. A sala dos VIPS para chegadas e partidas era uma colossal festa. Mesmo em cima da hora de partida, revelando uma desconhecida ansiedade, Soares queria saber tudo dos preparativos. Se todos os dirigentes Europeus estavam devidamente informados. Se os políticos europeus, especialmente os social-democratas, estavam sensibilizados. Discretamente, virando-se para dois ou três ministros mais próximos, Soares perguntou quase sussurrando: “E se eles disserem que não?”. Medeiros Ferreira, o Ministro dos Negócios Estrangeiros que tinha tudo preparado, garantiu: “Eles não podem dizer que não, senhor Primeiro-Ministro. Está tudo preparado”. Dois segundos depois, Soares murmura: “Que Deus o ouça”! E ouviu, pelos vistos!

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Público, 7.12.2024

sábado, 30 de novembro de 2024

Grande Angular - Perigo e fantasia: Uma encenação

Segurança está na ordem do dia. Dos cidadãos e das famílias. Dos homens e das mulheres. Dos adultos e dos jovens. Dos velhos e das crianças. Das instituições e das empresas. Dos nacionais e dos estrangeiros. No mundo inteiro, a insegurança cresce. É o que provam os factos, as observações e os sentimentos. Há países (Brasil, Estados Unidos, México, Colômbia, Nigéria, Quénia, Congo, África do Sul e outros) com inacreditável número diário de crimes, atentados, agressões, roubos e destruições. Portugal estaria entre os países do grupo com menos crimes e atentados. Ainda bem. Mas toda a gente sabe que o sentimento de insegurança, aqui e lá fora, cresce todos os dias. É o que a sociedade contemporânea produz.

 

Segurança consiste na certeza ou na esperança de que a integridade física dos cidadãos, os seus direitos, a sua liberdade, os seus familiares, os seus bens e a sua tranquilidade são respeitados ou protegidos.

 

É a confiança em que, se cumprir os meus deveres, ninguém, pessoa ou instituição, ofende os meus direitos e que, se o fizer, haverá repreensão.

 

Segurança é a esperança de que a justiça apure, julgue e castigue quem atenta contra a liberdade e os direitos dos cidadãos.

 

É a certeza de que nunca serei incomodado por exprimir a minha opinião, nunca me será indevidamente retirado o direito à palavra e nunca serei objecto de represálias por causa das minhas opiniões.

 

É a expectativa de poder rezar aos meus deuses, ou a nenhum, sem ser incomodado por quem reza a outros.

 

Segurança consiste no sentimento de que alguém acorre quando sou ameaçado na rua, quando entro em casa e encontro ocupantes indevidos, de que alguém ajuda quando o marido, o pai ou o filho agridem e espancam as mulheres.

 

É a sensação de que alguém responde quando chamo o 112 ou o INEM, quando estou em sofrimento ou com dores de parto, quando telefono aos bombeiros, quando sinto fumo e fogo em minha casa ou na da vizinhança.

 

É a possibilidade de passear em qualquer parte da cidade, sem recear violência e com a certeza de que não há bairros interditos, áreas de acesso reservado e ruas perigosas. 

 

É a esperança de que alguém, polícia ou autoridade, responde prontamente aos meus apelos quando alguém ameaça os meus filhos, viola a minha filha, bate nos meus pais e agride a minha mulher. Ou alguém que faça tudo isso a mim próprio.

 

É a esperança em que bombeiros ou policias, voluntários ou assistentes, ajudam e acorrem quando a casa pega fogo, quando se sente inundação ou tremor de terra, quando alguém pretende roubar os meus bens e assaltar a minha casa.

 

É a certeza de que posso sair à noite, passear nas ruas da cidade, ver os meus filhos frequentar locais públicos sem serem agredidos e roubados e de que, se acontecer, os culpados são perseguidos, detidos e castigados.

 

É estar convencido de que nas escolas não há bandidos, traficantes, assaltantes e outros meliantes a agredir, enganar ou magoar os meus filhos.

 

É a convicção de que, no meu trabalho, nos comboios, nos autocarros, no metropolitano, nos serviços públicos, eu e os meus não somos assediados, incomodados, agredidos, roubados e espancados, e de que, se o formos, podemos pedir socorro e ajuda, e de que alguém virá, e de que, se não for o caso e ninguém chegar a tempo, alguém, serviço ou instituição, investigará, descobrirá, deterá e castigará.

 

É a impressão de que os mais vulneráveis na sociedade, velhos, crianças, doentes, pobres e sem abrigo são protegidos, de que alguém está atento à sua situação e aos seus pedidos de socorro.

 

É ter a ideia de que as ruas e os espaços públicos não estão cada vez mais perigosos, com mais imprevisibilidade e com menos liberdade e sem paz.

 

Insegurança, em Portugal, hoje, é este sentimento crescente, fundamentado ou não, comprovado ou não, de que a vida, a tranquilidade, a liberdade e os direitos individuais estão a ser ameaçados, de que o espaço público é perigoso e de que temos cada vez mais de nos abrigar em espaço privado e em casa.

