sábado, 30 de janeiro de 2021

Grande Angular - Corrigir erros, conhecer diferenças

 Foi um erro, fruto da demagogia, não ter considerado o Chefe de Estado, o Presidente do Parlamento e o Primeiro-ministro como entidades ou personalidades a serem prioritariamente vacinadas. Foi também erro, algures entre a estupidez e o disparate, corrigir aquele com outro erro, alargando a muitas centenas o número de “políticos” a vacinar com prioridade. Como é um erro deixar na impunidade uns autarcas e uns funcionários malandros que se vacinaram ilicitamente.

No que toca à eficácia da vacinação, a União Europeia começou bem o processo de cooperação e acabou por falhar quando chegou à prática. A União está pior do que a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, Israel e outros. Será que chegaremos um dia a perceber porquê? Como se não bastasse, Portugal é um dos países em pior posição na União Europeia. Depois do “milagre português”, chegou evidentemente o desespero. Saberemos um dia porquê?

Foi obviamente um erro não criar hospitais exclusivamente destinados ao COVID. Como foi um erro não reservar hospitais para todas as doenças menos o COVID. A separação poderia ter evitado muitos dos problemas de engarrafamento e eficácia. E de humanidade, com certeza. Saberemos um dia por que foram cometidos estes erros? E por que não foram corrigidos a tempo?

Foi um erro separar os profissionais de saúde públicos e os privados. Por que demorou tempo a corrigir? Por que não se corrigiu ainda tudo? Por que se mantém esta separação entre profissionais dos sistemas públicos e privados? Por que não se pensa que os doentes são os mesmos, seres humanos que não merecem ser separados entre públicos e privados? Alguém fará um dia autocrítica? Alguém tentará explicar como foi possível?

Foi um erro separar instituições educativas privadas e públicas. Foi um erro proibir os docentes de contactar os alunos, de conversar com eles e de levar a cabo iniciativas pelas redes sociais. Foi um erro clamoroso interromper o ensino à distância. Por que demorou tanto tempo a corrigir? Será que saberemos um dia porquê?

É um erro incompreensível as autoridades sanitárias deixarem correr os boatos e os “palpites” relativamente às máscaras. Há muito que lhes compete serem assertivas quanto às qualidades de cada marca. Por que razão é este o seu comportamento? Ignorância? Cumplicidade? Saberemos um dia as razões para tal comportamento impróprio?

Foi um erro grave não ter planeado, há muitos meses, uma organização capaz de dar conta das chegadas de ambulâncias aos hospitais. É cada vez mais evidente que a indignidade das filas de espera, durante dezenas de horas, em frente dos hospitais (sobretudo do Santa Maria, em Lisboa), resulta de mau planeamento e de incapacidade de organização.

Tão bom quanto corrigir erros é estudar e perceber o que se passa. É natural que se ouçam histórias, corram boatos e se tenham certezas sobre o que há a fazer. Em períodos de crise como este, a rondar o drama nacional e social, surpreendente seria o contrário, que se falasse sempre com propriedade e racionalidade.

Uma das questões mais abordadas é a da desigualdade social como causa e efeito da doença. Como toda a gente quer ter ou quer que se saiba que tem compaixão, é fácil condenar a desigualdade. Assim, as maiores vítimas da pandemia seriam os velhos, os deficientes, os internados em lares, os pobres, os sem abrigo, os toxicodependentes, os imigrantes ilegais, os habitantes dos bairros degradados, os inquilinos dos bairros sociais e os residentes em bairros étnicos comunitários. Além destes, grupos mais largos estariam igualmente incluídos no número de pessoas mais expostas à infecção, com mais dificuldades de tratamento e menor acesso às instituições: operários fabris, empregados de comércio, encarregados de limpeza, funcionários de transportes públicos e outras profissões.

