Começou a preparar-se o próximo governo da Europa. Nada é seguro, mas o início está aí. Vão ser necessárias semanas para completar a Comissão. Ofendido, o Parlamento tentará vingar-se. O mais provável é que não seja capaz de resolver o que alguns esperam dele e da Comissão. As tarefas importantes dependem dos Estados, não destes organismos vistosos e impotentes.
A escolha de von der Leyen para presidente da Comissão cumpre vários requisitos. É mulher. É alemã. Faz a ponte entre Este e Oeste e entre esquerda e direita. É protestante, depois de vários católicos. E garantiu uma manutenção barata do bloco central europeu.
Segue-se o arranjo macedónico da Comissão. A solução agora tentada desagradou às esquerdas, que acreditavam ser possível cozinhar um arranjo “à portuguesa”. Também desagradou aos seráficos europeus que esperam que a União se transforme numa instituição democrática. Merkel entrou vencida e saiu vencedora, apesar de fraca. Macron provou existir, sem mais. Costa começou como ganhador, acabou derrotado. Sánchez mais ou menos. Húngaros, Polacos e Italianos saíram felizes.
Como é sabido, os eleitores portugueses e europeus votaram com entusiasmo: tinham de escolher entre Weber, Timmermans, Zahradil, Vestager, Cué e Keller, como se fossem seus conhecidos. E foram enganados, porque lhes saíram na rifa outros, combinados entre partidos, como deve ser. A solução adoptada não estava prevista na campanha eleitoral. Como antes.
Os descontentes não têm razão de queixa. Fez-se o que sempre se fez. Nem pior nem melhor. Representatividade? Transparência? Direitos do Parlamento europeu? Estamos a falar de ficção, não de realidade. Alguém pensa que os anteriores presidentes da União tiveram um vestígio de democracia? Esta senhora foi eleita como os anteriores, Juncker, Barroso, Santer, Delors e outros: os Estados, os poderes mais fortes e as economias mais robustas ditaram as soluções. Custa aliás imaginar que deveria ser de outro modo. Num continente como o europeu, com a sua história e a sua diversidade, não se vê como poderia funcionar a democracia tal como os querubins desejariam, com eleições directas e globais. Não existe uma democracia europeia, muito menos uma cidadania europeia.
Não foi possível virar a página, ainda bem. Pior ainda é se a União vira o disco e toca o mesmo. O que já não é possível. Depois do Brexit, dos gestos persecutórios dos governos italiano e húngaro e das ameaças do grupo de Visegrado, o que vem a seguir não se sabe se é igual ou é diferente. Mas pode ser mais um passo na direcção da implosão. De qualquer modo, a principal lição a retirar desta eleição é a de que as eleições europeias ou federais não são a solução para nenhum problema real da Europa ou da União. É aos Estados, aos governos e aos parlamentos nacionais que compete encontrar soluções.
A eleição da presidente resultou de discussões secretas, intrigas, relações de força e soluções de recurso. Como sempre! O facto de terem sido anunciados, previamente, nomes de candidatos nada muda. Na União, foi sempre assim: as soluções são negociadas e a força dos principais Estados é decisiva. A estrutura da União não é democrática, nunca foi. Resulta da democracia, mas não é democrática. Os que sonhavam com uma solução “portuguesa” para a União, um arremedo de negociações à esquerda, contra o PPE e contra a Alemanha, eventualmente contra a Itália, a Polónia e a Hungria, obrigando Macron, que não é de esquerda, a portar-se como se fosse, sonhavam com noites de Verão à beira mar.
As negociações para a distribuição dos despojos foram fenomenais. Falou-se de pessoas, negociaram-se pessoas. Falou-se de partidos, negociaram-se lugares. Discutiu-se distribuição, repartição e benefícios partidários. Nunca, que se saiba, se discutiu a Europa, as estruturas de decisão, a federação, a uniformidade, a imigração, os refugiados, as relações com a China ou os Estados Unidos. Não se debateu a defesa. Houve umas vagas alusões às questões de direitos humanos. E discutiram-se as longínquas mudanças climáticas. A Europa e a UE acabam de dar ao mundo um sinal de que não se libertarão tão cedo: este é um negócio de Estados!
A Europa e a União foram longe de mais. Furtivamente. Durante anos, foram pequenos passos, muitos pequenos passos, mas acabou por ser um enorme percurso, demasiado, como se vê. Não existe uma coisa chamada “cidadania europeia”. Existem cidadanias nacionais na Europa. E é assim que deve ser. A União não tem força suficiente para evitar ou tratar das forças centrífugas. Estas aumentam cada vez mais que se aumenta a integração.
A União não enveredou por uma via democrática pela simples razão que não podia nem devia. Felizmente que assim é. Outra coisa é pensar que a União está bem. Não está. Encontra-se em crise essencial. Os próximos anos podem facilmente ser a oportunidade para mais uma ou outra ruptura, um ou outro abandono. Os fanáticos, os aficionados e os crentes não reconhecem os seus próprios erros, acusam os inimigos da Europa, os fascistas, os racistas, os xenófobos, os “soberanistas” e os nacionalistas. Como sempre, cometem um dos mais velhos vícios da política e dos jogos: a culpa é dos outros. Contra os virtuosos, os outros são bandidos. Contra os democratas imaculados, os outros são nacionalistas. A culpa dos populismos, por exemplo, é dos fascistas, do capitalismo e dos racistas. A culpa do nacionalismo é do populismo. A culpa dos problemas de imigração é do populismo e do nacionalismo. Já se percebeu que a qualidade e o rigor dos debates que resultam destes pontos de partida estão abaixo de zero.
Onde nasce, o que faz o populismo? Os populistas, com certeza. Os seus interesses, lícitos ou não, com o objectivo primordial de destruir os sistemas de governo e afastar os partidos que os alimentam. Mas têm ajudas decisivas. A confusão entre União e democracia é uma delas. A incapacidade de olhar com realismo para as migrações é um sólido contributo para a xenofobia. O globalismo também. A permanente tentativa de liquidar as identidades nacionais e promover o federalismo é um dos principais factores de promoção do nacionalismo de direita ou de esquerda, sobretudo do primeiro. E vale a pena recordar um velho princípio: os nossos erros são alimento e força dos nossos inimigos. Mas os anjos europeus não acreditam nisso. Não vêem os seus erros.
Não há muitas dúvidas: está-se melhor na Europa do que fora. Mas é necessário ter presente que a Europa não protege, integra. Reforça, mas não legitima. Ajuda, mas não defende.
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