 

Insegurança consiste em viver anos à espera de julgamento, de investigação, de detenção e de castigo de quem atentou contra os meus direitos, contra a minha integridade física, contra os meus bens e contra a minha liberdade.

 

É a crença fundada em instituições que servem para prever e prevenir, para estudar as condições de vida e de segurança, para procurar culpados e malfeitores, para julgar e castigar bandidos.

 

Era disso tudo e muito mais que o Governo se deveria ocupar em matéria de segurança. Com serenidade, com sentido do dever e com a certeza de que estava a tocar em zonas complexas de sentimentos e da razão dos cidadãos. Com uma longa e recatada preparação, com uma revisão profunda da situação actual e com um exame sério e honesto das fragilidades actuais. Era sobre isso que o Governo deveria fazer leis, organizar instituições, avaliar organismos e ouvir as populações. Em vez disso, o Governo organizou uma operação quase imoral de propaganda e dissimulação.

 

Por estranhas razões políticas e publicitárias, por motivos partidários ou fúteis, por vaidade ou oportunismo, o Primeiro-Ministro e um “bouquet” de autoridades decidiram apresentar-se ao país, em comunicação solene, para falar de segurança de nós todos. O anúncio foi feito com circunspecção durante a tarde desse dia. “Às 20.00 horas, o Primeiro Ministro fará uma alocução ao país”. Vinte horas. Horário nobre, diz-se na gíria. Cinco ou seis estações prepararam as suas equipes, câmaras, comentadores e jornalistas. Sabia-se apenas que estava em causa a segurança dos portugueses. A cena seria precedida de reuniões do Primeiro ministro com as ministras da Justiça e da Administração Interna, além dos chefes das polícias. Às 20.00, ao mesmo tempo, em directo, como se fosse um país em guerra, sob uma ditadura ou em pleno PREC, oito canais de televisão transmitem a alocução.

 

Esperava-se o pior. Coisa pesada. Medidas sérias. Revelações importantes. Ou diagnóstico dramático. Enfim, qualquer coisa que justificasse a expectativa e a solenidade.

 

Não aconteceu nada. E se aconteceu, não se percebeu. E se se percebeu foi inútil e risível. Submeter a segurança dos cidadãos, as suas fantasias, os seus fantasmas e os seus pesadelos, às necessidades publicitárias do governo ou dos partidos é gesto condenável. Fazer demagogia com a incerteza e a insegurança dos cidadãos é gesto política e moralmente reprovável.

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Público, 29.11.2024

sábado, 23 de novembro de 2024

Grande Angular - Novembro!

 Em 25 de Novembro de 1975, deu-se um confronto político e militar benfazejo. De um lado, tudo o que, sendo de esquerda, não era democrático, era revolucionário, desejava liquidar a iniciativa privada e o capitalismo, impedir a livre elaboração da Constituição, evitar as eleições legislativas previstas para uns meses depois, afastar a ideia de um Parlamento eleito e plural, erguer obstáculos à criação de um regime democrático parlamentar parecido com o que vigorava em praticamente todos os países ocidentais e europeus. Pretendiam transformar em órgãos de soberania os poderes de organismos não eleitos, como as comissões de trabalhadores e de moradores, os sindicatos e outros “órgãos de poder popular”, segundo a terminologia da época. Neste lado, brilhavam o Partido Comunista Português e o MDP, sua excrescência. E também outros epifenómenos revolucionários como a UDP, o MES, a FEC-ML, o PUP e a LCI. E sobretudo oficiais e unidades militares identificados com as facções revolucionárias do MFA. Todos estes activistas menores detinham a iniciativa e a ribalta, mas quem realmente tinha peso era o PCP.

 

Do outro lado, estavam oficiais e unidades militares comprometidos com o 25 de Abril e entregues definitivamente à ideia democrática, pela qual se tinham elevado um ano antes. Uma grande parte da instituição militar estava interessada no programa de democratização e de Estado de direito. É bem provável que militares afectos ao antigo regime se encontrassem neste campo político e institucional, tal como outros estavam na área revolucionária. Mas a direcção e o protagonismo deste universo político e militar pertenciam sem qualquer dúvida aos militares empenhados no 25 de Abril e que, cada vez mais, se identificavam com a Forças Armadas nacionais e se afastavam do activismo onírico revolucionário.

 

Ainda deste último lado, na sociedade civil, encontrava-se tudo o que era democrático, a começar pelo Partido Socialista, que muito cedo percebeu que seria a primeira vítima da revolução. Mário Soares compreendeu, desde 1974, que o futuro da democracia em Portugal, assim como dos socialistas, dependia da capacidade de oposição aos projectos comunistas e aos delírios revolucionários. A seguir ao PS, o PPD (futuro PSD), animava vastas áreas de população interessada em resistir ao comunismo e à revolução, tanto quanto em contribuir para uma democracia parlamentar. Outros pequenos partidos e movimentos, várias instituições (a começar pela Igreja Católica) e gente de todas as classes sociais e profissionais, lutavam pela democracia e contra a revolução. Evidentemente que, no meio da multidão, não faltavam, em números insignificantes, gente do antigo regime e fascistas de velha criação ou nova semente. Sentido de oportunidade? Talvez. Mas essas pessoas também tinham direito à vida, que era o que a democracia lhes concedia, como a toda a gente. Como até aos revolucionários antidemocráticos que a queriam derrubar.

