domingo, 25 de outubro de 2015

Luz- Beco do Carneiro, Alfama, Lisboa.

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É seguramente um dos becos mais estreitos de Lisboa e do país. Em todo o caso, um dos mais estreitos que conheço. Com esta dimensão, uma largura que não dá sequer para duas pessoas passarem lado a lado, há mais um ou dois em Lisboa, mas vi vários na Casbah de Argel e nas aldeias à volta de Ghardaia, no M’Zab, no deserto do Sara. Nestas últimas, em certos casos, não se conseguia distinguir um caminho público, um beco, de um corredor no interior das casas e dos seus pátios. Era aliás esse o princípio: conservar a sombra e o fresco no Verão, um pouco mais de calor no Inverno, a defesa e a segurança sempre. O arquitecto e urbanista suíço, Le Corbusier, parece ter ficado encantado com essas aldeias e nelas procurou inspiração para alguns dos seus projectos. A nossa Alfama tem muito disso, com certeza. Há vinte ou trinta anos, ainda a falta de salubridade era um problema. Hoje, parece que essa questão está em vias de resolução. As próximas décadas o dirão. O turismo tem ajudado e colocado pressão nesse sentido. Pior é evidentemente a promiscuidade, a falta de intimidade ou de solidão…

As Praxes universitárias

Com o fim de Outubro, terminam as actividades que dão pelo nome de praxe e que consistem num catálogo de actos gratuitos de violência, de assédio sexual, de bebedeira, de escatologia barata, de expressão animalesca de autoridade e de deficiência moral profunda. Alguns, autores ou vítimas, alegam que se trata de actividades iniciáticas e de integração dos jovens caloiros. O que não ponho em dúvida: estas actividades revelam bem a qualidade dos comportamentos que se esperam para os integrados e veteranos. Como sou liberal, não me ocorre tentar proibir ou castigar quem praxa ou é praxado. Cada um come o que gosta. Mas não me conformo com o facto de essa gentinha andar por aí à solta em território comum. Nem me parece aceitável que essas actividades sadomasoquistas se realizem diante de nós. Sei bem que os imbecis têm direito à vida. Também sei que há estudantes que gostam de praxar e outros de ser praxados. Como sei que há professores que aceitam as praxes. É sabido que muitos estudantes que não aceitam ou não querem a praxe, têm dificuldades em escapar, dadas as pressões psicológicas e outras exercidas sobre eles. Dito isto, os idiotas que querem divertir-se na praxe podem fazê-lo. Em privado, de preferência. Já me surpreende que o Estado, as leis da comunidade, os deputados do Parlamento, os professores, os dirigentes das escolas e algumas polícias não façam o que têm de fazer: proibir as praxes dentro das escolas, das instalações públicas, nos recreios e recintos das universidades e nos territórios ou espaços públicos sujeitos à autoridade, entre os quais os jardins e os parques. As universidades deveriam também deixar de subsidiar as associações que se dedicam à praxe. Enquanto se sentirem tolerados, os idiotas da praxe continuarão. Quando se sentirem pestíferos, talvez comecem a pensar…

