domingo, 25 de outubro de 2020

Grande Angular - A morte e a democracia

O debate em curso sobre a eutanásia acabou rapidamente por se dividir em duas discussões: uma sobre a matéria propriamente dita e outra sobre o processo de legislação.

A proposta de lei que propunha a realização de um referendo não foi aprovada. Teremos, assim, um debate parlamentar seguido de aprovação, ou não, da lei sobre a eutanásia, na sua versão final, após negociação e discussão na especialidade. O Parlamento fez bem em reprovar esta proposta. Por uma razão essencial: a pergunta a referendar estava mal formulada, designadamente porque colocava no mesmo pé eutanásia e suicídio assistido. São duas coisas diferentes, no modo e nos fundamentos. A ideia de que os referendos exigem uma pergunta clara, não tendenciosa, a fim de obter uma resposta simples que se possa formular com o “sim” e o “não”, é um requisito excelente. O tom (“matar outra pessoa”…), a equiparação de duas realidades diferentes e o acrescento da expressão “em quaisquer circunstâncias” estão ali sabiamente colocados para tornar a pergunta insidiosa.

Por outro lado, tendo em conta com as diferenças existentes entre suicídio assistido e as modalidades de eutanásia (activa e inactiva, voluntária ou involuntária, etc.), seria indispensável bem distinguir o que está em causa. É possível e moralmente aceitável ser contra ou a favor de todas as formas que precedem, ou ser a favor de certas modalidades e contra outras. Há diferenças essenciais, morais e deontológicas entre as diversas formas citadas. O que quer dizer que uma só pergunta referendável não responde às exigências. E um referendo com cinco ou seis perguntas, que ainda por cima exigem uma discussão serena, não se afigura prático. Esta é uma das principais razões pelas quais os referendos à eutanásia são discutíveis e eventualmente desaconselhados.

O problema não fica por aí. Na verdade, os argumentos dos que defendiam ou negavam a realização do referendo obrigam a uma reflexão mais complexa. Como é fácil verificar, tanto das esquerdas como das direitas e do centro, há uma espécie de padrão de comportamento. Quando o tema convém e as previsões são favoráveis, o recurso ao referendo é fácil. Pelo contrário, quando as sondagens sugerem que o resultado pode contrariar as pretensões, logo surgem os argumentos políticos e filosóficos que negam a hipótese de realizar um referendo para certos temas. Quando a maioria parlamentar é desfavorável, surge uma hipótese de referendo. Quando a vitória está assegurada, o referendo é afastado. Quando a matéria divide um partido, o referendo é a solução. Certo é que muita gente em Portugal é a favor ou contra os referendos conforme lhe convém. O aborto e a regionalização foram bons exemplos. A eutanásia também.

A democracia tem riscos. Como se sabe. No último século, foram muitos os exemplos de eleições de fanáticos e déspotas e de referendos inesperados e danosos. Acontece que eram as decisões dos povos e dos eleitorados. Veja-se o percurso de eleições e de referendos na Alemanha, na Itália, em França, na Venezuela, na Grã-Bretanha, no Brasil, no Irão, na Argélia… A história da democracia eleitoral e referendária é uma história com surpresas e desastres. Mas não deixa de ser assim mesmo: os riscos são elevados, mas os perigos de não haver eleições nem referendos são piores!

Conhecendo esses riscos, tentando não utilizar o referendo como arma oportunista e demagógica, há medidas de segurança que permitem que o recurso à democracia directa não seja destruidor da própria democracia. Por exemplo, um longo prazo (vários anos) entre a decisão e a realização do referendo pode ser uma condição eficaz para diminuir a carga emotiva excessiva ou a pulsão conjuntural que impede uma decisão serena. Outra medida de segurança é a necessária aprovação pelas instituições que devem pronunciar-se sobre a realização de referendos, assim como sobre as perguntas. Se umas dezenas ou centenas de milhares de cidadãos o pedirem, se uma maioria parlamentar estiver de acordo, se o Presidente da República aprovar e se o Tribunal Constitucional concordar com os termos, não há razão para que uma qualquer questão não possa ser submetida a referendo. Era assim que deveria ser, incluindo as normas constitucionais, os direitos e os impostos. Nem sempre é assim, infelizmente, pois a Constituição proíbe certos temas. Mas tenhamos consciência de que se trata de normas constitucionais pouco democráticas e medrosas.