 

Em poucas palavras: em Novembro de 1975, estavam, frente a frente, a revolução e a democracia. Mais precisamente, 20% dos portugueses a favor da revolução contra 80% dos portugueses favoráveis à democracia. Por entre golpes e contragolpes, ameaças e armadilhas, os militares da democracia derrotaram os da revolução. E os democratas derrotaram os revolucionários. Sem apelo nem agravo. E, contrariamente à tradição das revoluções, os vencedores não mataram, não proibiram, não liquidaram os derrotados, deixando-lhes, fazendo disso questão, um lugar no Estado democrático. É disto que se fala, quando se fala do 25 de Novembro. É dos militares do Grupo do Nove, de Melo Antunes, Vasco Lourenço e seus amigos. É dos militares da instituição militar dedicados à democracia, com Ramalho Eanes à cabeça. É dos militares operacionais, como Jaime Neves, que correram riscos pela democracia.

 

Aquilo a que temos assistido, há vários anos, é esta espécie de entremês medíocre ou de futilidade palerma que é a dança de argumentos e disparates sobre o 25 de Novembro. Mais ou menos importante do que o 25 de Abril? Foi o regresso dos fascistas com a conivência dos socialistas? Foi uma armadilha da direita em que caiu o PS? E como se vai comemorar? Igual a Abril? Ou em vez de Abril? Ou como Abril com menos minutos, menos hino e menos bandeira? E comemora-se na Assembleia, no hemiciclo ou nas enxovias? E se fosse só numa caserna para mostrar que aquilo foi coisa de militares e que nada teve de socialismo nem de democrático?

 

O que os socialistas fizeram, mais uma vez, mas agora parece que definitivamente, foi entregar o 25 de Novembro à direita. Pagar mais um preço à “geringonça de esquerda”. Colaborar com a ideia de que o 25 de Novembro foi um movimento militar de direita destinado a correr com as esquerdas e com os partidos do 25 de Abril. Aceitar a tese de que os socialistas tiveram esse desvio de direita, mas que hoje estão muito distantes dessas fantasias e que a sua política é à esquerda, com os partidos de esquerda, contra todos os partidos da direita. Confirmar o boato que diz que Mário Soares teve devaneios com a direita, um deles a 25 de Novembro, mas que isso lhe passou depois. Afirmar que o 25 de Novembro não pertence ao património da democracia, muito menos à história do PS. Sublinhar que primeiro vem o socialismo e o partido, só depois vem a democracia e Portugal.

 

Felizmente que há ainda muitos socialistas que pensam que Novembro salvou e garantiu a democracia. Que sabem que o PS só tinha dois anos em Abril e que, mesmo com as notáveis figuras de Mário Soares e Salgado Zenha, estava longe de mostrar a grandeza real, longe de ser o preferido dos portugueses. Que sabem que foi a luta contra o comunismo e contra a ditadura de esquerdas que fez o PS e que engradeceu Mário Soares. Que sabem que os socialistas estavam à frente de todos, nas unidades e nos regimentos, em Rio Maior, no Porto e em Gaia, em Estremoz e Vendas Novas, na Amadora e na Ajuda, a rechaçar os revolucionários e os comunistas e a defender a democracia. Que sabem que foi com Novembro que os socialistas infligiram aos comunistas a sua maior derrota democrática e que talvez tenha sido o único caso em que os comunistas foram retirados, pacificamente, do poder que dominavam. Felizmente que há quem honre a história, quem respeite os seus, quem cultive os maiores, quem goste de seguir o exemplo dos seus dirigentes históricos, quem tenha a certeza de que a liberdade está acima dos cálculos mesquinhos de oportunidade. 

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Público, 22.11.2024

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Grande Angular - A saúde é o teste da democracia portuguesa

 Por António Barreto

Os recentes incidentes com o INEM deixaram o país perplexo. É obsceno que seja possível acontecer o que se diz que aconteceu. É inaceitável que, por culpa do ministério, dos serviços, das ambulâncias, dos técnicos de emergência ou das greves, tenham morrido, numa semana, onze pessoas por falta de assistência. Será do serviço? Ou da greve? Será dos técnicos? Ou do ministério? Dos doentes não é certamente. Vai ser analisada a culpa. Espera-se que seja um pouco mais célere do que em tantos outros casos. Verdade é que, antes das conclusões, a Provedora de Justiça já veio a público, e muito bem, declarar que o Estado deve assumir as suas responsabilidades, até por via de indemnização.

 

Há anos que nos habituámos, justamente, a considerar a saúde como o termómetro da democracia e do regime. Se excluirmos o mais óbvio, como sejam o voto e as liberdades, a saúde perfila-se. Se não olharmos para a mudança “sistémica” que mais marca a evolução social, a ascensão das mulheres a posições quase paritárias, é novamente a saúde que aparece como o campeão dos êxitos. Há concorrentes, como a alfabetização, as estradas e a segurança social universal, mas todos estes são discutíveis. Olhando para a frieza dos números, a saúde exibe melhores resultados.

