Estes anos vão ficar na história da Europa. Pelas boas ou pelas más razões. As boas: se a Europa, a sua União e as suas nações conseguirem ultrapassar as derrotas passadas e os perigos próximos. As más: se a Europa e as suas nações soçobrarem, perderem, forem derrotadas e não saibam ou não consigam recuperar. Parece apocalíptico? É. Exagerado? Talvez não. Possível? Sim.
Nas derrotas (políticas, militares, económicas, desportivas e outras), o pior é quando o potencialmente derrotado não se dá conta e não percebe que caminha para a sua perda. Ainda por cima, quando tem meios para evitar a derrota, mas não sabe, não quer, não consegue ou prefere não os utilizar. É o caso da Europa. Está à beira de derrotas históricas, mas nega a evidência. Tem meios para, a prazo, evitar a derrota, mas não os utiliza. Sabe quais são os caminhos para vencer ou pelo menos evitar o pior, mas, por miopia política, recusa percorrê-los. Prefere a complacência. E esperar que as coisas acabem por correr bem.
Que erros já cometeu a Europa? Que novas derrotas se preparam? A começar pelo princípio: a Europa esticou excessivamente a corda federalista, sem a conseguir finalizar; destronou as nações, sem as eliminar. Ficou a meio caminho, local de todas as derrotas: nem nações orgulhosas, nem federação poderosa. Os alargamentos foram excessivos e arriscados. O avanço a Leste foi imponderado.
A Europa deixou correr a NATO e os Estados Unidos, ficando paulatinamente para trás, poupando recursos e dinheiros, evitando gastos e investimentos, ameaçando a Rússia de modo inconsequente e substituindo a defesa pelos benefícios sociais. Ficou a reboque da América. E desarmada diante da Rússia.
O BREXIT constituiu uma das maiores derrotas da Europa em toda a sua existência. Da Europa continental, da União e da Grã-Bretanha. Uma das mais importantes nações europeias e mundiais, um dos melhores exércitos da Europa e do mundo e uma cultura empresarial única abandonaram a Europa. Para nunca mais voltar.
Ao longo de décadas, por cupidez e preguiça, por espírito snob e ganância, por facilidade e irresponsabilidade, a Europa deixou definhar a sua indústria, subsidiou a sua deslocalização, fomentou o recurso às empresas do Terceiro Mundo e entregou à China toda a sua capacidade manufactureira. A Europa libertou-se da sua sujidade, do seu lixo e da sua poluição: à custa da sua independência.
Por miopia e ilusão, a Europa entregou-se nas mãos da Rússia, do seu gás e do seu petróleo, enfraquecendo-se e fortalecendo aquele que é seguramente o mais vil dos actuais impérios à face da terra.
Há várias décadas que a Europa vende tudo o que tem. À China e à Rússia, à América e às ditaduras islâmicas, aos poderosos africanos e aos salteadores asiáticos e latino-americanos. Não só a empresas e Estados, mas também a bandidos e predadores. Fábricas e hotéis, serviços públicos e habitação, estradas e comboios, aeronáutica e telecomunicações, praias e montanhas, energia e barragens.
Há décadas que a Europa vem substituindo as suas personalidades, os seus intelectuais, escritores e cineastas, músicos e artistas, os seus académicos, cientistas e humanistas, os seus políticos esclarecidos e cultos, os seus sindicalistas de combate e os seus militares de confiança, por gestores das coisas dos outros, administradores de outrem, solicitadores de bens alheios e empregados de ocasião.
A Europa do cristianismo, do individuo, da dignidade da pessoa humana, dos gregos e do Renascimento, do iluminismo, da república, da cidadania, da democracia, dos direitos humanos, do sindicalismo, da ciência, da coesão social, das artes e das letras, essa Europa já é pouco mais do que recordação, tudo estando cedido em troca da arte digital, da inteligência artificial e da criação em streaming.
A Europa que viveu de milhões dos seus terem emigrado para outros continentes e de ter recebido milhões de emigrantes das suas e de outras nações, que soube misturar com carácter e acolher com personalidade, essa Europa está hoje enredada e prisioneira da desordem do tráfico de pessoas e dos mesquinhos interesses de dinheiros.
A Europa nunca chegou a ser Governo e Parlamento. Deixou de ser Banco. Não é mais Fábrica. Já tinha deixado de ser a Universidade. Já não é Igreja. A Europa é tudo isso, a prestações, mal e toscamente, sem personalidade nem identidade. A Ilustre Casa Europeia, casa de fidalgos arruinados e de pomposos gestores dos interesses de outros, perde todos os dias força e carácter. E, como acontece nas fábulas, não sabe que está a perder. Ou nega.
Em crise, nas vésperas de previsíveis derrotas de civilização, a poucos dias do novo e terrível presidente americano, a semanas ou meses de uma temível derrota ucraniana, no início de uma hegemonia sino-americana conflituosa, perto de uma verdadeira conquista islâmica e à beira da humilhação que será a do abandono da Europa pela América, os europeus, muitos europeus, sobretudo os seus dirigentes, comportam-se como se de nada se tratasse. À iminência do desastre chamam exagero e ansiedade. Como antes, aos cemitérios, outros chamaram paz.
Como sempre na vida e na história, a glória e a fama não conseguem esconder a vilania e a maldade. Os grandes feitos europeus não fazem esquecer a conquista, a escravatura, a opressão e a ditadura. Mas a Europa soube sempre ser a primeira a criticar os seus próprios erros, as suas malfeitorias e os seus desmandos. Será agora novamente capaz de reconhecer erros e evitar derrotas?
A Europa e as suas nações ainda têm alguma força, algumas empresas, alguns cientistas, alguns políticos, alguns intelectuais, alguns trabalhadores, alguns artistas e alguns militares com os quais se possa imaginar que seja possível evitar o desastre, transformar a derrota em vitória e garantir, mais do que uma ressurreição, um renascimento. A Europa tem beleza, natureza, cultura, tradição, história, reputação, património, diversidade e riqueza suficientes sobre as quais pode reconstruir e recomeçar. E ainda tem empresas e instituições.
Basta a vontade? Não. De modo nenhum. É necessário um colossal esforço. Muito estudo. Trabalho e ciência. Investimento. Defesa própria. Segurança autónoma. Muita liberdade e crítica. Direitos humanos. E liderança política.
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Público, 28.12.2024
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