Em suma, o Parlamento decidiu bem, mesmo se foi por maus motivos. Na verdade, os deputados pretenderam subvalorizar o instituto do referendo e criticar a sua utilização, quando o grande argumento era o da forma e do conteúdo da pergunta.

Quanto ao conteúdo do referendo, a eutanásia e o suicídio assistido, estão aprovados os cinco projectos apresentados. Uma lei final poderá vir a ser o resultado de negociações e de cooperação entre os diversos partidos que apresentaram os seus próprios projectos.

Nunca se perceberá o encarniçamento de alguns partidos de esquerda com a eutanásia. Não parece uma questão essencial e urgente. Nem tem especial efeito eleitoral. Mas tem aspecto de ser mais uma “questão fracturante”, daquelas (como o aborto, a objecção de consciência, o casamento homossexual, a adopção de crianças por homossexuais, a inseminação com sémen de homem falecido, etc.) que agradam a uns para incomodar outros.

Os projectos aprovados não faziam rigorosamente as distinções que deveriam ter feito: eutanásia activa (intervenção directa para pôr um termo à vida), eutanásia passiva (não fazer, interromper ou cessar tratamentos), eutanásia voluntária (o próprio exprime o desejo), eutanásia involuntária (o próprio está incapaz de decidir e é outra pessoa, médico ou não, que decide) e suicídio assistido (o próprio executa as operações, mas os dispositivos, produtos ou instrumentos são fornecidos por outra pessoa).

O suicídio assistido é a solução mais clara. A intervenção exterior é instrumental, a decisão é do interessado e a execução é do próprio. É esta a solução que melhor respeita a vontade da pessoa, o seu livre arbítrio e a sua escolha informada. Já a eutanásia, com os seus equívocos e as suas diversas modalidades, revela aspectos muito negativos, a começar pela modalidade involuntária, isto é, pela decisão sem escolha prévia do paciente.

São de condenar todos os métodos que desviam a decisão para outra pessoa que não seja o paciente. Só a decisão e o gesto do próprio respeitam as exigências de liberdade pessoal e de dignidade.

Público, 25.10.2020

domingo, 18 de outubro de 2020

Grande Angular - Médicos e professores

 Com ou sem crise, no início do ano lectivo ou em pleno período de exames, por altura das matrículas ou na época das avaliações, uma evidência parece impor-se, de tal modo é proclamada: não há professores que cheguem! Os professores estão velhos, há demasiados alunos por turma, há alunos sem aulas por falta de professores… É verdade que faltam auxiliares, os edifícios estão em mau estado… Mudam os programas e mudam os manuais… Mas um tema se sobrepõe: faltam professores!

Na saúde, há fenómenos paralelos. Fora da actual crise (em que tudo falta, evidentemente), em qualquer situação sanitária, com as gripes de inverno ou os calores do verão, com as centenas de milhares de pessoas em espera de cirurgia e consulta, na evidência de uma enorme desigualdade social no acesso aos cuidados de saúde, na polémica entre o público e o privado, na discussão sobre o orçamento ou no debate sobre as carreiras… um tema sobressai: faltam médicos! Episodicamente, os enfermeiros entram em cena: além de médicos, faltam enfermeiros. A insuficiência destes profissionais, aliás, seria a responsável pela ineficiência dos serviços de saúde. Na verdade, médico sem enfermeiro é problema.

Não é claro que outras profissões sejam afectadas pela mesma reputação de insuficiência ou de carência. Mas estes casos são clássicos e merecem conferência. Vale a pena olhar para os números e as comparações internacionais. Mesmo sabendo que se trata de médias e de categorias muito gerais e tendo a certeza de que os contextos são diferentes, as comparações são interessantes. E ajudam-nos não só a perceber, como também a fazer as perguntas adequadas. Com a ajuda da PORDATA, do INE, do EUROSTATe da OCDE, preparemo-nos para algumas surpresas.

O número de médicos por habitante pode ser um indicador do estado de desenvolvimento de um país ou da prioridade que a política confere à saúde. A média europeia é de 378 médicos por 100 000 habitantes. Num total de 27 países, Portugal figura num honroso terceiro lugar, com 515 médicos. O primeiro europeu é a Grécia, com 610, o último é a Roménia, com 301. Na Europa, com mais médicos do que Portugal, só a Grécia e a Áustria. Com menos, contam-se 23 países, entre os quais os mais ricos e com sistemas de saúde mais famosos.