 

Pergunte-se aos cidadãos e tente-se apreciar a experiência das últimas décadas: o mais provável é que a resposta seja “saúde”.  Há muito que se lhe diga. As queixas são mais do que muitas. Não há português que não se queixe dos médicos (dos outros, raramente dos seus…), dos centros de saúde, dos hospitais (públicos e privados) e dos enfermeiros. Parece não haver pessoa que não tenha a certeza de que os erros e a negligência médica são constantes, sobretudo com os vizinhos, parentes e amigos. Mas, colocados perante a necessidade de escolher, o mais provável é a saúde!

 

A verdade é que há motivos para isso. Da experiência de cada um (que tenha conhecido os cuidados de saúde nos anos 60 a 80), mas também dos testemunhos, dos jornais e das estatísticas, resulta que os progressos foram colossais. Tudo contribuiu, desde a água potável e a literacia, aos modos de vida e à urbanização. Mas foram os cuidados, os equipamentos, os médicos e os enfermeiros os principais responsáveis. E foi o alargamento desses cuidados e a quase gratuitidade que desempenharam papel fundamental. Em poucas palavras, o Serviço Nacional de Saúde foi o responsável. 

 

Se olharmos para o período que vai de 1974 até hoje, os progressos são incomensuráveis! Qualquer série estatística revela os melhoramentos com clareza absoluta. É verdade que, aqui e ali, há oscilações e até um ou outro retrocesso, como nos anos de crise económica e financeira. Mas, globalmente, na média duração, a evolução é notabilíssima. A esperança de vida aumentou muito. A mortalidade infantil deixou de ser a pior da Europa para passar a ser uma das melhores. A morte por certas doenças do subdesenvolvimento diminuiu.

 

O pessoal dos serviços de saúde aumentou inacreditavelmente! O número de médicos por habitante é um dos três mais elevados da Europa! E obviamente o número de doentes e de habitantes por médico é dos mais baixos. Evolução semelhante é a do número de dentistas, de enfermeiros e de técnicos auxiliares. Foi constante, com apenas alguns recuos, o crescimento da despesa por habitante. Cresceram sempre os números de urgências e de consultas em unidades do SNS.

 

É sabido que um grande número de médicos e enfermeiros formados em Portugal se desloca rapidamente para o estrangeiro onde vai auferir salários muito superiores ao que poderiam esperar por cá. Além do défice de pessoal, este facto constitui um enorme desperdício de investimento e recursos. Mas a verdade é que médicos e enfermeiros fazem muito bem em ir fazer a sua vida onde são reconhecidos. Mesmo assim, os médicos e os enfermeiros em serviço em Portugal são em número muito considerável e superior ao que se conhece em quase toda a Europa e Américas.

 

Com esta evolução, seria de esperar um excepcional grau de eficácia e de qualidade na prestação de serviços. Não é, infelizmente, verdade. Ou antes: o grau de satisfação é muito reduzido. As queixas e as reclamações são permanentes. A despesa é proporcionalmente enorme. O pior é a realidade dos factos concretos e quotidianos. Os tempos de espera por consulta, exame ou cirurgia são absurdos. E de tal maneira recorrentes que já poucos se escandalizam. Semanas e meses, para não dizer mais de um ano, à espera de vez para uma consulta, uma intervenção simples ou uma cirurgia mais complicada, são chocantes. A existência de centenas de milhares de pessoas sem médico de família é aflitiva. Ainda por cima há actos médicos que dependem do médico de família. Ora, são muitas as pessoas que o solicitam e não são atendidas.

 

As instalações dos SNS (hospitais e Centros de Saúde) são medianas e medíocres, o que quer dizer que, em muitos casos, são más e péssimas. É verdade que há unidades de saúde organizadas com sentido de humanidade, eficientes, bem geridas e prontas na resposta aos utentes. Mas muitas, talvez a maioria, são desconfortáveis, frias, sujas, sem respostas ao telefone, sem atendimemnto cuidado de pessoas em sofrimento e sem acompanhamento dos doentes. É frequente ter de fazer dezenas ou centenas de quilómetros para uma consulta. As maternidades fecham de vez em quando. Nascer numa ambulância parece agora ser moda. 

 

E o pior de tudo é o sentimento claro de segregação e desigualdade. Quem tem poder e dinheiro, quem tem influência e conhecimentos, quem tem partido ou empresa, quem vive na boa cidade e no bom bairro, quem tem cunha ou cunhado, tem serviço de saúde, atendimento e tratamento. Quem não tem, que espere e que se cuide! Quem quiser realmente saber da saúde em Portugal tem de ver ou ouvir quem lá está, quem lá vai e quem quer lá ir. Quem é obrigado a horas extraordinárias fora de qualquer sentido. Quem tem vencimentos ridículos. Quem espera meses por uma consulta ou uma cirurgia “urgente”. Quem é pobre e trabalha e não pode fazer horas de fila e espera, ou não pode faltar ao emprego para levar os pais ou os filhos aos centros e aos hospitais.

