Foi um erro, fruto da demagogia, não ter considerado o Chefe de Estado, o Presidente do Parlamento e o Primeiro-ministro como entidades ou personalidades a serem prioritariamente vacinadas. Foi também erro, algures entre a estupidez e o disparate, corrigir aquele com outro erro, alargando a muitas centenas o número de “políticos” a vacinar com prioridade. Como é um erro deixar na impunidade uns autarcas e uns funcionários malandros que se vacinaram ilicitamente.
No que toca à eficácia da vacinação, a União Europeia começou bem o processo de cooperação e acabou por falhar quando chegou à prática. A União está pior do que a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, Israel e outros. Será que chegaremos um dia a perceber porquê? Como se não bastasse, Portugal é um dos países em pior posição na União Europeia. Depois do “milagre português”, chegou evidentemente o desespero. Saberemos um dia porquê?
Foi obviamente um erro não criar hospitais exclusivamente destinados ao COVID. Como foi um erro não reservar hospitais para todas as doenças menos o COVID. A separação poderia ter evitado muitos dos problemas de engarrafamento e eficácia. E de humanidade, com certeza. Saberemos um dia por que foram cometidos estes erros? E por que não foram corrigidos a tempo?
Foi um erro separar os profissionais de saúde públicos e os privados. Por que demorou tempo a corrigir? Por que não se corrigiu ainda tudo? Por que se mantém esta separação entre profissionais dos sistemas públicos e privados? Por que não se pensa que os doentes são os mesmos, seres humanos que não merecem ser separados entre públicos e privados? Alguém fará um dia autocrítica? Alguém tentará explicar como foi possível?
Foi um erro separar instituições educativas privadas e públicas. Foi um erro proibir os docentes de contactar os alunos, de conversar com eles e de levar a cabo iniciativas pelas redes sociais. Foi um erro clamoroso interromper o ensino à distância. Por que demorou tanto tempo a corrigir? Será que saberemos um dia porquê?
É um erro incompreensível as autoridades sanitárias deixarem correr os boatos e os “palpites” relativamente às máscaras. Há muito que lhes compete serem assertivas quanto às qualidades de cada marca. Por que razão é este o seu comportamento? Ignorância? Cumplicidade? Saberemos um dia as razões para tal comportamento impróprio?
Foi um erro grave não ter planeado, há muitos meses, uma organização capaz de dar conta das chegadas de ambulâncias aos hospitais. É cada vez mais evidente que a indignidade das filas de espera, durante dezenas de horas, em frente dos hospitais (sobretudo do Santa Maria, em Lisboa), resulta de mau planeamento e de incapacidade de organização.
Tão bom quanto corrigir erros é estudar e perceber o que se passa. É natural que se ouçam histórias, corram boatos e se tenham certezas sobre o que há a fazer. Em períodos de crise como este, a rondar o drama nacional e social, surpreendente seria o contrário, que se falasse sempre com propriedade e racionalidade.
Uma das questões mais abordadas é a da desigualdade social como causa e efeito da doença. Como toda a gente quer ter ou quer que se saiba que tem compaixão, é fácil condenar a desigualdade. Assim, as maiores vítimas da pandemia seriam os velhos, os deficientes, os internados em lares, os pobres, os sem abrigo, os toxicodependentes, os imigrantes ilegais, os habitantes dos bairros degradados, os inquilinos dos bairros sociais e os residentes em bairros étnicos comunitários. Além destes, grupos mais largos estariam igualmente incluídos no número de pessoas mais expostas à infecção, com mais dificuldades de tratamento e menor acesso às instituições: operários fabris, empregados de comércio, encarregados de limpeza, funcionários de transportes públicos e outras profissões.
É também geralmente aceite que os mais ricos e os que usufruem de profissões e cargos com mais poder sofrem menos os efeitos da doença e têm acesso a melhores instituições. Estariam nessa situação, com menores possibilidades de serem contaminados, os que têm casas maiores, quem possui um carro para cada membro da família, quem não usa meios de transporte colectivos, quem pode faltar dias ou semanas ao trabalho e quem tem meios para tratar da roupa e das compras sem se misturar com as pessoas em geral…
Ninguém duvida ainda de que é favoravelmente tratado e atendido quem conhece bons médicos, quem pode recorrer a hospitais mais bem equipados, quem é utente de instituições sem lotação esgotada e quem frequenta hospitais sob menor pressão.
O alojamento é igualmente causa de desigualdade social perante a pandemia. Está favorecido quem vive em bairros saudáveis, com espaços públicos arejados, com esplanadas abertas e recreios espaçosos; quem não frequenta supermercados, muito menos filas de espera. Sofre evidentemente quem vive em bairros sociais sobrelotados, em comunidades promíscuas e em bairros degradados. Diz-se que há mais doença em meios segregados, em comunidades ciganas, negras ou asiáticas, em bairros operários ou de pescadores...
Consta que os ricos perdem facilmente a cabeça com festas. Parece que as celebridades comemoram aniversários e juntam-se nas quintas e condomínios. Mas é mais plausível que os que mais sofrem são os que têm de trabalhar nas fábricas, quem usa os transportes públicos, quem frequenta centros comerciais, quem tem casas pequenas, quem não tem ajuda para tratar dos velhos, quem tem de ir aos lares tratar dos parentes e quem tem pouca informação.
Em poucas palavras. A pandemia bate mais nos mais pobres. A doença mata mais os mais fracos. O COVID infecta mais quem menos tem: fortuna, poder, conhecimentos, nome, estudos, metros quadrados…
Como se sabe isso? Por dedução. Certo. Mas seria bom estudar. Quem realmente corre mais riscos? Quem é mais infectado? Quem tem acesso menos pronto e rápido? Quem morre mais? Ricos? Pobres? Remediados? Classe média? Citadinos? Rurais? Residentes nas periferias e nos bairros étnicos? Famílias grandes ou pequenas? Gente com ou sem estudos? É o que importa saber com o rigor possível, sem fantasias. É trabalho para a Administração Pública, a Academia e o jornalismo.
É muito difícil estudar estas realidades. Em muitos casos, terá de se estudar por vias indirectas e aproximações. Mas tem de se fazer. É necessário tratar de todos, sem olhar a quem. É preciso salvar vidas, sem conhecer o nome. Mas também é bom saber o que se passa, para poder agir e prevenir.
Público, 30.1.2021