Sempre fizeram mau casamento.
Quando uma, a moral, é invocada a propósito da outra, a política, é quase
sempre mau sinal. Pode ser impotência da política, isto é, da justiça e da lei
para pôr cobro a certas atitudes e determinados comportamentos. Também acontece
ser sinal de despotismo ou de ambição totalitária: por exemplo, políticos que
desejam impor um código moral de que carecem para os seus actos de governo.
Poderá ainda ser, à falta de argumentos racionais, uma tentativa de impor
regras por outras vias que não sejam as dos métodos políticos tradicionais, com
o que se transforma a religião e a moral em instrumentos de poder. E já não me
surpreende que, tantas vezes, os privilegiados e favorecidos reclamem “ética” e
comportamentos “morais” para que os seus dependentes obedeçam e aceitem o
estado presente e “natural”. Não me canso, finalmente, de ouvir, todos os dias,
gente de várias gerações queixar-se da “falta de ética” e da inexistência de
“valores morais” por parte daqueles que, simplesmente, têm valores diferentes e
crenças diversas. Nas ruas, nas empresas, nas escolas, nos estádios de futebol,
nos recintos de espectáculos, nas repartições, nos comércios e até nas igrejas,
muitos que querem conservar e manter a ordem estabelecida reclamam contra a
ausência de moral dos outros.
Por vezes, em certas
circunstâncias, em determinadas épocas e em vários países, assiste-se a
fenómenos ainda mais complexos, tais como o da presunção de que a política de alguém
implica uma moral, uma cultura, uma ciência e uma visão de classe totalmente
opostas à do outro. E que a verdade de um é incompatível com a verdade do
outro. Melhor ainda: à verdade de um opõe-se, por definição, a mentira do
outro. A moral de um é combatida pelo interesse do outro. E a honestidade de um
é contrariada pela corrupção do outro. Estas são as raízes do fanatismo,
político ou religioso. A que não são alheios fenómenos tão diversos como o
sectarismo nacionalista ou o facciosismo desportivo.
O que se passa no Brasil, com
Lula da Silva à beira de ser nomeado ministro, a fim de evitar ser preso por
corrupção, e um juiz federal a tentar impedir aquele gesto, merece toda a
atenção. Não para resmungar, mais uma vez, contra a “falta de valores” e a
“ausência de moral”, mas sim para perceber o modo como as tribos políticas
transformam em virtude não só as suas ideias, como também os seus interesses,
os seus crimes e os seus roubos. No Brasil ou na Venezuela, em Portugal ou em
Itália, políticos ou banqueiros, empresários ou sindicalistas, assumem a sua
mentira e a sua corrupção como actos legítimos na defesa dos seus interesses e
pontos de vista que são obviamente lícitos, contra os dos outros, que os
combatem com meios evidentemente ilegítimos. Um governante que mente e rouba,
um banqueiro que esconde e desfalca, um empresário que corrompe e disfarça, um
gestor que favorece e dissimula ou um deputado que falsifica e engana, tem todo
o interesse em demonstrar que os seus inimigos são, não a lei nem as
instituições democráticas, mas os opositores, os outros partidos, as outras
classes sociais, as outras nacionalidades. Por isso, os envolvidos nestes casos
procuram, na imprensa, nas televisões e na rua, ganhar as batalhas que nunca
venceriam na justiça. Por isso há bandidos que tentam vencer, com a política, o
que nunca obteriam com a lei. Por isso, os grandes delinquentes consideram que
a justiça e os magistrados estão “ao serviço do inimigo”.
Na América Latina e na Europa, lá
como cá, não estamos diante de mais uma escaramuça, mas sim de um grave
conflito de cujo resultado depende a democracia. A vitória desta última só pode
ser ganha com a justiça. Não chegam as maiorias políticas. Nem os poderes
sociais e económicos. Nem a força da rua.
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DN 20 de Março de 2016