 

Que o SNS precisa de refundação, não parece haver dúvidas. Que os modos de gestão e de organização devem ser revistos e reformados, também parece certo e seguro. Que quem quiser consolidar ou salvar a democracia deve tratar da saúde e do SNS, também parece indiscutível.

Público, 16.11.2024

sábado, 9 de novembro de 2024

Grande Angular- A democracia também é de direita

É um dos piores erros de alguns democratas, de muitos europeus e de quase toda a esquerda: a ideia de que a democracia é a virtude e a bondade, a correcção e a humanidade. Noutras palavras, a democracia é de esquerda. Esta ideia é acompanhada do seu reverso: a direita é antidemocrata, autoritária, racista, xenófoba, boçal e violenta. Zelar pelos outros, ser solidário e respeitar os valores humanos é de esquerda e democrático. Explorar os outros, dominar e agredir é de direita e, por conseguinte, não democrático ou antidemocrático. Esta crença é muito mais generalizada do que parece. As reacções à vitória de Trump, assim como, por exemplo, às de Bolsonaro, explicam-se em grande parte por esta convicção.

 

As frases mais ouvidas nestes tempos são inquietantes. Vêm aí catástrofes. Começaram as trevas. O fascismo outra vez. A democracia entre parêntesis. Tudo o que Trump e os Republicanos americanos se preparam para fazer é violento, desumano e fascista! Numa palavra, de direita. Noutra palavra: antidemocrático. Estes exemplos da ladainha democrática, europeia e de esquerdas são poucos comparados com os que lemos e ouvimos de manhã à noite nos jornais e nas televisões.

 

É assim que a esquerda se engana. Que a esquerda perde. Que a esquerda não vê os seus próprios erros. Como é assim que os europeus e os democratas perdem. A começar pelo facto de que esses erros não são falta de inteligência, de cultura e de conhecimentos históricos. Não! Esses erros têm origem nas suas próprias faltas. Incapazes de perceber os maus resultados dos caminhos que percorrem, europeus, democratas e esquerdas sofrem dessa miopia diante da América e de Trump. Como sempre, reagem acossados pelo medo. “Vem aí a extrema-direita, é preciso evitar os fascistas”. Com ainda esta ideia sinistra: se é da direita, é antidemocrático.

 

É infantil não perceber que a direita também pode ser democrática. Que a democracia também pode ser de direita. Que a democracia também pode ser cúmplice da exploração, do racismo, da xenofobia e do machismo. Tal como, aliás, a esquerda pode ser racista, xenófoba, machista e exploradora. Ambas podem ser imperialistas e belicistas. O que distingue as democracias (mais ou menos social, mais ou menos cristã, mais ou menos liberal…) são os valores políticos e sociais, são as políticas, não as regras de base democráticas: eleições livres e regulares, uma pessoa um voto, liberdade de expressão e de associação, independência da justiça e a regra de ouro da democracia “quem vence governa e respeita quem perde”. 

 

Na Europa e na América, é evidente a decadência da democracia, dos costumes políticos e da honradez nos serviços públicos. É constante a utilização das piores receitas para a actividade política: a propaganda, a mentira, a covardia, a ganância e a corrupção. Toda a gente parece de acordo com a ideia de que “a política se está a afastar perigosamente da população”. Daí a consequência: em vez de mudar a política, o que é preciso, dizem, é “aproximar a política dos cidadãos”, noutras palavras, mentir mais, fazer mais propaganda, esconder as verdades, pagar tudo e todos, corromper e prevaricar, comprar votos e consciências. Algumas esquerdas radicais e sobretudo as direitas perceberam isso. Tomam balanço nessas observações. E vociferam com toda a legitimidade aparente: limpeza, vontade do povo, pureza de intenções e grandeza da pátria. E acrescentam a luta contra os estrangeiros, todos os estrangeiros, os capitalistas internacionais, os grandes rivais do comércio e da indústria e os trabalhadores imigrantes. A este rosário de justas lutas, some-se a nação, a religião e a rejeição dos combates de cariz anti-fracturante que as democracias têm promovido: a escolha de género, a eutanásia, o aborto, o laicismo e a miscigenação. O que resulta destas promessas nem Deus sabe. Mas servem brilhantemente como alavancas eleitorais e políticas. Como se vê.

 

Em poucas palavras. Os erros das esquerdas, dos europeus e das democracias são fontes do êxito destas direitas. Trump e os seus amigos pertencem à democracia e usam a democracia, mesmo se pretendem capturá-la e provavelmente diminui-la. Mas são consequência e sobram da democracia e das suas faltas. Pode lamentar-se, mas Trump é também a democracia. Como Bolsonaro e Milei. Sabemos que Trump é um risco e uma ameaça para a democracia, tal como, em seu tempo e em seu sítio, a esquerda. Mas não se admite que esta espécie de severidade não sirva também quando se trata de ameaças contra a democracia vindas das esquerdas, de regimes e de governos antidemocráticos, antieuropeus e antiamericanos, como sejam os Russos, os Iranianos, os Norte-coreanos e os Venezuelanos de Chávez e Maduro, assim como do Hamas e do Hezbollah.