O número de médicos de clínica geral mostra também realidades interessantes. Portugal encontra-se em primeiro lugar na Europa. Já na saúde dentária a realidade é menos brilhante, mas Portugal não está nos últimos lugares. Com 101 dentistas por 100 000 habitantes, Portugal está longe da Suécia (173). Onze países têm melhores indicadores do que o nosso, mas oito estão pior. O caso dos enfermeiros é diferente. Os resultados portugueses são medíocres. Com 716 enfermeiros por 100 000 habitantes, Portugal está muito longe dos 1 722 da Alemanha. Quinze países estão em melhor situação, mas ainda há sete com menos enfermeiros do que Portugal.

A despesa com a saúde é outro indicador frequentemente citado. Na Europa, doze países têm mais recursos do que Portugal, enquanto onze têm menos. Quer isto dizer que nos encontramos a meio da tabela. Mas os 1 870€ por ano e por habitante ficam muito longe dos 5 226€ da Dinamarca. Em percentagem do PIB, rácio indispensável, Portugal fica na metade superior, com oito países em melhor situação, mas dezasseis em pior. Os nossos 9,5% não estão muito longe dos 11% alemães.

Finalmente, a esperança de vida. Portugal está acima da média da UE, com 16 países revelando menos anos de esperança de vida e 15 com mais.

Com excepção do número de enfermeiros, todos os indicadores quantitativos revelam uma situação confortável, em franco progresso. São resultados surpreendentes, quando pensamos nas filas na recepção, nos tempos de espera para cirurgia e consulta, nas demoras com a Internet, no acesso tão difícil aos pobres e aos que não têm recursos para a medicina privada! O que está errado? Serviços mal organizados? Os médicos trabalham pouco? Acumulam funções no privado e no público? Os serviços e os hospitais estão mal equipados?

Na educação, há paralelos possíveis. A falta de professores é um dos temas mais frequentes em toda a discussão sobre aulas e escolas, êxito e insucesso, literacia e abandono. A falta de professores é tida como responsável pelos maus resultados, pela má preparação de tantos profissionais e pela reduzida qualificação dos portugueses. A exigência de contratação de professores é unânime.

Todavia, as comparações quantitativas internacionais não traduzem essa falta. No caso do número de professores do ensino básico (1º e 2º ciclos), Portugal fica a meio da tabela com 12 alunos por docente, abaixo da Roménia (19) e acima da Polónia (8). Com mais alunos por docente, há doze países, mas quinze com menos. No caso dos docentes do ensino secundário, há na Europa 19 países em piores condições (com mais estudantes por professor) e oito países em melhores condições (isto é, com menos estudantes por professor). O número de professores do ensino superior também não envergonha Portugal, antes pelo contrário. Na óptica dos estudantes por docente, Portugal fica no primeiro terço, com 6 países em melhores condições, mas 21 em pior situação. A despesa com educação atinge em Portugal cerca de 6,3% do PIB, o que coloca o país em quinto lugar, num total de 27.

Sabemos que os progressos, em Portugal, ao longo das últimas décadas, foram enormes. Também sabemos agora que, na saúde e na educação, certos indicadores revelam condições e realidades que não confirmam o sentimento de catástrofe e a noção de carência tão usuais. Mas também sabemos que a ineficiência dos serviços públicos, a má qualidade das prestações e sobretudo a desigualdade social no acesso são relevantes e notórias.

Com excepção dos enfermeiros e dos auxiliares de educação, a falta de profissionais não parece ser uma causa importante dos atrasos, da ineficiência e da desigualdade. Nem as percentagens da despesa no produto. Há que procurar causas e remédios noutras áreas. Na organização dos serviços? Na disciplina de trabalho? No poder excessivo das organizações profissionais? Nas relações entre privados e públicos? Na falta de autonomia e de responsabilidade das instituições? Na indiferença das autarquias? No centralismo burocrático? Na interferência do poder político? Na insuficiência dos orçamentos? Na falta de professores e de médicos não é com certeza.

