domingo, 28 de julho de 2019

Grande Angular - Descentralização, uma reforma perdida

Embora tenha sido apresentada quase em fim de legislatura, a descentralização deveria ser uma grande causa e não menor realização deste governo. Mas as coisas não começaram bem. Era tarde de mais. Os outros partidos da aliança de esquerdas não estavam ao corrente e queriam mais. O maior partido da oposição, o PSD, também não estava muito pelos ajustes. A reforma ficou logo marcada pela intenção escondida de regionalização. Os trabalhos preparatórios continuam, uns já conhecidos, outros em curso e com entrega adiada. O que até agora mais merece atenção é o facto de o governo, António Costa e Eduardo Cabrita terem alterado a sua estratégia: deixou de ser brutal e para ser gradual. Passou sobretudo, nas suas cabeças, a ser furtiva, como, há muitas décadas, queriam Robert Schuman e Jean Monnet para a Comunidade Europeia.
A regionalização fica, pois, adiada para a próxima legislatura. Logo se verá. A Constituição impõe um referendo, o que os seus defensores receiam. O Presidente Marcelo era, em seu tempo, contra. Rui Rio já foi contra e depois a favor. Os pequenos partidos da esquerda são a favor, o Bloco mais ou menos, o PCP muito. O PS já foi contra e defensor, agora é moderadamente a favor. No seu programa eleitoral, os socialistas querem descentralizar, mas evitam o termo regionalizar. Na verdade, querem exibir uma virtude, mas não pagar o preço.
Um estudo da cartografia portuguesa dos últimos dois séculos é revelador. As divisões em distritos ou províncias foram as mais variadas. Nos escritórios, fizeram-se e desfizeram-se entidades regionais a bel-prazer. Com esquadro, como em tempos, para desenhar impérios em África, se fazia em Berlim ou Paris. A região do Douro, por exemplo, já teve uma dúzia de configurações diferentes, já incluiu o vale do rio, a bacia hidrográfica, o Minho, Trás-os-Montes, parte da Beira Alta, o Douro Litoral, só o Alto Douro, com e sem Trás-os-Montes, até a Beira Litoral esteve incluída! A história cartográfica define bem o espírito que presidiu aos recortes: a estratégia política.
E é curioso notar que praticamente todos os partidos já defenderam a descentralização, mas, no Governo ou no Parlamento, pouco fizeram. Muito do que os próprios partidos reclamam, assim como os autarcas, os agentes económicos e os cidadãos, já poderia ter sido concretizado há décadas, caso houvesse empenho na causa. Fica-se com a impressão de que esta promessa é uma profissão de fé, cujo cumprimento pode ser eternamente adiado.
No nosso país centralizado e “macrocéfalo”, como se dizia antigamente, a descentralização é provavelmente útil, mas teria de ser feita primordialmente para as câmaras municipais e as freguesias, entidades com história e identidade. E com funções reais nas comunidades. Também deveria ser feita em benefício das instituições públicas como as escolas, as universidades, os hospitais, os centros de saúde e tantas outras repartições.
A vantagem da descentralização é que não implica transferência de poderes para entidades híbridas, criadas artificialmente, com eleitos, representantes e nomeados. Com excepção dos Açores e da Madeira, em Portugal não há regiões. História, tradição, identidade e reconhecimento: sem esses requisitos, não há regiões. O que é uma região Centro, como é proposto? E uma região Norte?
As tendências actuais de reforma administrativa visam reforçar as regiões e a União Europeia, esbatendo os poderes dos governos nacionais e reduzindo as competências das autarquias locais. São tendências anti-democráticas. A democracia está a ser apertada por uma tenaz, cujas lâminas são a União e a Região. Quase todos os dispositivos de financiamento pela União Europeia estão orientados para regiões. O mercado da solidariedade regional é hoje um dos mais florescentes. A regionalização compra-se a peso de ouro.
Não está demonstrado que a regionalização seja um instrumento de desenvolvimento. Os Açores e a Madeira foram casos excepcionais e não replicáveis. Nunca foi provado que a regionalização seja meio de desenvolvimento do interior e de fixação da população. O mapa das regiões pobres na Europa, com raríssimas excepções, é hoje o mesmo de há décadas. Se a regionalização fosse um meio privilegiado de desenvolvimento, não se compreende que a Região Norte junte o Douro litoral desenvolvido a Trás-os-Montes e Alto Douro subdesenvolvido! Nem se explica a existência de uma Região Centro, com a junção da Beira Litoral à Beira Alta ou Beira Interior.Em Portugal não há outros Açores nem mais Madeiras.
Está por provar que as autonomias sejam trunfos para reforçar a coesão e lutar contra a desigualdade. As regiões mais ricas, muitas vezes, desejam a autonomia, justamente para não ter de pagar o ónus da solidariedade. Existe um regionalismo dos ricos. Não é verdade que a regionalização seja uma reivindicação das regiões mais desfavorecidas.
A regionalização feita de cima para baixo é errada. Não há hoje movimento para a regionalização. Nem por parte de populações, nem com origem em instituições ou empresas. Ainda há pressão pela descentralização, mas muito menos pela regionalização, quase só defendida pelos partidos, geralmente em benefício próprio.
Recentemente, graças ao tema da Protecção civil, percebeu-se que um traço marcante do comportamento governamental é o da desresponsabilização. Se algo corre mal, a responsabilidade é dos outros. A regionalização é o mais seguro caminho para desresponsabilizar governantes.
regionalização não é “neutra” em procedimentos, orçamentos e funcionários. Não se sabe bem quanto, nem como, mas é seguro que a regionalização acrescenta os poderes dos órgãos intermédios, assim como aumenta os procedimentos, os orçamentos e os funcionários. A regionalização não parece estimular o aumento de cuidadores, médicos, enfermeiros, professores e educadores, mas amplia certamente o número de burocratas e administradores.
O Estado nacional democrático é responsável por alguns dos valores mais importantes da vida em comum: autonomia, segurança, justiça, democracia e liberdades individuais. A garantia e a âncora de qualquer destes valores dependem do Estado nacional, não da União nem das regiões.
O regresso dos nacionalismos e suas ameaças, de que tanto se fala e que pode ser real, é tão perigoso quanto o desaparecimento das entidades com identidade e geografia, como os Estados nacionais e as câmaras municipais.
Público, 28.7.2019