 

É possível usar a democracia contra a democracia. É provavelmente o que Trump fará ou tentará fazer. É o que fazem ou fizeram Bolsonaro, Berlusconi, Orban, Maduro e Netanyahu. É o que fazem os “ditadores eleitos” de África, da Ásia e da América Latina, em países com instituições fracas.

 

Identificar a democracia com a esquerda e estas com a bondade e a humanidade é o mais miserável erro de pensamento político que se pode imaginar. Impede de pensar e de compreender. Dispensa a argumentação. Quem assim se comporta ajuda as autocracias de todo o mundo. Estimula as direitas. 

 

Trump é narcisista e vaidoso. Boçal e ordinário. Autoritário a caprichoso. Ameaça a democracia. Promete comportamentos odiosos com alguns imigrantes, certos estrangeiros, parte das mulheres, uns tantos intelectuais e bom número de artistas. Tudo isso é certo e provável. Mas não deixa de ser eleito pela democracia, com a ajuda das forças democráticas, apoiado em instituições democráticas e ao abrigo de uma Constituição democrática. Trump não foi eleito por fascistas, robots, extraterrestres e fantasmas. Foi eleito por milhões de americanos de todas as cores e feitios, de todos os sexos, de todas as profissões, de todas as regiões e de todos os credos. Era bom que os europeus e as esquerdas percebessem que foi eleito pelo povo americano.

 

É provável que as esquerdas democráticas estejam a viver um dos seus mais negros períodos desde há mais de meio século. É possível que a democracia esteja a viver uma das piores ameaças desde há décadas. Verdade. Mas se os democratas e as esquerdas não percebem as suas culpas e as suas responsabilidades no processo, então é melhor prepararmo-nos para períodos ainda piores.

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Público, 9.11.2024 

sábado, 2 de novembro de 2024

Grande Angular - Cenas menores e causas maiores

 O orçamento está aprovado. Mais ou menos. O essencial está feito. Nem o governo, nem o PS, podem voltar atrás, esquecer o dito e fazer exigências. Ambos garantiram aos eleitores que estavam de boa fé. Nenhum pode agora inventar questões. Já se sabe que vão tentar, na especialidade, mostrar ao bom povo que foram eles que deram, aumentaram, duplicaram, abateram e subsidiaram. Irão mesmo até ao ponto de tornar impossíveis certas disposições na especialidade e introduzir outras. Mas o essencial está feito, o resto é coreografia. As responsabilidades de cada um são claras. Quem voltar atrás com a palavra dada será vítima de castigo do eleitorado.

 

Não há que contrariar. O que os dois fizeram, governo e primeiro partido da oposição, merece aplauso e nota alta. Podendo perder alguma coisa, podem também ganhar. Parece certo que os eleitores, em proporções consideráveis, seguramente maioritárias, ficariam zangados se não houvesse resolução deste problema orçamental e regozijar-se-iam com uma aprovação. Mesmo se sem entusiasmo, mesmo se sem causas ou horizontes, mesmo se sem plano e estratégia, os cidadãos preferem assim. Não se trata só de uma percepção superficial. É vantajoso que assim seja. Quem fica fora desta aprovação conta pouco. Os partidos de esquerda de causa e ideologia, PCP, Bloco, Livre e PAN contam tão pouco para a maioria do eleitorado, pouco mais de 10%, que é mais ou menos indiferente que aprovem ou não. No centro direita, a IL, com menos de 5%, não pesa. São todos partidos importantes, mas não constituem massa crítica de relevo. Já com o partido Chega, as coisas são diferentes. Os seus 18% e os mais de 1 milhão e 100 mil eleitores são argumentos sérios. É destituído de ideias e programas, mas o seu vozeirão desordenado e demagógico tem eco junto de muita gente. Na verdade, o partido não ajuda nem ensina, não forma nem contribui, apenas traduz a desordem das ideias e dos pensamentos. O problema é que este partido quer entrar para perturbar e abrir crise, ou ficar fora para abrir crise e perturbar.

 

Assim sendo, convocar novas eleições seria acto nefasto para a democracia. Seria gesto de enfraquecimento adicional de um país em dificuldades numa Europa perturbada e num mundo a viver com ansiedade. Ninguém, a não ser as minorias de causas ideológicas, perceberia que, por razões menores, fictícias ou superficiais, se dissolvesse o Parlamento, se convocassem eleições e se tentasse, provavelmente sem resultados, novas soluções. Os dois partidos que resolveram a questão, mesmo se a contragosto e com mau jeito, fizeram bem e merecem aplauso.