Livro de reclamações - DN, 25 de Outubro de 2015

Pior é difícil

O modo como os chefes de partido, que se julgam donos dos deputados, se referiram ao Parlamento, diz tudo sobre o papel desta instituição. Afirmaram o que lhes convinha, sobre um futuro governo, sem jamais ponderar a hipótese de que o voto livre de um deputado não seja totalmente previsível. Até o Presidente da República apelou aos deputados para votarem de uma maneira ou de outra. Na direita ou na esquerda, o desprezo pelos deputados sempre foi uma constante. Ora, mesmo que votem com disciplina, como fizeram para eleger o seu Presidente, têm de ser ouvidos. O problema é que o Parlamento não passa de uma comissão interpartidária para resolver formalidades.
A “disciplina de voto”, regime anticonstitucional, vai vigorar em pleno a partir de agora. Não é novidade que o PC e o Bloco desprezem a independência dos deputados. Mas custa a ver o PS alinhar pela mesma medida. Este desprezo pode ir a extremos inéditos: Costa está pronto a fazer governo, baseado num acordo que ninguém viu, nem Presidente, nem deputados. Nem o PS! Muito menos o povo.
A décima terceira legislatura começa da pior maneira. A fractura entre a esquerda e a direita é total. As acusações mútuas são absolutas. A oposição da esquerda ao Presidente da República é ríspida. A intervenção deste, na véspera, foi desastrada. O PC trata o PR de “subversivo”. Os deputados do PS designam o comportamento do Presidente de “ilegítimo” e “anticonstitucional”. Os hábitos dos comunistas já contagiaram os socialistas. A primeira intervenção do presidente da Assembleia, Ferro Rodrigues, foi desastrosa.
Depois da inquietação, chegámos à incerteza. O Presidente indigitou Passos Coelho. Fez bem. Este, se não desistir, vai apresentar-se ao Parlamento. Faz bem. O Parlamento deverá rejeitá-lo. É seu direito. Seria um governo de minoria frágil. Se não lhe passar pela cabeça manter o governo em gestão durante meses, o Presidente deverá designar um segundo Primeiro-ministro, que, tudo leva a crer, será António Costa. Faz bem. O enorme erro do governo de maioria de esquerda não se corrige com o erro medonho que seria o de o Presidente deixar o país com um governo de gestão…
 Costa, que até hoje se vangloria de ter um acordo, por enquanto secreto, com o Bloco e o PCP, formará governo, só socialista ou mal acompanhado, que deve passar no Parlamento. Será um governo refém e de maioria dependente. Mas passará. Para uma vida breve. O PS e António Costa ficaram prisioneiros de uma ambição menor e de dois partidos que precisam dele para o destruir. Ao julgar que os abraça, o PS vai dissolver-se nos seus aliados de hoje, do momento, mas inimigos de sempre.

O PS deixou de ser um obstáculo à chegada dos comunistas ao poder. O PCP deixou de considerar o PS como um adversário. O PS não resistiu à campanha de desgaste levada a cabo pelo Bloco. O PS deixou de ter relações especiais com os grupos económicos portugueses e multinacionais. O poder económico e financeiro deixou de acreditar no PS. E o PS, com as mãos a arder, vai virar-se para a política e deixar a economia…
DN, 25 de Outubro de 2015

domingo, 18 de outubro de 2015

Luz - Um navio de cruzeiro visto de Santo Estêvão, Alfama, Lisboa.

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O crescimento do turismo em Portugal, especialmente em Lisboa e no Porto, é um dos novos fenómenos da última década. Não pára de crescer, graças a muitos factores: além dos méritos e do clima do país, é a crise no Mediterrâneo, a guerra no Próximo Oriente, o afundamento da Grécia e o crescimento dos aviões “low cost”. Lisboa e Porto, com centenas de hotéis e “hostéis”, com milhares de tuks-tuks e muitas centenas de esplanadas, sem falar em longas filas ao sol para entrar na Torre de Belém, nos Jerónimos e nas caves de vinho do Porto, são já hoje diferentes do que eram há dez anos. Para o melhor e o pior, como é hábito. Uma das realidades curiosas é o número formidável de enormes cruzeiros, com uma ou duas dezenas de andares, com milhares de passageiros e dezenas de restaurantes, casinos, piscinas e outras amenidades! Acostam no Porto e sobretudo em Lisboa (já o faziam antes na Madeira), descarregam uns milhares de turistas por dia, dão-lhes de almoçar e dormir, levam-nos um dia depois. Visto do largo da igreja de Santo Estêvão, o santuário do fado, um cruzeiro da companhia “Disney”, dos mais pequenos, mais parece um “navio dentro da cidade”… (2015).

Situação excelente, mas não desesperada

Já sabíamos que os partidos, nas últimas eleições, não afirmaram simpatia pelos adversários, antes pelo contrário, elevaram o insulto à categoria de joalharia. Também sabíamos que, na hipótese de uma possível ausência de maioria absoluta, nenhum se predispôs a uma coligação ou viabilização de governos alheios. Lembramo-nos ainda dos partidos que revelaram com orgulho que votariam contra qualquer governo ou orçamento que não fossem o deles. Recordamos finalmente a virulência dos ataques do PCP e do Bloco contra o PS.

Desde o dia seguinte às eleições, cada um inventou a sua maioria de fantasia: do bloco central (69%), de esquerda (62%) e de quase todos contra a extrema-esquerda (81%). Como é evidente, todas essas maiorias são artificiais: não se pode considerar uma maioria uma aliança não previamente anunciada, nem sequer indiciada. Nenhuma maioria se exprimiu realmente contra, nem a favor, do governo ou da esquerda. Quer isto dizer que se está a trabalhar com despojos e programas de circunstância, em nome de exigências práticas. Nesse sentido, o Presidente Cavaco Silva errou, ao designar um “procurador” em vez de um “formador”. Contribuiu para a criação deste tempo alucinado que vivemos. Ele também não pode, aliás, exigir que lhe garantam antecipadamente o apoio parlamentar a um governo. Isso só se sabe no Parlamento. Bem sei que é uma ficção, mas, em princípio, os deputados são livres de votar como entendem. E como tal devem ser tratados.