domingo, 21 de julho de 2019

Grande Angular - A União vira o disco

Começou a preparar-se o próximo governo da Europa. Nada é seguro, mas o início está aí. Vão ser necessárias semanas para completar a Comissão. Ofendido, o Parlamento tentará vingar-se. O mais provável é que não seja capaz de resolver o que alguns esperam dele e da Comissão. As tarefas importantes dependem dos Estados, não destes organismos vistosos e impotentes.
A escolha de von der Leyen para presidente da Comissão cumpre vários requisitos. É mulher. É alemã. Faz a ponte entre Este e Oeste e entre esquerda e direita. É protestante, depois de vários católicos. E garantiu uma manutenção barata do bloco central europeu.
Segue-se o arranjo macedónico da Comissão. A solução agora tentada desagradou às esquerdas, que acreditavam ser possível cozinhar um arranjo “à portuguesa”. Também desagradou aos seráficos europeus que esperam que a União se transforme numa instituição democrática. Merkel entrou vencida e saiu vencedora, apesar de fraca. Macron provou existir, sem mais. Costa começou como ganhador, acabou derrotado. Sánchez mais ou menos. Húngaros, Polacos e Italianos saíram felizes.
Como é sabido, os eleitores portugueses e europeus votaram com entusiasmo: tinham de escolher entre Weber, Timmermans,  Zahradil, Vestager, Cué e Keller, como se fossem seus conhecidos. E foram enganados, porque lhes saíram na rifa outros, combinados entre partidos, como deve ser. A solução adoptada não estava prevista na campanha eleitoral. Como antes.
Os descontentes não têm razão de queixa. Fez-se o que sempre se fez. Nem pior nem melhor. Representatividade? Transparência? Direitos do Parlamento europeu? Estamos a falar de ficção, não de realidade. Alguém pensa que os anteriores presidentes da União tiveram um vestígio de democracia? Esta senhora foi eleita como os anteriores, Juncker, Barroso, Santer, Delors e outros: os Estados, os poderes mais fortes e as economias mais robustas ditaram as soluções. Custa aliás imaginar que deveria ser de outro modo. Num continente como o europeu, com a sua história e a sua diversidade, não se vê como poderia funcionar a democracia tal como os querubins desejariam, com eleições directas e globais. Não existe uma democracia europeia, muito menos uma cidadania europeia.
Não foi possível virar a página, ainda bem. Pior ainda é se a União vira o disco e toca o mesmo. O que já não é possível. Depois do Brexit, dos gestos persecutórios dos governos italiano e húngaro e das ameaças do grupo de Visegrado, o que vem a seguir não se sabe se é igual ou é diferente. Mas pode ser mais um passo na direcção da implosão. De qualquer modo, a principal lição a retirar desta eleição é a de que as eleições europeias ou federais não são a solução para nenhum problema real da Europa ou da União. É aos Estados, aos governos e aos parlamentos nacionais que compete encontrar soluções.
A eleição da presidente resultou de discussões secretas, intrigas, relações de força e soluções de recurso. Como sempre! O facto de terem sido anunciados, previamente, nomes de candidatos nada muda. Na União, foi sempre assim: as soluções são negociadas e a força dos principais Estados é decisiva. A estrutura da União não é democrática, nunca foi. Resulta da democracia, mas não é democrática. Os que sonhavam com uma solução “portuguesa” para a União, um arremedo de negociações à esquerda, contra o PPE e contra a Alemanha, eventualmente contra a Itália, a Polónia e a Hungria, obrigando Macron, que não é de esquerda, a portar-se como se fosse, sonhavam com noites de Verão à beira mar.