É também geralmente aceite que os mais ricos e os que usufruem de profissões e cargos com mais poder sofrem menos os efeitos da doença e têm acesso a melhores instituições. Estariam nessa situação, com menores possibilidades de serem contaminados, os que têm casas maiores, quem possui um carro para cada membro da família, quem não usa meios de transporte colectivos, quem pode faltar dias ou semanas ao trabalho e quem tem meios para tratar da roupa e das compras sem se misturar com as pessoas em geral… 

Ninguém duvida ainda de que é favoravelmente tratado e atendido quem conhece bons médicos, quem pode recorrer a hospitais mais bem equipados, quem é utente de instituições sem lotação esgotada e quem frequenta hospitais sob menor pressão.

O alojamento é igualmente causa de desigualdade social perante a pandemia. Está favorecido quem vive em bairros saudáveis, com espaços públicos arejados, com esplanadas abertas e recreios espaçosos; quem não frequenta supermercados, muito menos filas de espera. Sofre evidentemente quem vive em bairros sociais sobrelotados, em comunidades promíscuas e em bairros degradados. Diz-se que há mais doença em meios segregados, em comunidades ciganas, negras ou asiáticas, em bairros operários ou de pescadores...

Consta que os ricos perdem facilmente a cabeça com festas. Parece que as celebridades comemoram aniversários e juntam-se nas quintas e condomínios. Mas é mais plausível que os que mais sofrem são os que têm de trabalhar nas fábricas, quem usa os transportes públicos, quem frequenta centros comerciais, quem tem casas pequenas, quem não tem ajuda para tratar dos velhos, quem tem de ir aos lares tratar dos parentes e quem tem pouca informação.

Em poucas palavras. A pandemia bate mais nos mais pobres. A doença mata mais os mais fracos. O COVID infecta mais quem menos tem: fortuna, poder, conhecimentos, nome, estudos, metros quadrados…

Como se sabe isso? Por dedução. Certo. Mas seria bom estudar. Quem realmente corre mais riscos? Quem é mais infectado? Quem tem acesso menos pronto e rápido? Quem morre mais? Ricos? Pobres? Remediados? Classe média? Citadinos? Rurais? Residentes nas periferias e nos bairros étnicos? Famílias grandes ou pequenas? Gente com ou sem estudos? É o que importa saber com o rigor possível, sem fantasias. É trabalho para a Administração Pública, a Academia e o jornalismo. 

É muito difícil estudar estas realidades. Em muitos casos, terá de se estudar por vias indirectas e aproximações. Mas tem de se fazer. É necessário tratar de todos, sem olhar a quem. É preciso salvar vidas, sem conhecer o nome. Mas também é bom saber o que se passa, para poder agir e prevenir.

Público, 30.1.2021

sábado, 23 de janeiro de 2021

Grande Angular - Paradoxos e disparates

O boletim de voto desta eleição presidencial vai transformar-se numa raridade documental, uma peça única na história política do mundo. Quase vale a pena ir buscar o boletim, não votar e trazer para casa tão singular espécie! O dito objecto tem oito nomes, oito fotografias e apenas sete candidatos! Como de costume, a logística, o procedimento administrativo e a regra jurídica levaram a melhor sobre a inteligência, a clareza e a sensatez. Houve tempo para rever, mas não se corrigiu. Sabia-se que estava estragado, mas não se reparou. Preferiu-se enganar, desnortear eleitores desatentos e encenar uma comédia bufa para salvar uma honra burocrática. Se houvesse um grupo de advogados atrevidos, teríamos talvez um processo de impugnação destas eleições! Felizmente, não vivemos na América…

Mais uma vez, um “dia de reflexão”! Novamente, dois dias em que não se pode falar de política, escrever sobre politica ou conversar publicamente sobre política. É talvez o dia mais político na vida de uma democracia, o dia de eleições! É seguramente o dia de mais intensas discussões políticas, de expressão de mais sólidos argumentos e de maior necessidade de informação e confronto, o dia em que vamos às urnas! Pois bem, em nome de princípios obsoletos, de regras despóticas, de medos covardes e de receios infantis, é nesses dois dias que não se pode falar, discutir, escrever, ler, ouvir e ver política e políticos! Nem realizar ou publicar sondagens, evidentemente. Não há maior atestado de menoridade passado aos portugueses.