Havia soluções simples e compreensíveis. Por exemplo, o partido mais votado, PSD, convidava o segundo partido mais votado, PS, para uma “grande coligação” de governo e um “compromisso histórico” que permitissem a saída do ciclo de austeridade, o início de um período de desenvolvimento e a preparação de projectos de investimento. Teríamos assim um governo formado pelas duas forças com mais representatividade: o PSD, o partido que mais fez pelo combate à bancarrota; e o PS, o que com mais equilíbrio lutou contra os exageros da austeridade. Esta solução não foi desejada pelo PSD, nem pelo PS. Tudo fizeram para a tornar impossível. Por motivos menores, por ambição e por sofreguidão. Estes dois partidos ficam responsáveis pelo que se segue. Instabilidade, agitação social, algazarra, fuga de capitais, estagnação do investimento, deriva na Administração Pública e desordem na Justiça.

Seria bom que se visse, nos programas do PCP e do Bloco, o que estes partidos pretendem do futuro de Portugal, da democracia em geral, da democracia avançada em particular, da União Europeia, do Euro, da NATO, da iniciativa privada, do investimento internacional, do endividamento externo, da negociação da dívida… O PCP, que já derrubou dois governos socialistas, foi durante quarenta anos um seguro de vida da direita. A impossibilidade genética de aliança dos socialistas com os comunistas dava, sem justa causa, uma “folga” aos partidos de direita. Mas era, do ponto de vista da democracia, razoável. Na verdade, o PCP não faz parte das soluções democráticas. O PCP integra o sistema democrático, pela simples razão que a democracia é o regime de todos, incluindo dos não democratas. Essa é a força da democracia, por vezes a sua fraqueza. Mas o PCP nunca deu provas de considerar a democracia algo mais do que uma simples transição para o regime comunista, passando por uma democracia avançada, cujos horrores são conhecidos. Enquanto o PCP se mantiver fiel a tudo quanto o fez viver até hoje, deveremos tratá-lo como todos os comunismos e fascismos: combatê-los com a liberdade. A ter que ficar nas mãos de alguém, prefiro mil vezes os credores aos comunistas. Destes, sei que não se sai vivo, nem livre.
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DN, 18 de Outubro de 2015

domingo, 11 de outubro de 2015

Luz - Pescador no cais do Poço do Bispo, Lisboa

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Sempre me surpreenderam estes pescadores à beira Tejo (ou Douro, ou Sena, ou Tamisa…), em estuário de rio tão movimentado e agitado, por vezes poluído. Também é verdade que raramente, muito raramente (isto é, duas vezes em toda a minha vida…), avistei peixes de consequência (superiores a dez centímetros…) nos baldes que, esperançosos, estes pescadores carregam com eles, colocam ao pé das cadeiras ou guardam nas malas dos carros à vista. Mas não duvido de que o erro é meu. Com efeito, milhares de pescadores a passar milhões de horas por ano, nas margens dos nossos grandes estuários e rios urbanos, estão aí para desmentir os incrédulos e para nos garantir que não se trata de preguiça dos senhores pescadores, mas sim de oportunidades reais para apanhar sargos ou linguados, enguias ou corvinas, solhas ou savelhas, tainhas ou cabozes. Além da misteriosa segunda cana de pesca, de que só eu conheço o segredo, interessou-me, nesta imagem, a linha traçada pela ponte Vasco da Gama. Esta marca bem o horizonte, mas permite a abertura da sua bonita elevação. (2015)

Os quatro pilares da democracia

A defesa da liberdade e da democracia depende em primeiro lugar dos povos. Se estes não quiserem a democracia, será difícil criá-la. Dito isto, que não chega, há mais. A democracia é uma construção difícil e longa. É uma convenção complexa. É uma organização frágil, condicionada pela circunstância e pelos costumes. Pelas instituições e pelos políticos…
Tendo durado quase quarenta anos, o edifício da democracia portuguesa está construído sobre quatro pilares. Frágeis e actualmente sob ameaça.