Público, 18.10.2020

domingo, 11 de outubro de 2020

Grande Angular - Recursos milagrosos

Vão chegar a Portugal, vindas da União Europeia, as dezenas de milhares de milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (que designação tão estúpida!), também intitulado “bazuca” (epíteto não menos estúpido). É, para todos os efeitos, uma boa notícia e poderá ser um bom contributo para o desenvolvimento económico e social e para a democracia portuguesa.

As reacções habituais dizem tudo sobre os seus autores. Milagre! É a salvação de Portugal. Vai tudo para os trafulhas! Agora é que vai ser corrupção. Ninguém controla com honestidade e independência. Vai ser tudo gasto no curto prazo. Quem vai ficar a ganhar são os milionários habituais. Os partidos no poder vão ser os principais beneficiários. É uma extraordinária prova de solidariedade europeia. É muito mais do que o Plano Marshall. É o que a Europa deve a Portugal. Há recursos para relançar o crescimento e fortalecer o Estado Social. É mais uma solução de facilidade que alivia os portugueses, mas que também os ajuda a fazer menos pela vida.

É tudo um pouco verdade. Tanto os críticos como os entusiastas têm carradas de razão. Mas nenhuns têm só ou toda a razão.

Verdade é que nos piores momentos das últimas décadas, nos maiores apertos ou para pagar as mais desatinadas loucuras, houve sempre recursos extraordinários que ajudaram milhões de cidadãos a sobreviver e a salvar a democracia. Não há dúvidas que o essencial foi feito pelos portugueses, trabalhadores e empresários, agricultores e técnicos, militares e civis, todos eles eleitores: é seguramente deles o principal contributo para garantir as liberdades e algum equilíbrio do sistema social. Foram eles que fizeram a democracia e são eles que a têm mantido.

Mas, com que meios? Esse é o aspecto mais curioso. Os Portugueses não conseguiram produzir mais do que consumiram. Nem sequer tanto quanto gastaram. Nem investir o que era necessário. Tiveram de se endividar, já sabíamos. Mas, ano após ano, foi possível segurar as pontas soltas, estancar hemorragias iminentes e evitar bancarrotas prováveis. Houve o necessário para distribuir um mínimo indispensável à paz. Foi possível guardar um pacote para alimentar a política, a administração pública, o serviço de saúde e de educação, a segurança social e as pensões cujo número nunca cessou de se alargar e com o que se aguentou a democracia sem estremeções excessivos e perigosos. Foi possível, através dos mecanismos indesejáveis e imprevisíveis, sossegar os mais nervosos e contentar os mais ambiciosos, assim como pagar a demagogia e o desperdício.

Foi necessário pagar a revolução, a contra-revolução e a consolidação da democracia, assim como uma nova segurança social sem contribuições prévias suficientes. Foi necessário cobrir os défices externos, a produção insuficiente e o Estado social sem receitas. Foi necessário alimentar os circuitos de economia paralela e de empresas marginais. Foi necessário encontrar recursos para acalmar empresários descontentes, trabalhadores com altas expectativas e funcionários atordoados ou ambiciosos. Foi preciso alimentar os desvios de fortunas para offshore de conveniência e ajudar ministros de vários governos a enriquecer depressa.

Em poucas palavras, foi necessário manter a paz, aguentar as faltas e cumprir os mínimos, sem o que não haveria paz social nem democracia partidária. Até os revolucionários diletantes, os teóricos radicais marginais, as máfias, os capitalistas sem escrúpulos, os contrabandistas e os traficantes de influências tiveram de ser “contentados”, “cuidados” ou “tratados”, sem o que se entregariam a actividades ilícitas, conspirações políticas e actos de terrorismo ou de sabotagem.

Tudo isto custou muito dinheiro. Que foi distribuído de várias maneiras: dinheiro vivo, pensões, aumentos salariais, saúde e educação, subsídios para a habitação, rendimento mínimo, fomento da exportação, concursos públicos para obras úteis e inúteis, adjudicações directas para parcerias público privadas, bolsas de estudo e privilégios do funcionalismo público. Custou muito caro e não foi tudo graças ao esforço, ao trabalho e ao investimento dos portugueses. O crédito e o endividamento pagaram muito. Mas mesmo estes e os respectivos juros tiveram de ser pagos e reembolsados. Com que recursos se pagou tudo isto?