As negociações para a distribuição dos despojos foram fenomenais. Falou-se de pessoas, negociaram-se pessoas. Falou-se de partidos, negociaram-se lugares. Discutiu-se distribuição, repartição e benefícios partidários. Nunca, que se saiba, se discutiu a Europa, as estruturas de decisão, a federação, a uniformidade, a imigração, os refugiados, as relações com a China ou os Estados Unidos. Não se debateu a defesa. Houve umas vagas alusões às questões de direitos humanos. E discutiram-se as longínquas mudanças climáticas. A Europa e a UE acabam de dar ao mundo um sinal de que não se libertarão tão cedo: este é um negócio de Estados!
A Europa e a União foram longe de mais. Furtivamente. Durante anos, foram pequenos passos, muitos pequenos passos, mas acabou por ser um enorme percurso, demasiado, como se vê. Não existe uma coisa chamada “cidadania europeia”. Existem cidadanias nacionais na Europa. E é assim que deve ser. A União não tem força suficiente para evitar ou tratar das forças centrífugas. Estas aumentam cada vez mais que se aumenta a integração.
A União não enveredou por uma via democrática pela simples razão que não podia nem devia. Felizmente que assim é. Outra coisa é pensar que a União está bem. Não está. Encontra-se em crise essencial. Os próximos anos podem facilmente ser a oportunidade para mais uma ou outra ruptura, um ou outro abandono. Os fanáticos, os aficionados e os crentes não reconhecem os seus próprios erros, acusam os inimigos da Europa, os fascistas, os racistas, os xenófobos, os “soberanistas” e os nacionalistas. Como sempre, cometem um dos mais velhos vícios da política e dos jogos: a culpa é dos outros. Contra os virtuosos, os outros são bandidos. Contra os democratas imaculados, os outros são nacionalistas. A culpa dos populismos, por exemplo, é dos fascistas, do capitalismo e dos racistas. A culpa do nacionalismo é do populismo. A culpa dos problemas de imigração é do populismo e do nacionalismo. Já se percebeu que a qualidade e o rigor dos debates que resultam destes pontos de partida estão abaixo de zero.
Onde nasce, o que faz o populismo? Os populistas, com certeza. Os seus interesses, lícitos ou não, com o objectivo primordial de destruir os sistemas de governo e afastar os partidos que os alimentam. Mas têm ajudas decisivas. A confusão entre União e democracia é uma delas. A incapacidade de olhar com realismo para as migrações é um sólido contributo para a xenofobia. O globalismo também. A permanente tentativa de liquidar as identidades nacionais e promover o federalismo é um dos principais factores de promoção do nacionalismo de direita ou de esquerda, sobretudo do primeiro. E vale a pena recordar um velho princípio: os nossos erros são alimento e força dos nossos inimigos. Mas os anjos europeus não acreditam nisso. Não vêem os seus erros.
Não há muitas dúvidas: está-se melhor na Europa do que fora. Mas é necessário ter presente que a Europa não protege, integra. Reforça, mas não legitima. Ajuda, mas não defende.