O acordo constitucional. Serviu para fundar o Estado de direito democrático. Apesar das reticências, até o CDS aderiu. E o PCP também, mas forçado. Depois, foi-se fazendo um compromisso de revisão, entre o PSD, o PS e o CDS. Todos com vontade de rever, desde que lhes convenha o momento. Curiosamente, o mais rígido defensor da Constituição é o PCP, único partido que explicitamente considera a democracia parlamentar como um regime transitório… Este consenso está hoje em crise séria, talvez sem remissão. A ruptura dos últimos anos entre o PS e o PSD parece irreversível. Quem quer rever a Constituição não tem força para isso. Não parece haver uma maioria de defesa nem de revisão da Constituição.

O Estado social. Com uns pormenores datando dos anos 1960, o actual Estado Social é essencialmente obra da democracia, que o criou e dele se alimentou. O Estado social manteve o consenso constitucional. Todos, no Parlamento e no governo, ajudaram. Os partidos de direita e os mais liberais, se é que estes existem, contribuíram. Os de esquerda também. Ninguém quis perder uma oportunidade para aumentar prestações, subsídios, pensões e abonos. A democracia agradou à população enquanto o Estado social parecia rico e generoso. Este, agora, sem meios nem demografia, está a desfazer-se aos poucos. Nas últimas eleições, percebeu-se, a este propósito, a crispação entre partidos. Sem crescimento económico, não há Estado Social. Sem um compromisso entre partidos, muito menos.

A União Europeia. Depois de África, a Europa foi a casa de refúgio. A direita e extrema-esquerda começaram por ser contra. Socialistas e alguns “liberais” foram pioneiros. Lentamente, quase todos aderiram e gostaram. Até os comunistas, ainda hoje nada europeístas, aproveitaram o que puderam para os seus autarcas e para os investimentos públicos. Este pilar foi sobretudo válido como garante e factor de coesão nacional, enquadramento internacional e coesão social. Foi a mais importante fonte de recursos para investimento. Nos próximos anos, depois do falhanço da coesão europeia, o papel da UE, como factor de democracia em Portugal, será difícil. Com a adesão da União e do BCE aos programas de assistência (vulgo Troika), muitos portugueses deixaram de olhar para esta Europa com simpatia e interesse. É o caso do Bloco e de parte dos socialistas, que se juntam ao PCP. A crise financeira e política europeia, a crise dos refugiados, as contradições crescentes entre Estados, a irresistível supremacia alemã, o apagamento francês, o “separatismo” britânico e os tormentos gregos mostram uma União perturbada, incapaz de segurar as forças centrífugas.

A aliança entre o Estado e os negócios. Uns chamam-lhe promiscuidade. Outros dizem que é corrupção. Há quem pense que são inimigos perigosos da democracia. A longo prazo, é verdade: são a sua destruição. Mas infelizmente, a curto prazo, podem ser, como têm sido em Portugal, factores de sustento e funcionamento da democracia. Aquela aliança criou investimentos e oportunidades, fomentou o emprego, distribuiu rendimentos, alimentou partidos e empresas, fez obras públicas, projectou empresas para o estrangeiro e foi viveiro de negócios. Velhos ricos, partidos políticos, grandes grupos privados, empresas públicas, companhias multinacionais, bancos, empresas de construção e de serviços públicos, novos-ricos de colheita recente e grupos financeiros de origem incerta ganharam e tiveram o seu ciclo de riqueza, fama e viço. Os protagonistas foram os suspeitos habituais ou não. De um lado, os chamados partidos de governo, o Estado central, as autarquias e as empresas públicas. Do outro, alguns grupos económicos nacionais, uma parte da banca, algumas multinacionais e um rosário de empresas especializadas nas encomendas do Estado ou nos seus concursos de obras e de fornecimentos. A matéria era vasta: estradas, energia, água, construção, cimentos, transportes, banca, telecomunicações, equipamento militar… Os elementos de ligação eram os concursos públicos, as adjudicações directas, as encomendas, as Parcerias Público Privadas, as privatizações… Poucos criaram riqueza. Muitos compraram o que havia. Alguns foram mesmo capazes de comprar para destruir. Esta aliança parece estar em fase de ruptura. Depois de terem deixado desenvolver-se os negócios e a dívida, a Troika e as entidades internacionais necessitam agora de ter garantias de honestidade nas relações entre o Estado e os negócios. Além de que não há dinheiro, nem crédito fácil. E tudo leva a crer que os dinheiros europeus não serão mais portas abertas ou mãos rotas…


Com estes quatro pilares ameaçados, como poderá segurar-se a democracia portuguesa? Era bom que as soluções de governo que se preparam estivessem à altura destas ameaças.
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DN, 11 de Outubro de 2015