São múltiplos os elogios feitos à excelência da cidadania global. A luta contra a pandemia reforça as exigências de colaboração internacional. As alterações climáticas constituem uma ameaça global que obriga, sem dúvida, a uma resposta global. Parece que as migrações de multidões de trabalhadores, de fugidos e de perseguidos, também necessitam de respostas coordenadas entre governos. Novos surtos de miséria e fome, sobretudo em África, pedem por acção global. A crise económica mundial, em resultado da pandemia, impõe planos conjuntos, como é o caso da Europa, sem o que tão cedo não se encontrarão soluções pacíficas. O desmesurado império das empresas de redes sociais, de petróleos, de serviços e de comunicação força a uma cooperação entre povos, de modo a definir respostas globais a ameaças globais. O colossal poderio das grandes fortunas e das instituições que condicionam as finanças do mundo não pode ser regulado a não ser com sistemas internacionais, talvez globais. Como global deve ser o esforço de combate às cada vez maiores empresas e rackets dos armamentos, da droga e outras actividades ilegais. Finalmente, para travar e derrotar as mais terríveis formas de terrorismo contemporâneo, parece ser necessário recorrer à cooperação internacional.
Novas liberdades e novos direitos fazem luz sobre novos problemas para os quais parece não haver resposta cabal nos planos tradicionais das regiões, das autarquias e dos Estados. A livre escolha de género coloca em crise as ideias estabelecidas nos Estados. A total liberdade de deslocação contraria frontalmente as determinações soberanas dos Estados. A ideia de que existe uma cidadania supra-nacional, a começar por uma cidadania europeia, tem feito caminho e já revelou as insuficiências das eleições nacionais, da responsabilidade política e da prestação de contas aos parlamentos.
A globalização pode oferecer numerosas vantagens. A acção concertada dos Estados e dos povos pode fornecer meios de combate às mais temíveis ameaças globais. Mas a verdade é que os direitos fundamentais dos cidadãos, as liberdades, a segurança pessoal, a justiça e a solidariedade na doença e na velhice pertencem ao quadro local, regional e nacional. A autonomia pessoal, a independência e os direitos de escolha política dependem dos quadros autárquicos e nacionais, conforme os conhecemos.
Os homens e as mulheres procuram bem-estar, segurança e liberdade nos seus grupos de referência, de pertença e de identidade. Há dois mil anos que se conhece a reflexão dos filósofos sobre a tendência gregária das pessoas. Família, grupo, associação, comunidade, tribo, culto, país, Estado e nação… A história da humanidade é, em parte, a história destes agrupamentos e das suas glórias. Como também, claro, das suas derrotas e dos seus desastres. Guerras e ditaduras, conquista e exploração, fomes e perseguições estão no rol da história dos grupos e das identidades. Mas a actual corrente contra o tribalismo e o nacionalismo é a mais ilusória das modas de pensamento. Nunca as liberdades e os direitos dos cidadãos foram defendidos por entidades globais ou abstractas instituições supranacionais. Sempre na história a justiça foi feita e defendida por instituições com identidade autárquica ou nacional.
O essencial da cidadania reside no vínculo de direitos e deveres que ligam cada pessoa à sociedade e à cidade, à região e ao Estado. Não há direitos de cidadania com a globalização. Se quero defender a minha vida, a minha segurança, a minha liberdade e os meus direitos, é à justiça do meu país que me dirijo. É aos meus representantes na autarquia ou no Estado que vou pedir ajuda. São eles que me defendem em caso de necessidade e doença, de agressão ou opressão.
É verdade que o pior do nacionalismo, da exploração social ou racial e da guerra ou da perseguição tem muitas vezes como quadro os Estados e as tribos. Foi sempre assim, na história. Nada é perfeito ou virtuoso. Mas uma coisa é certa: nunca uma entidade global defendeu a justiça e as liberdades dos cidadãos. As Nações Unidas dão muitas vezes ajuda, contribuem para a colecção de recursos. Sim. Com certeza. Mas, em última análise, junto dos cidadãos, nas aldeias e nas cidades, nas empresas e nas instituições, são os Estados nacionais que assumem o papel decisivo.
Além das convenções políticas, são os Estados nacionais, as autarquias, as formas de agrupamento humano e as famílias que representam a herança cultural e enriquecem as formas de solidariedade. Eu recorro a quem conheço e quem partilha a minha história: em poucas palavras, a quem reconheço e me reconhece.
É perigosa a ideia de que se pode ser cidadão do mundo, moda recente que serve para as servidões e a uniformidade. Aí começa o totalitarismo. É ameaçadora a ideia de que as fronteiras, os Estados, as nações, as línguas e as identidades são quinquilharias ou trapos. Essas ideias fazem parte do arsenal do despotismo. São instrumentos de opressão dos chefes sobre os cidadãos. Dos patrões sobre os trabalhadores. Dos sacerdotes sobre os crentes. De uma etnia sobre outra.
Quem se quer defender e proteger da injustiça e da violência recorre às instituições democráticas, representativas e reconhecidas. Os homens e as mulheres do nosso tempo e de sempre procuram segurança, solidariedade e identidade junto de quem reconhecem ou junto de aqueles a quem conferiram direitos e representação.
Uma das mais sérias causas da crise da Europa (e do renascer dos reflexos do nacionalismo) reside justamente na ideia, muito em voga, de que a virtude está na cidadania global, naqueles que se consideram cidadãos do mundo. Não há pior engano. A liberdade e a democracia têm geografia. E alimentam as diferenças e as livres escolhas. Quem garante melhor a minha liberdade? A União ou o Estado português? Quem protege a minha liberdade? A União ou as polícias, os magistrados e os tribunais portugueses? Por piores que sejam as minhas opiniões sobre as instituições nacionais, estas são sempre, para defender os meus direitos, melhores do que as instâncias tecnocráticas, apátridas e virtuosas. Com certeza que as Nações Unidas, a União Europeia, a NATO e outras instâncias internacionais servem os propósitos comuns de grande parte da humanidade. São muitas vezes indispensáveis. Mas são os Estados, os povos e as nações que as utilizam e lhes dão vida.
Cidadão do mundo não é cidadão de parte alguma.
Público, 16.1.2021
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