A expressão “dia de reflexão” é duplamente ofensiva e idiota. Por um lado, pressupõe que todos os outros dias não são de reflexão! Por outro, implica que a reflexão dispensa conversa e leitura, exige mesmo silêncio e olhos fechados.

Uma tentativa de esclarecimento, junto da Comissão Nacional de Eleições, não resultou. Tratava-se de saber se a reflexão, o silêncio e a reserva se aplicavam apenas a matérias “presidenciais” ou se envolvia toda a política. Era necessário saber se os partidos com candidatos presidenciais tinham um tratamento diferente dos partidos sem candidatos. E se todas as questões políticas de que os candidatos falaram durante a campanha estavam abrangidas pela lei do silêncio… Ninguém aclarou tão fundadas dúvidas.

A campanha eleitoral foi miserável. De conteúdo, de forma, de assistência, de clareza de argumentos, de confrontos de ideias e de personalidades… Todos os assuntos actuais e urgentes (pandemia, educação, saúde e emprego, por exemplo) estavam fora da ordem do dia e dos debates, a não ser por evidente ardil demagógico. Ao mesmo tempo, a maior parte dos candidatos falavam justamente disso, das matérias que não dependem do Chefe de Estado. Foram reuniões macambúzias de candidatos taciturnos!

Rituais, entusiasmo, vivacidade, liberdade de movimentos, acesso aos meios digitais, facilidade de acompanhamento pela NET e interesse por uma campanha deste género: em qualquer destes tópicos, a campanha foi um desastre. Não serviu para nada. As hipóteses de tratar destas dificuldades eram todas, como se deve, proibidas. Alterar o dia das eleições? Não se pode, nem por uma questão de vida ou de morte. Permitir que os cidadãos votem durante três ou quatro dias? Nem pensar, é ilegal. Alterar a lei das eleições? Só depois de alterar a Constituição. Rever a Constituição, mesmo por causa de uma emergência nacional? Proibido! Recorrer a métodos excepcionais por motivos excepcionais? Interdito pela lei. Tudo previsto na lei, tudo previsto na Constituição, tudo preferivelmente proibido, tudo preparado pela melhor casta de portugueses, a dos advogados que se ocupam de política! Feliz o país que tão bons juristas tem! 

A votação antecipada ou em mobilidade foi mal organizada. Foram filas de espera de horas, ao frio e ao ar livre. Houve poucas mesas de voto, poucas salas, poucos locais e poucos dias de eleição, um só, neste caso. Houve muita gente que se deslocou e, depois de espera, se retirou.

A votação por correspondência, prevista há anos, experimentada em dezenas de países, não foi suficientemente utilizada, nem devidamente preparada. Há décadas em estudo, o voto digital, presencial ou não, continua a ser pouco ou nada utilizado.

Parece que apenas se verificou progresso e eficácia nalguns casos de voto a domicílio de pessoas infectadas devidamente registadas e previamente anunciadas. Salve!

Em reflexo de populismo barato e idiota, o Chefe de Estado, o Primeiro-ministro e o Presidente do Parlamento não foram vacinados, nem sequer considerados prioritários. Num país onde reina a cunha e o privilégio, falta coragem, por sentimento de culpa, para tomar decisões acertadas que impliquem diferença e distinção.

Dois autarcas, um de Reguengos de Monsaraz e outro de Arcos de Valdevez, arranjaram maneira de serem vacinados ao arrepio de todos os critérios, prioridades e regras! Invocaram, um, a sua qualidade de presidente de uma fundação, outro, uma sobra de vacinas! Os excessos provocam sempre as excepções ilícitas.

De acordo com o Ministério da Educação, os professores das escolas públicas estão proibidos de manter em aberto seminários, aulas por ZOOM, grupos de diálogo sobre assuntos escolares e discussões sobre matérias escolares.

Segundo o Ministério da Educação, os colégios privados estão proibidos de manter aulas, mesmo informais, pela INTERNET. Ou de organizar formas improvisadas de telescola da exclusiva responsabilidade de cada escola. Tal como os professores estão proibidos de manter e desenvolver, pela NET ou por telemóvel, conversas com os seus alunos, organizar actualizações, dar explicações e realizar debates.

