Vão chegar a Portugal, vindas da União Europeia, as dezenas de milhares de milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (que designação tão estúpida!), também intitulado “bazuca” (epíteto não menos estúpido). É, para todos os efeitos, uma boa notícia e poderá ser um bom contributo para o desenvolvimento económico e social e para a democracia portuguesa.
As reacções habituais dizem tudo sobre os seus autores. Milagre! É a salvação de Portugal. Vai tudo para os trafulhas! Agora é que vai ser corrupção. Ninguém controla com honestidade e independência. Vai ser tudo gasto no curto prazo. Quem vai ficar a ganhar são os milionários habituais. Os partidos no poder vão ser os principais beneficiários. É uma extraordinária prova de solidariedade europeia. É muito mais do que o Plano Marshall. É o que a Europa deve a Portugal. Há recursos para relançar o crescimento e fortalecer o Estado Social. É mais uma solução de facilidade que alivia os portugueses, mas que também os ajuda a fazer menos pela vida.
É tudo um pouco verdade. Tanto os críticos como os entusiastas têm carradas de razão. Mas nenhuns têm só ou toda a razão.
Verdade é que nos piores momentos das últimas décadas, nos maiores apertos ou para pagar as mais desatinadas loucuras, houve sempre recursos extraordinários que ajudaram milhões de cidadãos a sobreviver e a salvar a democracia. Não há dúvidas que o essencial foi feito pelos portugueses, trabalhadores e empresários, agricultores e técnicos, militares e civis, todos eles eleitores: é seguramente deles o principal contributo para garantir as liberdades e algum equilíbrio do sistema social. Foram eles que fizeram a democracia e são eles que a têm mantido.
Mas, com que meios? Esse é o aspecto mais curioso. Os Portugueses não conseguiram produzir mais do que consumiram. Nem sequer tanto quanto gastaram. Nem investir o que era necessário. Tiveram de se endividar, já sabíamos. Mas, ano após ano, foi possível segurar as pontas soltas, estancar hemorragias iminentes e evitar bancarrotas prováveis. Houve o necessário para distribuir um mínimo indispensável à paz. Foi possível guardar um pacote para alimentar a política, a administração pública, o serviço de saúde e de educação, a segurança social e as pensões cujo número nunca cessou de se alargar e com o que se aguentou a democracia sem estremeções excessivos e perigosos. Foi possível, através dos mecanismos indesejáveis e imprevisíveis, sossegar os mais nervosos e contentar os mais ambiciosos, assim como pagar a demagogia e o desperdício.
Foi necessário pagar a revolução, a contra-revolução e a consolidação da democracia, assim como uma nova segurança social sem contribuições prévias suficientes. Foi necessário cobrir os défices externos, a produção insuficiente e o Estado social sem receitas. Foi necessário alimentar os circuitos de economia paralela e de empresas marginais. Foi necessário encontrar recursos para acalmar empresários descontentes, trabalhadores com altas expectativas e funcionários atordoados ou ambiciosos. Foi preciso alimentar os desvios de fortunas para offshore de conveniência e ajudar ministros de vários governos a enriquecer depressa.
Em poucas palavras, foi necessário manter a paz, aguentar as faltas e cumprir os mínimos, sem o que não haveria paz social nem democracia partidária. Até os revolucionários diletantes, os teóricos radicais marginais, as máfias, os capitalistas sem escrúpulos, os contrabandistas e os traficantes de influências tiveram de ser “contentados”, “cuidados” ou “tratados”, sem o que se entregariam a actividades ilícitas, conspirações políticas e actos de terrorismo ou de sabotagem.
Tudo isto custou muito dinheiro. Que foi distribuído de várias maneiras: dinheiro vivo, pensões, aumentos salariais, saúde e educação, subsídios para a habitação, rendimento mínimo, fomento da exportação, concursos públicos para obras úteis e inúteis, adjudicações directas para parcerias público privadas, bolsas de estudo e privilégios do funcionalismo público. Custou muito caro e não foi tudo graças ao esforço, ao trabalho e ao investimento dos portugueses. O crédito e o endividamento pagaram muito. Mas mesmo estes e os respectivos juros tiveram de ser pagos e reembolsados. Com que recursos se pagou tudo isto?
Em primeiro lugar, as reservas de ouro e divisas do anterior regime. Ajudaram a revolução. Financiaram o desperdício e a demagogia. Pagaram centenas de milhares de novos funcionários. Alimentaram o sistema democrático. Evitaram, em cima do risco da catástrofe, a ruína e a bancarrota.
Depois, as nacionalizações e as ocupações da banca, de empresas, de propriedades agrícolas, de edifícios e de habitações, tudo sem indemnizações. Fez-se o que as revoluções fazem, justa ou injustamente: o Estado e os revolucionários foram buscar os recursos onde eles estavam. Destruíram-se os grupos económicos portugueses e expropriaram-se os ricos, mas arranjaram-se recursos para manter viva uma base económica de produção e emprego. E um pouco de democracia.
Há ainda que contar as receitas das privatizações e das reprivatizações, muitas delas precedidas de expropriações e nacionalizações efectuadas sem indemnização prévia. O Estado democrático e o sistema político encontraram aqui recursos importantes para aguentar uma década e manter a democracia. Venderam-se, a privados e a Estados estrangeiros, as melhores empresas nacionais.
Finalmente, outro contributo excepcional é o dos fundos europeus nas suas várias remessas, desde os tempos da ajuda de pré-adesão, passando pelos famosos Fundo Social Europeu, PEDIP e PRODEP, chegando aos programas de coesão ou 2020 e agora à recuperação e resiliência. Foram muitas, muitas, mesmo muitas dezenas de milhares de milhões de euros, não produzidos pelos portugueses, nem trabalhadores, nem empresários, nem políticos.
Foram ajudas e apoios irrepetíveis. Por entre enormes dificuldades, Portugal democrático e os portugueses mantém-se graças a receitas extraordinárias e a fundos excepcionais. Alguns do passado, outros do exterior. E muitos do futuro, por via do endividamento e das parcerias público privadas. Não é bom sinal continuar a esperar pelos recursos milagrosos e não cuidar da riqueza que se produz ou da poupança que se estimula. Não se pode viver sempre ligado ao ventilador ou ao milagre. Muito menos à espera de solidariedade. Viver do alheio, do crédito e da dádiva não é um bom programa de vida.
Público, 11.10.2020
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