 

Convém recuar um pouco para ter melhor perspectiva. O orçamento é uma folha de mercearia. Ou lista de compras de supermercado. Não é um plano, uma estratégia, um programa. Além do mais, este orçamento é uma folha de benesses e benefícios. Há descontos, isenções, aumentos, reduções, alívios, subvenções e privilégios para muita gente. O que essencialmente distingue os dois principais partidos é o elenco de beneficiários, mais para uns do que para outros, mais para outros do que para uns. Mesmo quando se toca na estrutura fiscal, nas taxas, nos escalões, nas isenções e nos benefícios, a diferença entre os dois partidos, que eles próprios sobrevalorizam, é de menor importância e de redúzios efeitos. Na verdade, a luta de classes, a alternativa política e a oposição programática não residem nem se resolvem com o orçamento do Estado.

 

É pena que assim seja, mas é assim. O rol de mercearia e a lista de compras destinam-se a aguentar o barco, a tratar da tesouraria, a pagar dividas e a respeitar compromissos, não servem para reformar, investir, relançar, programar, orientar e planear. Sabe-se que estas últimas são necessidades prementes, mas não é aqui, no orçamento, que se resolvem. Algo parecido com um plano a três, cinco ou dez anos seria mais adequado às urgências nacionais. Um programa dito de “grandes opções”ou de “estratégia de desenvolvimento” seria bem mais necessário, mais importante, eventualmente mais fracturante politicamente, mas muito mais urgente, até porque só produziria efeitos a dez ou vinte anos. Certamente que um plano destes exigiria muito mais trabalho de convergência partidária, no caso de não haver alianças ou maiorias. Mas esse é o trabalho que se pede aos partidos, da situação ou da oposição. É sinistra a ideia de que o eleitorado quer e exige oposição e berraria. A primeira necessidade é a da convergência e do entendimento. Só se tal se verificar impossível é que as almas, os corações e as cabeças preferem contestação

 

Verdade é que a vida económica e social de Portugal, nas últimas décadas, oferece alguns bons resultados e motivos para satisfação. Nas áreas das contas públicas, do endividamento, do emprego, da actividade turística e das exportações, há resultados à vista, fonte de contentamento. Mas temos de verificar também que no crescimento económico, nos rendimentos das famílias, na produtividade e nos níveis de rendimento, Portugal tem um comportamento medíocre. Pior ainda: é dos piores da União Europeia e não consegue recuperar atrasos. Há mais de vinte anos que Portugal marca passo e se deixou ultrapassar por quase todos os países com os quais se compara. Há mais de vinte anos que se assiste a uma gradual degradação da qualidade e da eficiência dos grandes serviços públicos de saúde, de educação, dos transportes, da formação profissional e do atendimento geral aos cidadãos. Há mais de vinte anos que Portugal tem perdido força e qualidade nalgumas das suas mais importantes empresas, públicas ou privadas, assim como tem perdido autoridade sobre empresas estratégicas e de grandes serviços. Há vinte anos que Portugal vive prisioneiro da emigração dos seus cidadãos, sobretudo os mais jovens, para a Europa e o resto do mundo, ao mesmo tempo que depende da imigração de trabalhadores desqualificados com os mais baixos rendimentos e salários de toda a Europa ocidental.

 

Ao lado disto tudo, o orçamento é milho miúdo. As cenas políticas a que assistimos nestes últimos dias são, do ponto de vista do que é essencial e urgente, patéticas. Serviram tão só para que não se pense mal dos dois partidos. Para que o governo não perca a face. E para que o PS não fique com o ónus de ter colaborado com o governo e não ter sido uma verdadeira oposição. Coisas menores de actores secundários.

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Público, 2.11.2024

sábado, 26 de outubro de 2024

Grande Angular - Lisboa sempre, Lisboa nunca

 Lisboa é uma das mais belas cidades do mundo. Olhem para ela a partir da ponte do Tejo, da outra Banda, do Panteão, do Castelo de S. Jorge, de Santa Justa ou dos mais altos edifícios da cidade: o deslumbramento é incansável. Veja-se Lisboa a partir das ruas da Madragoa, de Belém, da beira rio e até da Baixa: o encanto é inconfundível. Esta Lisboa, que já foi e quase não é mais, está a desaparecer. Sem ordem nem ideia, sem plano nem cuidado. Lentamente, os lisboetas adaptam-se e habituam-se a tudo: ao lixo nas ruas, à erva dos passeios, à calçada levantada, aos buracos nas ruas, aos abrigos rodoviários desfeitos, aos edifícios em ruína deliberada, ao estacionamento em segunda fila, às filas de carros evitáveis e às filas inevitáveis de cidadãos diante dos serviços públicos. Os lisboetas habituaram-se aos monumentos em ruínas, às casas abandonadas, às fachadas históricas deformadas e à publicidade luminosa de parolo e pechisbeque. Os lisboetas habituaram-se ao desmazelo, à fealdade e à sujidade. Tal como se habituaram ao pobre, ao sem abrigo e ao pedinte. 

 

Pior do que tudo, os lisboetas habituaram-se à desigualdade, à miséria, à imigração explorada, aos trabalhadores estrangeiros ilegais, aos alojamentos imundos, aos bairros segregados e aos novos guetos étnicos. Lisboa tem hoje a mais, sem previsão nem ordem, turistas, imigrantes, ilegais, pobres, comerciantes e outras populações errantes. Lisboa e Portugal podiam ter tudo o que têm, e muito mais, se fosse melhor, se estivesse previsto, se houvesse políticas e regras.