De acordo com o Ministério da Saúde, os médicos, enfermeiros e outros profissionais dos hospitais e clínicas privadas não foram nem serão tratados e vacinados de modo igual aos médicos, enfermeiros e profissionais dos hospitais públicos.

Ao fim de um mês de vacinação, os centros de saúde não estão prevenidos nem ainda sabem o que os espera, não começaram a preparar-se para as tarefas mais difíceis, dos idosos, dos doentes prioritários e dos casos especiais. Quem se dirige a um Centro de Saúde fica sem resposta. Quem deseja saber em que grau de prioridade ou em que escala se encontra, fica ignorante. Os funcionários dos Centros de Saúde estão dependentes de uma estrutura muito centralizada, que se compreende, mas burocrática, o que não se aceita. Silenciosos, recatados, seguramente envergonhados, médicos, enfermeiros e funcionários dos Centros de Saúde respondem, a quem se lhes dirige: “Ainda não sabemos”.

Público, 23.1.2021

sábado, 16 de janeiro de 2021

Grande Angular - Cidadão do mundo não é cidadão

São múltiplos os elogios feitos à excelência da cidadania global. A luta contra a pandemia reforça as exigências de colaboração internacional. As alterações climáticas constituem uma ameaça global que obriga, sem dúvida, a uma resposta global. Parece que as migrações de multidões de trabalhadores, de fugidos e de perseguidos, também necessitam de respostas coordenadas entre governos. Novos surtos de miséria e fome, sobretudo em África, pedem por acção global. A crise económica mundial, em resultado da pandemia, impõe planos conjuntos, como é o caso da Europa, sem o que tão cedo não se encontrarão soluções pacíficas. O desmesurado império das empresas de redes sociais, de petróleos, de serviços e de comunicação força a uma cooperação entre povos, de modo a definir respostas globais a ameaças globais. O colossal poderio das grandes fortunas e das instituições que condicionam as finanças do mundo não pode ser regulado a não ser com sistemas internacionais, talvez globais. Como global deve ser o esforço de combate às cada vez maiores empresas e rackets dos armamentos, da droga e outras actividades ilegais. Finalmente, para travar e derrotar as mais terríveis formas de terrorismo contemporâneo, parece ser necessário recorrer à cooperação internacional.

Novas liberdades e novos direitos fazem luz sobre novos problemas para os quais parece não haver resposta cabal nos planos tradicionais das regiões, das autarquias e dos Estados. A livre escolha de género coloca em crise as ideias estabelecidas nos Estados. A total liberdade de deslocação contraria frontalmente as determinações soberanas dos Estados. A ideia de que existe uma cidadania supra-nacional, a começar por uma cidadania europeia, tem feito caminho e já revelou as insuficiências das eleições nacionais, da responsabilidade política e da prestação de contas aos parlamentos.

A globalização pode oferecer numerosas vantagens. A acção concertada dos Estados e dos povos pode fornecer meios de combate às mais temíveis ameaças globais. Mas a verdade é que os direitos fundamentais dos cidadãos, as liberdades, a segurança pessoal, a justiça e a solidariedade na doença e na velhice pertencem ao quadro local, regional e nacional. A autonomia pessoal, a independência e os direitos de escolha política dependem dos quadros autárquicos e nacionais, conforme os conhecemos.

Os homens e as mulheres procuram bem-estar, segurança e liberdade nos seus grupos de referência, de pertença e de identidade. Há dois mil anos que se conhece a reflexão dos filósofos sobre a tendência gregária das pessoas. Família, grupo, associação, comunidade, tribo, culto, país, Estado e nação… A história da humanidade é, em parte, a história destes agrupamentos e das suas glórias. Como também, claro, das suas derrotas e dos seus desastres. Guerras e ditaduras, conquista e exploração, fomes e perseguições estão no rol da história dos grupos e das identidades. Mas a actual corrente contra o tribalismo e o nacionalismo é a mais ilusória das modas de pensamento. Nunca as liberdades e os direitos dos cidadãos foram defendidos por entidades globais ou abstractas instituições supranacionais. Sempre na história a justiça foi feita e defendida por instituições com identidade autárquica ou nacional.