 Público, 21.7.2019 

domingo, 14 de julho de 2019

Grande Angular - Justiça e democracia

A ninguém passa despercebida a aparente ou real luta entre magistrados. Sindicalizados ou não afrontam-se relativamente aos temas e ao exercício dos direitos à greve. Magistrados judiciais e magistrados do ministério público ignoram-se ou detestam-se, nem sempre cordialmente, e rivalizam em poderes, autonomia e estatuto. Juízes e procuradores tentam mesmo, não poucas vezes, atropelar-se. Magistrados das diversas instâncias revelam divergências que ultrapassam o que poderia ser compreensível, isto é, a geração, para atingir graus de perseguição institucional. Magistrados de esquerda e de direita não escondem, em função ou na praça pública, as suas divergências. Magistrados com e sem ligações pessoais ou políticas a titulares de poder exibem também, conforme as circunstâncias, divergências sérias que nem sempre resultam de uma diferente interpretação da lei.
As diferenças de opinião, entre magistrados, seriam absolutamente normais, como se verifica em todas as profissões, se resultassem apenas de diferenças de interpretação. Seriam aceitáveis, se não tivessem outros fundamentos, nomeadamente políticos. Seriam admissíveis se não tivessem o condão de suscitar dúvidas. O problema é que, entre nós, nos últimos anos, os motivos dessas divergências parecem ter cada vez mais razões ocultas. O que é muito negativo para o Estado de direito. Ao resultarem de motivos políticos e outros, são sinal de rivalidades menores e de ferida aberta na isenção. Por isso mesmo, são motivo de inquietação pública. É verdade que também há juízes bons, também há magistrados muito bons e isentos e também há procuradores com grande sentido de justiça e de independência pessoal. No entanto, por mais que sejam, não são suficientes para acalmar um pouco as vagas de estranhas sensações que percorrem a comunicação todos os dias. Quando persistente, a suspeição é o pior inimigo da justiça, o pior veneno para a sua maior virtude, a confiança.
Muito em especial, os grandes processos políticos e económicos, que envolvem ministros, deputados, directores gerais, gestores e banqueiros, têm sido férteis em divergências entre magistrados de tal modo graves que nos criam as maiores dúvidas sobre a isenção da justiça. Temos cada vez menos a certeza de que, nestes processos e nestes casos, todos com conotações aos poderes políticos e económicos, a justiça esteja entregue em boas mãos. É verdade que casos como os de José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Armando Vara, António Mexia, Duarte Lima, Vale e Azevedo, Zeinal Bava, José Berardo e Jardim Gonçalves, para já não falar de instituições e empresas, como o BES, a CGD, o Montepio, o Banif, a EDP, a PT, o BCP e outros, são tão graves e tão vistosos que explicam tanta divergência. Explicam, mas não desculpam. Por isso mesmo e porque a opinião está a ser massacrada por sucessivas notícias, sem falar de boatos, é conveniente pensar em mecanismos capazes de reforçar o escrutínio da justiça sem beliscar a sua independência. Na França, nos Estados Unidos, na Suíça, na Grã-bretanha e tantos outros há respostas para essa necessidade. Como todos os casos acima referidos estão já feridos de modo talvez irreparável e não se pode, nem deve, mexer na justiça de modo leviano, o que quer que se faça já só tem efeitos no futuro. Paciência.
Há maneiras legais de destruir a justiça. Há processos legais de salvar cúmplices e favorecer criminosos. Há garantias suficientes para adiar indefinidamente processos. A justiça, em todas as suas fases, necessita de mais escrutínio, menos garantias, menos burocracia, menos chicanas processuais, menos favores prestados aos poderosos e aos advogados potentes e menos facilidades oferecidas aos profissionais da política e do tráfico de influências. Em Portugal, como talvez em raros países do mundo, a independência da justiça é muito mais do que isso, é auto-gestão e auto-governo. 
Os Conselhos Superiores têm um enorme poder. Uma maioria de membros não magistrados seria um factor adicional de isenção e escrutínio. Não é suficiente, mas ajuda. Isso já pode ser verdade no caso dos Magistrados, em cujo conselho, se nenhum membro designado for do ofício, se pode verificar uma maioria “civil”. Mas tal não é possível no caso do Ministério Público, onde a maioria é de procuradores. A tentativa de alterar esse estado de coisas foi frustrada este ano. Em certo sentido, ainda bem, pois seria feita no fim da legislatura, em correria, em ligação quase imediata com as dificuldades crescentes dos processos Sócrates e Salgado. O Gato era enorme, mas o Rabo ainda maior! Espera-se que, em legislatura ulterior, com serenidade, se encare de novo o tema. A situação foi parecida com a substituição da Procuradora-Geral. É claro que um mandato mais longo, mas único, é uma solução preferível. Mas fazê-lo, como foi feito, para forçar uma substituição e em vésperas de eleições, sem prestar atenção ao que se tinha passado e passa com as recentes crises da justiça, era evidentemente uma solução que levantou, justamente, todas as suspeitas.
Será que, nos meios políticos e nas grandes instituições, não se vê o dano que os acontecimentos estão a causar à democracia e à justiça? As notícias e as peripécias relativas aos juízes e procuradores, designadamente Ivo Rosa, Carlos Alexandre e Rosário Teixeira, não serão suficientes para se perceber que as brechas e as feridas podem ser, por muitos anos, irreparáveis? Não haverá quem veja que já não basta gemer de inquietação?
É talvez a mais pesada e grave responsabilidade do poder político democrático, o que inclui Presidente da República, Assembleia da República e Governo: começar a preparar, para daqui a muitos meses ou uns anos, uma pequena reforma das estruturas de poder na Justiça e nos modos de ligação à democracia, o que exige seriedade, preparação e debate. Entre todas as instituições, entre todos os titulares da soberania, só a justiça e os tribunais estão absolutamente livres de qualquer mecanismo de escrutínio, contrapeso e reequilíbrio. Todos, menos aqueles, estão sujeitos a avaliação, a contrapoder e, quanto mais não seja, a eleição. Justiça e tribunais não estão submetidos a qualquer avaliação ou acompanhamento. A não ser pelos próprios. 
É uma pequena reforma, pela dimensão, enorme pela importância. Será um bom começo do longo trabalho de libertação da justiça dos processos e das garantias que a destroem. Talvez seja essa a melhor maneira de respeitar um dos mais importantes preceitos da nossa Constituição: “… administrar a justiça em nome do Povo”. Em nome de… Não em vez de…
Público, 14.7.2019 