 

De repente, por causa de um incidente desastrado e fatal, em que um agente da polícia matou um cidadão, os lisboetas acordaram para uma Lisboa difícil, segregada, desmazelada, ilegal, drogada, explorada e pronta para a violência.

 

Não. Ainda não. Lisboa não está a arder. Mas queima. O que há muito se receava, mas que era adiado, aconteceu. Desacatos, violência, vandalismo e repressão. Em meia dúzia de localidades de outros tantos concelhos. Todos na área metropolitana de Lisboa. Estragos, incêndios, feridos e um morto. Discute-se, como era de prever, a morte de cidadão com bala de polícia. Não se sabe ainda e não se saberá talvez nunca em que circunstâncias exactas. Legítima defesa? Violência desproporcionada? Repressão com violência desnecessária? Agressão de ódio? Provocação descarada?

 

Rapidamente, começou a ver-se em funcionamento a tenaz do irracional. De um lado, a culpa dos incidentes reside na polícia, no governo, nos brancos, no racismo, na direita, no capitalismo, no regime democrático, na desigualdade social, na pobreza, no desemprego e na extrema-direita. Do outro lado, a responsabilidade é dos bandidos, dos marginais, dos negros, dos imigrantes, dos drogados, dos ladrões, dos ilegais, das minorias, dos muçulmanos, da complacência das autoridades, da permissividade do regime e da covardia dos dirigentes políticos. E não faltaram uns políticos tolos a propor que se matem alguns…

 

E não se pense que se trata de notícias falsas e de boatos sem identidade. Não. Nos jornais e nas televisões, grande parte daqueles preconceitos são apresentados com palavreado académico e mais ou menos verniz, sempre com estatísticas de apoio.

 

Nesta tenaz de preconceito, as generalizações são quase a regra. Os portugueses são racistas. Os africanos são ladrões. Os muçulmanos são violentos. Os chineses são mesquinhos. Os indianos são manhosos. Os brasileiros são aldrabões. Os romenos são ciganos. E os ciganos são mentirosos. 

 

Estas visões do mundo são geralmente obstáculos à compreensão e ao diálogo. O que quer dizer que tornam difícil, às vezes impossível, qualquer tentativa de resolver problemas e pacificar situações de conflito. Não só porque o preconceito é ele próprio uma barreira ao diálogo e à negociação, mas também porque vem acompanhado de juízos de contexto que tornam incompreensível a realidade. E que desviam para abstracções políticas os esforços para tratar de casos reais. Mas sobretudo eliminam o sentido de responsabilidade pessoal e individual, um dos fundamentos da civilização. 

 

A irrupção de violência nos bairros periféricos de Lisboa tem, para uns, causas evidentes: são os imigrantes, os africanos e os muçulmanos, que vivem da segurança social e da droga, que se aproveitam da escola e da saúde pública, que recebem toda a espécie de subsídios e que se acham com todos os direitos. Para outros, as causas, também evidentes, são as políticas dos governos, o comportamento dos portugueses, o racismo dos brancos, as empresas capitalistas, os bairros sórdidos, o ambiente de opressão nas fábricas e as casas esquálidas.

 

Uns e outros dizem o mesmo: a culpa é do contexto. Do quadro geral. Da política. Da sociedade. Como é evidente, todas as circunstâncias, toda a herança cultural e todo o ambiente comunitário têm importância decisiva, ajudam os fenómenos sociais, influenciam os comportamentos. Mas não justificam as acções individuais, não explicam o crime, não desculpam o delito, não absolvem a infracção.

 

É verdade que o meio social, o ambiente, o quadro geral, a classe social, a comunidade, o bairro e a vizinhança ajudam a compreender fenómenos e acções. Nada pode ou deve ser feito pela política ou pela reforma social sem ter isso em conta. Mas nunca, de todo, nunca esse contexto pode desculpar o crime e justificar o ódio. Estes são acções do individuo e como tal devem ser avaliadas, julgadas, recompensadas ou castigadas. Nada substitui a responsabilidade individual. Quem mata. Quem pega fogo. Quem dispara. Quem rouba. Quem viola. Quem tortura. Quem mente. Sem responsabilidade individual, não há cidadania nem direitos humanos.

 

Se a responsabilidade individual é o imediato, o mais vasto, a prazo, é o tratamento das questões gerais que ficam para resolver. As políticas de imigração, por exemplo. Sem essa discussão e sem as regras a definir democraticamente, nada se resolverá nunca. Mas tenhamos consciência de que o debate está, actualmente, inquinado. Está mergulhado no irracional. Os seus protagonistas são quase sempre os fanáticos. Sejam os racistas residentes e os nacionalistas integristas. Sejam os racistas imigrantes ou os defensores das portas abertas e da destruição da comunidade. Entre defensores da integridade da nação pura e adeptos da dissolução da comunidade nacional, não há meio termo. A discussão e as soluções só serão possíveis fora do dilema dos fanáticos.

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Público, 26.10.2024