O essencial da cidadania reside no vínculo de direitos e deveres que ligam cada pessoa à sociedade e à cidade, à região e ao Estado. Não há direitos de cidadania com a globalização. Se quero defender a minha vida, a minha segurança, a minha liberdade e os meus direitos, é à justiça do meu país que me dirijo. É aos meus representantes na autarquia ou no Estado que vou pedir ajuda. São eles que me defendem em caso de necessidade e doença, de agressão ou opressão.

É verdade que o pior do nacionalismo, da exploração social ou racial e da guerra ou da perseguição tem muitas vezes como quadro os Estados e as tribos. Foi sempre assim, na história. Nada é perfeito ou virtuoso. Mas uma coisa é certa: nunca uma entidade global defendeu a justiça e as liberdades dos cidadãos. As Nações Unidas dão muitas vezes ajuda, contribuem para a colecção de recursos. Sim. Com certeza. Mas, em última análise, junto dos cidadãos, nas aldeias e nas cidades, nas empresas e nas instituições, são os Estados nacionais que assumem o papel decisivo.

Além das convenções políticas, são os Estados nacionais, as autarquias, as formas de agrupamento humano e as famílias que representam a herança cultural e enriquecem as formas de solidariedade. Eu recorro a quem conheço e quem partilha a minha história: em poucas palavras, a quem reconheço e me reconhece.

É perigosa a ideia de que se pode ser cidadão do mundo, moda recente que serve para as servidões e a uniformidade. Aí começa o totalitarismo. É ameaçadora a ideia de que as fronteiras, os Estados, as nações, as línguas e as identidades são quinquilharias ou trapos. Essas ideias fazem parte do arsenal do despotismo. São instrumentos de opressão dos chefes sobre os cidadãos. Dos patrões sobre os trabalhadores. Dos sacerdotes sobre os crentes. De uma etnia sobre outra.

Quem se quer defender e proteger da injustiça e da violência recorre às instituições democráticas, representativas e reconhecidas. Os homens e as mulheres do nosso tempo e de sempre procuram segurança, solidariedade e identidade junto de quem reconhecem ou junto de aqueles a quem conferiram direitos e representação.

Uma das mais sérias causas da crise da Europa (e do renascer dos reflexos do nacionalismo) reside justamente na ideia, muito em voga, de que a virtude está na cidadania global, naqueles que se consideram cidadãos do mundo. Não há pior engano. A liberdade e a democracia têm geografia. E alimentam as diferenças e as livres escolhas. Quem garante melhor a minha liberdade? A União ou o Estado português? Quem protege a minha liberdade? A União ou as polícias, os magistrados e os tribunais portugueses? Por piores que sejam as minhas opiniões sobre as instituições nacionais, estas são sempre, para defender os meus direitos, melhores do que as instâncias tecnocráticas, apátridas e virtuosas. Com certeza que as Nações Unidas, a União Europeia, a NATO e outras instâncias internacionais servem os propósitos comuns de grande parte da humanidade. São muitas vezes indispensáveis. Mas são os Estados, os povos e as nações que as utilizam e lhes dão vida. 

            Cidadão do mundo não é cidadão de parte alguma.

Público, 16.1.2021

sábado, 9 de janeiro de 2021

Grande Angular - Perceber

Foi uma semana inesperada e de consequências desconhecidas. Foi um dia intenso de emoções. Ainda não se sabe muito bem como reagirão, no futuro, a opinião e os cidadãos. Aos acontecimentos inéditos correspondem sempre sentimentos singulares. O Capitólio tomado de assalto, mal protegido e defendido com balas reais, é imagem inesquecível. Avistar uns labregos desalinhados nos gabinetes dos mais altos responsáveis políticos parlamentares, assim como hordas de selvagens a tomar conta das salas de sessões, deixa recordações para o resto da vida. Ver a polícia incapaz de defender a instituição, sem saber como reagir, recorrer a armas verdadeiras com balas a sério, cria uma sensação de vulnerabilidade insólita. Se a mais pujante democracia do mundo revela esta fragilidade, que pensar de todos os outros parlamentos e de todas as outras instituições que asseguram a democracia por esse mundo fora? Como sentir força e segurança, num tempo em que a democracia perde espaço ou recua na maior parte dos continentes, se soubermos que os outros são ainda mais frágeis e inseguros?

