O debate em curso sobre a eutanásia acabou rapidamente por se dividir em duas discussões: uma sobre a matéria propriamente dita e outra sobre o processo de legislação.
A proposta de lei que propunha a realização de um referendo não foi aprovada. Teremos, assim, um debate parlamentar seguido de aprovação, ou não, da lei sobre a eutanásia, na sua versão final, após negociação e discussão na especialidade. O Parlamento fez bem em reprovar esta proposta. Por uma razão essencial: a pergunta a referendar estava mal formulada, designadamente porque colocava no mesmo pé eutanásia e suicídio assistido. São duas coisas diferentes, no modo e nos fundamentos. A ideia de que os referendos exigem uma pergunta clara, não tendenciosa, a fim de obter uma resposta simples que se possa formular com o “sim” e o “não”, é um requisito excelente. O tom (“matar outra pessoa”…), a equiparação de duas realidades diferentes e o acrescento da expressão “em quaisquer circunstâncias” estão ali sabiamente colocados para tornar a pergunta insidiosa.
Por outro lado, tendo em conta com as diferenças existentes entre suicídio assistido e as modalidades de eutanásia (activa e inactiva, voluntária ou involuntária, etc.), seria indispensável bem distinguir o que está em causa. É possível e moralmente aceitável ser contra ou a favor de todas as formas que precedem, ou ser a favor de certas modalidades e contra outras. Há diferenças essenciais, morais e deontológicas entre as diversas formas citadas. O que quer dizer que uma só pergunta referendável não responde às exigências. E um referendo com cinco ou seis perguntas, que ainda por cima exigem uma discussão serena, não se afigura prático. Esta é uma das principais razões pelas quais os referendos à eutanásia são discutíveis e eventualmente desaconselhados.
O problema não fica por aí. Na verdade, os argumentos dos que defendiam ou negavam a realização do referendo obrigam a uma reflexão mais complexa. Como é fácil verificar, tanto das esquerdas como das direitas e do centro, há uma espécie de padrão de comportamento. Quando o tema convém e as previsões são favoráveis, o recurso ao referendo é fácil. Pelo contrário, quando as sondagens sugerem que o resultado pode contrariar as pretensões, logo surgem os argumentos políticos e filosóficos que negam a hipótese de realizar um referendo para certos temas. Quando a maioria parlamentar é desfavorável, surge uma hipótese de referendo. Quando a vitória está assegurada, o referendo é afastado. Quando a matéria divide um partido, o referendo é a solução. Certo é que muita gente em Portugal é a favor ou contra os referendos conforme lhe convém. O aborto e a regionalização foram bons exemplos. A eutanásia também.
A democracia tem riscos. Como se sabe. No último século, foram muitos os exemplos de eleições de fanáticos e déspotas e de referendos inesperados e danosos. Acontece que eram as decisões dos povos e dos eleitorados. Veja-se o percurso de eleições e de referendos na Alemanha, na Itália, em França, na Venezuela, na Grã-Bretanha, no Brasil, no Irão, na Argélia… A história da democracia eleitoral e referendária é uma história com surpresas e desastres. Mas não deixa de ser assim mesmo: os riscos são elevados, mas os perigos de não haver eleições nem referendos são piores!
Conhecendo esses riscos, tentando não utilizar o referendo como arma oportunista e demagógica, há medidas de segurança que permitem que o recurso à democracia directa não seja destruidor da própria democracia. Por exemplo, um longo prazo (vários anos) entre a decisão e a realização do referendo pode ser uma condição eficaz para diminuir a carga emotiva excessiva ou a pulsão conjuntural que impede uma decisão serena. Outra medida de segurança é a necessária aprovação pelas instituições que devem pronunciar-se sobre a realização de referendos, assim como sobre as perguntas. Se umas dezenas ou centenas de milhares de cidadãos o pedirem, se uma maioria parlamentar estiver de acordo, se o Presidente da República aprovar e se o Tribunal Constitucional concordar com os termos, não há razão para que uma qualquer questão não possa ser submetida a referendo. Era assim que deveria ser, incluindo as normas constitucionais, os direitos e os impostos. Nem sempre é assim, infelizmente, pois a Constituição proíbe certos temas. Mas tenhamos consciência de que se trata de normas constitucionais pouco democráticas e medrosas.
Em suma, o Parlamento decidiu bem, mesmo se foi por maus motivos. Na verdade, os deputados pretenderam subvalorizar o instituto do referendo e criticar a sua utilização, quando o grande argumento era o da forma e do conteúdo da pergunta.
Quanto ao conteúdo do referendo, a eutanásia e o suicídio assistido, estão aprovados os cinco projectos apresentados. Uma lei final poderá vir a ser o resultado de negociações e de cooperação entre os diversos partidos que apresentaram os seus próprios projectos.
Nunca se perceberá o encarniçamento de alguns partidos de esquerda com a eutanásia. Não parece uma questão essencial e urgente. Nem tem especial efeito eleitoral. Mas tem aspecto de ser mais uma “questão fracturante”, daquelas (como o aborto, a objecção de consciência, o casamento homossexual, a adopção de crianças por homossexuais, a inseminação com sémen de homem falecido, etc.) que agradam a uns para incomodar outros.
Os projectos aprovados não faziam rigorosamente as distinções que deveriam ter feito: eutanásia activa (intervenção directa para pôr um termo à vida), eutanásia passiva (não fazer, interromper ou cessar tratamentos), eutanásia voluntária (o próprio exprime o desejo), eutanásia involuntária (o próprio está incapaz de decidir e é outra pessoa, médico ou não, que decide) e suicídio assistido (o próprio executa as operações, mas os dispositivos, produtos ou instrumentos são fornecidos por outra pessoa).
O suicídio assistido é a solução mais clara. A intervenção exterior é instrumental, a decisão é do interessado e a execução é do próprio. É esta a solução que melhor respeita a vontade da pessoa, o seu livre arbítrio e a sua escolha informada. Já a eutanásia, com os seus equívocos e as suas diversas modalidades, revela aspectos muito negativos, a começar pela modalidade involuntária, isto é, pela decisão sem escolha prévia do paciente.
São de condenar todos os métodos que desviam a decisão para outra pessoa que não seja o paciente. Só a decisão e o gesto do próprio respeitam as exigências de liberdade pessoal e de dignidade.
Público, 25.10.2020