Em primeiro lugar, as reservas de ouro e divisas do anterior regime. Ajudaram a revolução. Financiaram o desperdício e a demagogia. Pagaram centenas de milhares de novos funcionários. Alimentaram o sistema democrático. Evitaram, em cima do risco da catástrofe, a ruína e a bancarrota.

Depois, as nacionalizações e as ocupações da banca, de empresas, de propriedades agrícolas, de edifícios e de habitações, tudo sem indemnizações. Fez-se o que as revoluções fazem, justa ou injustamente: o Estado e os revolucionários foram buscar os recursos onde eles estavam. Destruíram-se os grupos económicos portugueses e expropriaram-se os ricos, mas arranjaram-se recursos para manter viva uma base económica de produção e emprego. E um pouco de democracia.

Há ainda que contar as receitas das privatizações e das reprivatizações, muitas delas precedidas de expropriações e nacionalizações efectuadas sem indemnização prévia. O Estado democrático e o sistema político encontraram aqui recursos importantes para aguentar uma década e manter a democracia. Venderam-se, a privados e a Estados estrangeiros, as melhores empresas nacionais.

Finalmente, outro contributo excepcional é o dos fundos europeus nas suas várias remessas, desde os tempos da ajuda de pré-adesão, passando pelos famosos Fundo Social Europeu, PEDIP e PRODEP, chegando aos programas de coesão ou 2020 e agora à recuperação e resiliência. Foram muitas, muitas, mesmo muitas dezenas de milhares de milhões de euros, não produzidos pelos portugueses, nem trabalhadores, nem empresários, nem políticos.

Foram ajudas e apoios irrepetíveis. Por entre enormes dificuldades, Portugal democrático e os portugueses mantém-se graças a receitas extraordinárias e a fundos excepcionais. Alguns do passado, outros do exterior. E muitos do futuro, por via do endividamento e das parcerias público privadas. Não é bom sinal continuar a esperar pelos recursos milagrosos e não cuidar da riqueza que se produz ou da poupança que se estimula. Não se pode viver sempre ligado ao ventilador ou ao milagre. Muito menos à espera de solidariedade. Viver do alheio, do crédito e da dádiva não é um bom programa de vida.

Público, 11.10.2020

domingo, 4 de outubro de 2020

Grande Angular - Corrupção e legitimidade democrática

É uma velha questão, sempre sem resposta concludente e definitiva: “Há mais corrupção em democracia ou em ditadura?”. Como se imagina, as respostas implicam mais quem as dá e respectivas preferências ideológicas do que a verdade dos factos. É perfeitamente possível que uma determinada ditadura tenha menos corrupção do que uma democracia. Ou o contrário. O problema é que a diferença essencial está na liberdade e nos direitos humanos, não na moralidade pública.

Mas também é verdade que a corrupção interessa aos cidadãos não apenas por uma questão moral, mas também por razões políticas essenciais. Na verdade, a corrupção gera desigualdade de direitos e condição, cria privilégios, prejudica o mérito e a competência, estimula o crime e o comportamento condenável. E distorce alguns dos mais importantes princípios do Estado de Direito. É de tal maneira consensual a condenação da corrupção que raras são as pessoas que se atrevem a defendê-la, a admitir a sua prática ou a considerá-la inofensiva. Os que a aceitam como inevitável esforçam-se por não tornar públicas as suas opiniões. E mesmo os que a praticam a condenam.

A este propósito, Portugal vive tempos difíceis. Há muitos casos conhecidos, uns em processo de investigação ou julgamento, outros em paz e sossego, em plena impunidade. Há, além disso, um número inédito e excessivo de políticos, dirigentes da administração pública, empresários e traficantes de influências em averiguação, sob investigação, em fase de instrução, em pleno julgamento, já condenados ou detidos. Para uns, tudo isto é bom sinal, quer dizer que a justiça funciona. Para outros, é mau sinal, a política portuguesa actual e a economia estão infestadas de corrupção.