Como perceber o que se passou? Como compreender as circunstâncias e os factos ocorridos esta semana na capital do país mais rico e poderoso do mundo? O mais fácil é concluir que a tentativa de “golpe” falhou. E afirmar, com vaidade e sentimento de superioridade, que o presidente Trump é um fascista, autoritário e narcisista como raramente se vê na história política, eventualmente comparável a Nero, Calígula, Hitler ou Gaddafi. Que é um manipulador demagogo, grosseiro e exibicionista de raro calibre. Que a personagem literária mais parecida com ele será talvez o Rei Ubu. Que se trata do mais evidente exemplo de capitalista, especulador, adepto da supremacia branca, racista, xenófobo e machista. Que agiu sempre na defesa dos seus interesses e da sua fortuna, da sua estranha família, dos seus obedientes amigos e de todos quantos se dispusessem a festejá-lo. Que tocou a corda sensível de tantos americanos com saudades da sua hegemonia, de tantos machistas, racistas e xenófobos, de tantos capitalistas que detestam os impostos e de tantos americanos cansados de perder ou não ganhar no Vietname, no Líbano, no Irão, no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Síria ou na Venezuela. Tudo isto poder ser verdade, mas não chega para compreender.

Não impressiona o facto de ver que muitos ricos desejem ficar mais ricos, que muitos brancos queiram ser mais brancos, que muitos machistas não desistam de o ser, que os autoritários tudo façam para continuar a sê-lo e que muitos fanáticos das armas ambicionem ter ainda mais armas. Também não é novidade ver que há gente que despreza os pobres, esquece os velhos, detesta os doentes, é indiferente aos desempregados, repele os deficientes, condena os sem-abrigo, odeia as mulheres e abomina as minorias. Nada disso basta para perceber Trump. Nada disso responde às verdadeiras e incómodas perguntas. Como foi possível que um personagem como este tivesse sido eleito presidente dos Estados Unidos? Como se compreende que uma das diplomacias mais competentes, a defesa mais eficiente, um dos serviços de informação mais capazes, a administração fiscal mais poderosa e o sistema universitário mais avançado do mundo tenham permitido, suportado, apoiado, obedecido e convivido com esta figura extravagante?

Como foi possível? Como compreender que dezenas e dezenas de milhões de pessoas tenham eleito este senhor, tenham votado neste homem e na sua política, apoiem a sua acção, considerem (como ele próprio diz) que foi o melhor presidente da América, aceitem que foi a mais gloriosa presidência da história e estivessem dispostos a renovar o mandato, o que quase conseguiram? São todos estúpidos? São todos capitalistas paranóicos e narcisistas? São todos racistas, machistas e xenófobos? Se a resposta for afirmativa, temos um problema muito sério: são perto de cem milhões, foram maioria, são quase maioria, podem voltar a ser, fazem parte da democracia americana e mundial. Se a resposta for negativa, o que é mais provável, então temos piores problemas. Como foi possível? E como se pode evitar que seja novamente possível?

Esse é o verdadeiro problema. Gente como esta, programas como este e políticas como esta só são possíveis, em democracia, porque os democratas deixam, porque a democracia tem tantos ou mais defeitos, porque os democratas e as esquerdas se transformam em figuras detestáveis de arrogância e suficiência. Porque os democratas decretam e protegem os seus privilégios e nunca se esquecem de defender os seus.