domingo, 7 de julho de 2019

Grande Angular - Uma história de pasmar

Em Junho de 2017, na região de Pedrógão Grande e municípios vizinhos, um fogo florestal destruiu vidas, fazenda e empresas. Tratou-se de um dos incêndios mais mortíferos de que há registo em Portugal e no mundo desde 1900. Resultaram sessenta e cinco mortos, sendo que, três meses depois, mais cinquenta se acrescentariam noutras localidades da região Centro. Os acontecimentos comoveram a opinião pública nacional e estrangeira.
Parece que o ano de 2017 foi severo nas condições climatéricas. Seca e vento em excesso. Material combustível também. Diz toda a gente que o mau ordenamento foi responsável. Há décadas, aliás, que se diz exactamente a mesma coisa: segundo as autoridades, a culpa é do ordenamento florestal, dos proprietários, das queimadas e dos acidentes provocados. Para a opinião em geral, àqueles responsáveis, acrescentam-se as autoridades. E nos meios mais maledicentes diz-se também, não sem alguma razão, que comerciantes, madeireiros e fornecedores de equipamentos de combate aos incêndios ajudam ao drama. Em 2017, voltou a referir-se essa lista de causas, com a ajuda da desordem nas aldeias e nas quintas. Mas havia leis que determinavam o ordenamento e definiam o que se pode e não pode fazer.
As plantações excessivas e descontroladas de resinosos e eucaliptos foram responsabilizadas. Assim como as plantações ilegais e selvagens de espécies combustíveis em condições muito perigosas. Mas há regulamentos que contrariam esta desordem ou impedem a plantação selvagem. Tudo isto se sabe há décadas. E há décadas se repete.
Foi patente a insuficiência de prevenção, a fraqueza dos avisos e a mediocridade dos trabalhos de precaução. Foram ineficazes os mecanismos de alerta. Mas havia regulamentos. Os meios de combate foram insuficientes, sabia-se aquilo de que se precisava, mas esperava-se que talvez não fosse necessário. As autoridades garantiram na altura que nada faltava, havia aviões e helicópteros, assim como pronto-socorros e toda a espécie de veículos e outros meios. A Protecção Civil tinha sido reorganizada meses antes dos incêndios. Vários dirigentes nacionais, regionais e locais, de confiança política, tinham sido nomeados poucos meses antes. Havia instituições, leis e despachos.
O sistema de comunicações, de longe o mais caro dos que foram apresentados ao governo e o mais custoso jamais construído em Portugal, não foi capaz de funcionar competentemente em plena crise, quando era mais necessário. Mas estava tudo no contrato e nos termos de referência. Até estava previsto que poderia falhar quando fosse mais preciso.
Governo, instituições de prevenção e sistemas de combate, aos tropeções, deram mostras de má coordenação e fizeram o possível por culpar os outros, quaisquer que fossem, desde que fossem outros. Mas estava tudo escrito e previsto. E o governo sempre protegeu os seus membros, os seus dirigentes e os seus nomeados.
Em cima das crises políticas resultantes dos incêndios de Pedrógão, o Primeiro-ministro partiu de férias, que já estavam marcadas antes. Ministros directamente responsáveis revelaram-se atabalhoados e irresponsáveis, a mostrar serviço em vez de prestar serviço, a exibirem-se na televisão e a atrapalhar as operações em vez de ajudarem a organizar os meios de combate.
