Adormecer português e acordar europeu! Apagar a luz como cidadão e abrir as janelas como presidente! Acabar o ano com uma grande Europa e começar o novo com uma mais pequena! Parecem pequenas mudanças, de forma ou de símbolo. Mas são sinais de profundas transformações em curso.
A pandemia ocupa o mundo, é natural. O novo presidente americano prepara-se para chamar as atenções, é normal. O presidente Trump arranja-se cuidadosamente para sair com inesperado ruído, já sabemos. Sem sucessor, a principal líder europeia, Ângela Merkel, faz as suas malas e deixa uma União sem centro de gravidade ou sem cabeça, como é conhecido. Os países mais pobres do mundo vivem aflitos sem serviços de saúde, com poucos médicos e sem dinheiro para comprar e distribuir vacinas, não é novidade. A democracia a recuar em quase todos os continentes, é sabido. A China a crescer, é notório. Tão importantes, mas menos visíveis, são os movimentos tectónicos que se pressentem na Europa. Assim como as transformações na sociedade portuguesa, quase imperceptíveis, que exigem atenção.
No meio disto, a nova presidência europeia, a assumir por Portugal desde hoje, mais parece fait divers. Em certo sentido, é. As presidências da União são uma rotina. Boas, por serem rotina. Todos os países, quando chega a sua vez, querem ter agendas, elaborar dossiers, deixar a sua marca, criar plataformas, abrir debates, fazer reformas, projectar a Europa no mundo… É natural. É bom que assim seja. Mesmo quando é inútil. O que interessa a Portugal é que o país está lá, que se cumprem regras e que se tenta consolidar um passado recente. Ainda por cima, numa altura em que se descobriu que a Europa, depois de crescer, também podia diminuir. E que os europeus podiam levianamente despedir os ingleses, tal como estes eram capazes do enorme disparate de dispensar os europeus.
Três semanas antes de eleger o presidente português, os portugueses e os europeus receberam um novo presidente europeu. O sistema rotativo é muito interessante, pouco democrático e totalmente ineficaz. É de certa maneira um sinal de fraqueza da Europa. Esta nunca soube fazer da diversidade a sua força e o seu carácter. Em vez disso, procura instrumentos supletivos de unidade e liderança que não são mais do que remendos. O que não impede que, por vezes, atrás desta cenografia, se levem a cabo feitos maiores. A vacinação coincidente de todos os países europeus, após planeamento colectivo, fez mais pela União Europeia do que uma “presidência activa” ou uma dúzia de grandes reformas e debates.
A presidência portuguesa nada nos vai trazer de novo ou importante, a não ser isso mesmo, acontecer. A rotina é um dos grandes méritos da democracia. Das três presidências portuguesas que antecederam a actual sobraram uma “Estratégia de Lisboa”, um “Tratado de Lisboa”, duas cimeiras Europa África, uma reforma da PAC… Mas a verdade é que, com a excepção de alguns episódios desvairados com países menos rigorosos, de todas as presidências sobram sempre feitos, reformas e avanços. A “maquinaria europeia” está muito bem preparada para tratar das rotinas, o que inclui os dramas das lendárias negociações nocturnas e as conciliações de madrugada.
Os quatro presidentes portugueses da Europa foram, por esta ordem, Cavaco Silva, António Guterres, José Sócrates e agora António Costa. Os presidentes da República eram Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Cavaco Silva esqueceu-se de Mário Soares durante a primeira presidência. António Guterres marginalizou Jorge Sampaio na segunda. José Sócrates ignorou Cavaco Silva na terceira. Ainda não se sabe o que fará António Costa com Marcelo Rebelo de Sousa. São os mistérios do semipresidencialismo.
Muito mais importante do que estes episódios, cujo carácter imprescindível reside na sua rotina, é a mudança em curso na sociedade. Os países estão a ficar menos nacionais, mais cosmopolitas, menos europeus e mais mestiços. Toda a gente pensa isso, mas é difícil preparar instituições e regras. Há muitas décadas, quando o Governador do Congo se queixava da falta de franceses para desenvolver a colónia, o General De Gaulle retorquiu: “Meu Caro Governador, você é um Burguês! O futuro é mestiço!”. No caso europeu actual, a mestiçagem começa pelas nacionalidades europeias e espalha-se depois pelas africanas, mediterrânicas, árabes, turcas, indianas e outras. Estas misturas são explosivas, como já se percebeu. Tanto por causa das reacções dos brancos europeus e cristão, como devido aos comportamentos dos imigrantes e refugiados. Há xenofobia e racismo dos dois lados.
Mas essas não são as únicas ameaças. Outra tão importante como essas é a da geografia da liberdade. Até nova ordem, o regime democrático tem uma natureza territorial indelével. Não há soberania popular nem representantes, sem comunidades ou distritos eleitorais com base regional. Não há democracia nem parlamento sem eleitorados e sem limites geográficos. A ideia de que pode haver uma “democracia universal”, “mundial”, “global” ou “planetária” é infantil. Aliás, curiosamente, os grandes poderes globais e “galácticos” da ficção científica são sempre impérios e equiparados, ditaduras e regimes totalitários. A União Europeia, que já foi longe de mais, tem de rever as suas estruturas democráticas, os seus processos eleitorais, as suas comunidades locais e nacionais. Sem o que nunca conseguirá definir os contornos da sua democracia, nem estancar os impulsos nacionalistas.
Outra ameaça é a da destruição das bases culturais da democracia. Tanto a tradição como a mestiçagem exigem comunidades de cultura. Olhe-se bem para o mapa da democracia no mundo. É difícil encontrar exemplos de democracias sem uma qualquer tradição cultural, sem comunidade de herança e sem identidade histórica. O falhanço, talvez sem excepção, das tentativas de exportação da democracia deveria dar-nos ensinamentos para ajudar a tratar da Europa. Actualmente, o recuo da democracia no mundo deve-se muito à ausência de comunidade e de tradição, ao cosmopolitismo sem fronteiras nem identidade. Assim como à criação de poderes políticos desligados das instituições e das comunidades ou bases eleitorais. Os Estados da Oceânia e da Eurásia (G. Orwell), tal como os reinos dos Elóis e dos Morlocks (H. G. Wells), não têm bases eleitorais nem geografia. Os países europeus, se querem manter-se democráticos, não podem perder as suas.
Público, 2.1.2021
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