Trump e outros como ele são possíveis porque os democratas-cristãos, os socialistas e os sociais-democratas estão disponíveis para fechar o regime político, diminuir as liberdades públicas, defender os funcionários de Estado, proteger as minorias amigas, aumentar infinitamente os impostos, coarctar a iniciativa privada, oprimir a liberdade económica e empresarial e desprezar os reflexos de grande parte da população relativamente a problemas de cultura, religião e comportamento. Não! Não são as virtudes da democracia e das esquerdas e dos social-democratas e dos democratas-cristãos que fazem os Trump e os seus piores regimes. São os seus defeitos, os seus erros e a sua crescente miopia.

As esquerdas democráticas que não se libertam das amarras estalinistas. Os democratas que permitem a corrupção. Os políticos que protegem os políticos e seus funcionários. A democracia que defende os privilegiados e permite a desigualdade. É incapaz de realizar a justiça e deixa correr a corrupção. Protege os amigos e persegue os adversários. Ataca a educação privada, a fim de evitar a comparação. Cerca a saúde privada, por que receia o paralelismo. Aumenta sistematicamente os impostos. Acarinha a função pública, em detrimento dos trabalhadores das empresas privadas. Deixa correr os off shores na convicção de que os seus beneficiários apoiarão um dia a democracia. Privilegia sempre os negócios escuros, os capitalistas instantâneos, os especuladores, os vendedores de empresas e os compradores de favores. Recusa e combate a igualdade de direitos e deveres entre público e privado, nas leis laborais, na educação e na saúde.

Não são os democratas que fazem os fascistas, os comunistas, os terroristas, os arrogantes, os populistas… Mas são os seus erros, os seus defeitos e os seus vícios que inevitavelmente conduzem à destruição da democracia. Como se sabe há muito, esta cai por dentro, não por via de assalto exterior.

Trump faz parte do mundo que nós criámos. Fomos nós que o fizemos.

Público, 9.1.2021

sábado, 2 de janeiro de 2021

Grande Angular - Metamorfoses

Adormecer português e acordar europeu! Apagar a luz como cidadão e abrir as janelas como presidente! Acabar o ano com uma grande Europa e começar o novo com uma mais pequena! Parecem pequenas mudanças, de forma ou de símbolo. Mas são sinais de profundas transformações em curso.

A pandemia ocupa o mundo, é natural. O novo presidente americano prepara-se para chamar as atenções, é normal. O presidente Trump arranja-se cuidadosamente para sair com inesperado ruído, já sabemos. Sem sucessor, a principal líder europeia, Ângela Merkel, faz as suas malas e deixa uma União sem centro de gravidade ou sem cabeça, como é conhecido. Os países mais pobres do mundo vivem aflitos sem serviços de saúde, com poucos médicos e sem dinheiro para comprar e distribuir vacinas, não é novidade. A democracia a recuar em quase todos os continentes, é sabido. A China a crescer, é notório. Tão importantes, mas menos visíveis, são os movimentos tectónicos que se pressentem na Europa. Assim como as transformações na sociedade portuguesa, quase imperceptíveis, que exigem atenção.

No meio disto, a nova presidência europeia, a assumir por Portugal desde hoje, mais parece fait divers. Em certo sentido, é. As presidências da União são uma rotina. Boas, por serem rotina. Todos os países, quando chega a sua vez, querem ter agendas, elaborar dossiers, deixar a sua marca, criar plataformas, abrir debates, fazer reformas, projectar a Europa no mundo… É natural. É bom que assim seja. Mesmo quando é inútil. O que interessa a Portugal é que o país está lá, que se cumprem regras e que se tenta consolidar um passado recente. Ainda por cima, numa altura em que se descobriu que a Europa, depois de crescer, também podia diminuir. E que os europeus podiam levianamente despedir os ingleses, tal como estes eram capazes do enorme disparate de dispensar os europeus.

Três semanas antes de eleger o presidente português, os portugueses e os europeus receberam um novo presidente europeu. O sistema rotativo é muito interessante, pouco democrático e totalmente ineficaz. É de certa maneira um sinal de fraqueza da Europa. Esta nunca soube fazer da diversidade a sua força e o seu carácter. Em vez disso, procura instrumentos supletivos de unidade e liderança que não são mais do que remendos. O que não impede que, por vezes, atrás desta cenografia, se levem a cabo feitos maiores. A vacinação coincidente de todos os países europeus, após planeamento colectivo, fez mais pela União Europeia do que uma “presidência activa” ou uma dúzia de grandes reformas e debates.