Ainda há quem pense que a corrupção só se vence com muita autoridade, bastante polícia, juízes severos, grandes prisões e métodos expeditos de vigiar e julgar. Talvez seja verdade. E talvez não. O problema vem depois. Na verdade, com esses meios, pode diminuir-se a corrupção da democracia, mas poderá aumentar-se logo a seguir a corrupção das ditaduras. Entre as duas, venha o diabo e escolha. Talvez não sejam muito diferentes. Só que, com uma tenho democracia e com outra não tenho. Com democracia, sobra-me a esperança de poder ser livre e de combater a corrupção. Com a ditadura, fica-me o desespero de não ser livre e de não poder lutar contra a corrupção. Eis por que não custa afirmar que só com democracia se combate a corrupção. Sem liberdade, a corrupção transforma-se e disfarça-se. E a ditadura cria a sua própria corrupção. Como sempre na história.

O que faz com que o nosso país seja particularmente corrupto? As razões e as causas são muitas e variadas. A pobreza, com certeza. A pequenez da economia, a pouca riqueza, a miséria do património, a falta de recursos naturais, o parco produto nacional e a falta de capacidade criativa ajudam. A hegemonia católica e o mecanismo do perdão também. A ausência de reforma protestante sem dúvida. A centralização do Estado e o dirigismo de certeza. O analfabetismo e a falta de formação profissional sem dúvida. A ganância de empresários e de funcionários dá o seu contributo. A velha tradição de pilhagem formou jeito e gentes. Algum colonialismo também. O incentivo ao expediente e ao improviso foi outra constante da história. A justiça ineficaz, as leis insuficientes e os castigos brandos ajudam. Serão precisos manuais e tratados para descrever as causas, as influências e a evolução. Mas não duvidemos: é enorme a corrupção. E saber que talvez haja, segundo as classificações usuais, países mais corruptos do que o nosso, não ajuda nem consola.

Difícil é pensar o grau de cumplicidade social ou perceber a influência do ambiente e dos costumes. Na verdade, pode admitir-se que a sociedade portuguesa é conivente ou pelo menos complacente com a corrupção. Muita gente protesta e muitos reclamam contra “eles” (que são todos iguais, uns aldrabões ou trafulhas…), mas nem sempre se passa à acção concreta e ao combate. Nem sequer à denúncia. Não faltam justicialistas e declarações solenes sobre a “limpeza” necessária e as “vassouradas” que se impõem. Mas é diminuta a iniciativa e ineficiente a acção.

Há de facto falta de vontade de combater a corrupção. Há áreas em que a corrupção moral é aceite e legal, não sendo pois considerada corrupção. A população é muito frenética a considerar os corruptos, mas tolerante com grande parte dos mecanismos que favorecem a corrupção. Os portugueses são complacentes com a corrupção (mesmo quando a não praticam). Muitos dos nossos habitantes corrompem e são beneficiados pela corrupção, o que consideram uma condição de sobrevivência, uma necessidade ou até um mérito talentoso. É como no futebol e na política: o que os nossos fazem tem sempre perdão, os outros nunca.

 

O pior da corrupção é a convicção de que a legitimidade democrática, a que se obtém através do voto, dá direito a tudo! Ora, a legitimidade, sendo excelente, não dá para tudo! Não dá para nomear amigos, familiares e membros do partido. Para decidir a favor dos seus eleitores e dos seus clientes. Para preferir em concurso ou em adjudicação directa os seus correligionários. Para censurar ou calar os seus adversários. Para dominar os meios de informação. Para prejudicar os rivais e as minorias. Para liquidar os vencidos em eleições. A legitimidade democrática não confere direito de vida e de morte sobre a população, os adversários e as instituições. A legitimidade tem limites, como sejam a moral, o Estado de direito, as minorias  e as instituições.

Nomeações de correligionários e camaradas, escolhas de familiares e amigos, autorizações discricionárias, adjudicações directas, favores especiais concedidos a autarquias amigas, preenchimento de cargos e estruturas por intermédio da “confiança política”, recurso a esta e à filiação partidária para designações e nomeações são fenómenos que muitos consideram necessários e inerentes à legitimidade democrática. “Vamos nomear os nossos…!”, é a ideia dominante em muitos partidos e aceite por muita gente. Como é também o eufemismo mais descarado ou a liturgia mais envergonhada.

Como causa da corrupção, a legitimidade democrática tem exemplos. E antepassados. Também o nacionalismo, a aristocracia, o Estado, a Igreja, a classe ou o partido foram ou são desculpa e pretexto para favores, cunhas, nomeações e nepotismo. Por isso, é essencial a independência da Justiça, desde que esta se distancie das doutrinas políticas.

Público, 4.10.2020