No rescaldo, o nervosismo foi total e esteve visível nos relatórios de análise dos incêndios e suas consequências. Houve secretismo nas conclusões, chegou a considerar-se que a identidade dos mortos era segredo de justiça. Os vários relatórios, antagónicos nas conclusões, revelaram influências políticas em assuntos técnicos. A investigação dos factos, dos estragos e das vítimas foi tardia, insuficiente e incompetente. O ordenamento e a temperatura são citados por quase toda a gente. Mas uns acrescentam que foi uma “trovoada seca”, outros afirmam que foi “mão criminosa” e outros ainda garantem que se tratou de uma “descarga eléctrica” da responsabilidade da EDP.
Ogoverno tentou demonstrar que as responsabilidades eram dos proprietários, das empresas, dos bombeiros, das autarquias e dos fornecedores de material de luta contra os incêndios. O Estado pôs em causa as autarquias e os bombeiros. Os bombeiros revoltaram-se contra as estruturas de prevenção e o governo. As autarquias criticaram o governo, os bombeiros e a prevenção. Todos, menos o governo, criticaram o SIRESP, que se revelara um desastre. O governo garantiu que o sistema era bom. Dois anos depois, sem avaliar a legalidade do concurso nem a justeza dos contratos de concessão, o governo nacionalizou o SIRESP.
Milhares de pessoas, centenas de empresas e dezenas de associações e fundações deram dinheiro para reparar casas, ajudar a criar emprego, refazer explorações agrícolas, agasalhar e alimentar pessoas. Foi doado mais dinheiro do que era necessário. Parte do dinheiro foi mal gasto, outra parte não foi sequer levantada. Até hoje, as principais entidades responsáveis não prestaram contas.
O dinheiro para ajudar as pessoas a refazer as suas vidas, casas e explorações chegou tarde, algum ainda não chegou, mas os governantes e os autarcas garantiram sempre que o dinheiro tinha sido entregue. Muita gente, Estado, funcionários, proprietários, autarcas e empresas roubaram, desviaram e enganaram.
APolícia Judiciária e o Ministério Público terminaram as investigações e a instrução de processos nos quais são arguidos mais de meia centena de pessoas acusadas de terem cometido crimes por negligência ou de terem desviado fundos de emergência, inventado casas para reconstrução e outras habilidades. Entre os arguidos há autarcas, bombeiros, comerciantes e funcionários locais.
O principal desenvolvimento positivo de toda esta história, além da solidariedade expressa, ficou a cargo da Provedora de Justiça que determinou o montante das indemnizações a que teriam direito as famílias das vítimas. Todo esse trabalho foi feito a tempo e sem contestação.
Nos dois anos seguintes, o Governo substituiu os ministros que defendeu, os altos funcionários que protegeu e os encarregados da Protecção Civil que nomeou. Nacionalizou o SIRESP, sem sequer lhe ter atribuído responsabilidades nos falhanços. Comprou mais helicópteros e aviões, que afinal estavam em falta. Mudou de fornecedores de equipamentos que, em última análise, não eram de confiança. Não analisou as falhas do Governo, nem as da Administração Pública. Parece não haver lições a retirar. Nem erros a evitar. Até ao dia em que, por um Verão quente e seco…
Público, 7.7.2019