A presidência portuguesa nada nos vai trazer de novo ou importante, a não ser isso mesmo, acontecer. A rotina é um dos grandes méritos da democracia. Das três presidências portuguesas que antecederam a actual sobraram uma “Estratégia de Lisboa”, um “Tratado de Lisboa”, duas cimeiras Europa África, uma reforma da PAC… Mas a verdade é que, com a excepção de alguns episódios desvairados com países menos rigorosos, de todas as presidências sobram sempre feitos, reformas e avanços. A “maquinaria europeia” está muito bem preparada para tratar das rotinas, o que inclui os dramas das lendárias negociações nocturnas e as conciliações de madrugada.

Os quatro presidentes portugueses da Europa foram, por esta ordem, Cavaco Silva, António Guterres, José Sócrates e agora António Costa. Os presidentes da República eram Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Cavaco Silva esqueceu-se de Mário Soares durante a primeira presidência. António Guterres marginalizou Jorge Sampaio na segunda. José Sócrates ignorou Cavaco Silva na terceira. Ainda não se sabe o que fará António Costa com Marcelo Rebelo de Sousa. São os mistérios do semipresidencialismo.

Muito mais importante do que estes episódios, cujo carácter imprescindível reside na sua rotina, é a mudança em curso na sociedade. Os países estão a ficar menos nacionais, mais cosmopolitas, menos europeus e mais mestiços. Toda a gente pensa isso, mas é difícil preparar instituições e regras. Há muitas décadas, quando o Governador do Congo se queixava da falta de franceses para desenvolver a colónia, o General De Gaulle retorquiu: “Meu Caro Governador, você é um Burguês! O futuro é mestiço!”. No caso europeu actual, a mestiçagem começa pelas nacionalidades europeias e espalha-se depois pelas africanas, mediterrânicas, árabes, turcas, indianas e outras. Estas misturas são explosivas, como já se percebeu. Tanto por causa das reacções dos brancos europeus e cristão, como devido aos comportamentos dos imigrantes e refugiados. Há xenofobia e racismo dos dois lados.

Mas essas não são as únicas ameaças. Outra tão importante como essas é a da geografia da liberdade. Até nova ordem, o regime democrático tem uma natureza territorial indelével. Não há soberania popular nem representantes, sem comunidades ou distritos eleitorais com base regional. Não há democracia nem parlamento sem eleitorados e sem limites geográficos. A ideia de que pode haver uma “democracia universal”, “mundial”, “global” ou “planetária” é infantil. Aliás, curiosamente, os grandes poderes globais e “galácticos” da ficção científica são sempre impérios e equiparados, ditaduras e regimes totalitários. A União Europeia, que já foi longe de mais, tem de rever as suas estruturas democráticas, os seus processos eleitorais, as suas comunidades locais e nacionais. Sem o que nunca conseguirá definir os contornos da sua democracia, nem estancar os impulsos nacionalistas.

Outra ameaça é a da destruição das bases culturais da democracia. Tanto a tradição como a mestiçagem exigem comunidades de cultura. Olhe-se bem para o mapa da democracia no mundo. É difícil encontrar exemplos de democracias sem uma qualquer tradição cultural, sem comunidade de herança e sem identidade histórica. O falhanço, talvez sem excepção, das tentativas de exportação da democracia deveria dar-nos ensinamentos para ajudar a tratar da Europa. Actualmente, o recuo da democracia no mundo deve-se muito à ausência de comunidade e de tradição, ao cosmopolitismo sem fronteiras nem identidade. Assim como à criação de poderes políticos desligados das instituições e das comunidades ou bases eleitorais. Os Estados da Oceânia e da Eurásia (G. Orwell), tal como os reinos dos Elóis e dos Morlocks (H. G. Wells), não têm bases eleitorais nem geografia. Os países europeus, se querem manter-se democráticos, não podem perder as suas.

Público, 2.1.2021