"O PSD hoje faz uma coisa e no dia seguinte o PS ganha, faz o
contrário ou desfaz tudo. Já há, aliás, várias medidas tomadas pelo
atual Governo para as quais o PS já disse "quando chegarmos ao
poder, daqui a um ano, limpamos tudo, fazemos o contrário". As
coisas são tão profundas e tão importantes na autarquia, na saúde, na
educação, na segurança social, na justiça, que é necessário haver um
acordo de longo prazo. Eem Portugal qualquer ideia relativa a um acordo
entre partidos ésempre malvista."
"Parte da elite política e dos partidos não quer acordos
alargados"
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António Barreto já foi comunista durante a ditadura, fez-se membro do
PS em 1974, apoiou a AD de Sá Carneiro e depois Mário Soares, na
candidatura à Presidência da República. Já tinha sido secretário de
Estado e ministro, mas há mais de 20 anos que deixou a política ativa.
É sociólogo, preside à Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde criou
o portal de informação estatística PORDATA.
Também já presidiu às comemorações do Dia de Portugal, por escolha de
Cavaco Silva, e é uma voz livre, que acha que em Portugal há muita
opinião e pouco estudo, muitos palpites e pouca reflexão. E para ele não
há dúvida: Portugal precisa de um entendimento entre PS e PSD que
possibilite reformas de longo prazo. Nesta entrevista ele explica
porquê.
- Como é habitual, pedimos que escolhesse três temas para abordarmos.
Começou por "a reforma do Estado: o quê, por quem, quanto
tempo." Acredita que a reforma do Estado já tenha começado?
Algumas pessoas no Governo dizem que sim, que está em curso há dois
anos. Está ou não?
- Não... [risos]. Por motivos de necessidade, pela austeridade, pelo
programa de ajustamento, pelos problemas financeiros, pela falência do
Estado do ponto de vista financeiro e até económico, no investimento,
etc, começaram a fazer-se certas coisas em todos os ministérios que
eram obrigatórias. Para poupar. Fizeram-se umas bem, outras mal, outras
assim-assim, como sempre na vida quando se fazem coisas a correr, num
frenesim. Fizeram-se muitas coisas em cada um dos sectores para os
quais olho. Mas pergunto-me sempre: vamos lá ver se de facto foram
reformas estruturais.
- E foram, em algum sector?... Dê-me um exemplo de um desses sectores.
- Transformação da rede dos municípios. São 308. Porque não 200, porque
não 140?
- Eliminámos algumas freguesias.
- Pois... A freguesia é o recheio do peru, e o peru continua lá. O
importante são os municípios, não são as freguesias. Há muitas soluções
possíveis. Podíamos optar por um só tipo de autarquia. Há países... Por
exemplo, a Suíça tem duas ou três mil comunas, mas não tem nada abaixo
da comuna! Há comunas muito pequeninas, que têm 15 mil pessoas e cujos
vereadores se ocupam de cortar as árvores e de limpar as ruas, e há
comunas como Genebra ou Zurique, que são grandes cidades, e que são
estruturas adaptadas às diferentes situações. Nós aí nada fizemos.
Outra questão estrutural, a da relação entre medicina privada e
medicina pública, que não está resolvida, nem pouco mais ou menos.
Continua a haver médicos dos dois lados...
- E em cada um desses campos, o que vê são os interesses do PS e do PSD
que os impossibilitam de ter uma visão comum?
- Mais ou menos. Já começa a ser uma espécie de teoria de papagaio:
quando um diz uma coisa o outro diz exatamente o contrário no dia
seguinte. No último ano, depois do desvario, daquele exercício de verão
com o Presidente da República, o PS e o PSD, em que podia haver
eleições, podia não haver eleições e podia haver um pacto, e deixou de
haver... A partir de então, basta o Governo dizer A para no mesmo
instante, ou uma hora depois, o PS vir dizer B.
- Devo concluir, daquilo que está a dizer, que não acredita que vá ser
possível fazer uma reforma do Estado, e dos seus gastos, nos próximos
tempos em Portugal?
- Não acredito enquanto não houver um acordo global a médio prazo,
nunca menos de cinco, dez anos, no qual participe a maioria dos partidos
políticos, sobretudo os mais importantes, com a participação das
empresas, do sindicalismo, e de outros tipos de interesses. Lembra-se
do acordo de Moncloa lembra-se dos acordos feitos na Alemanha, na
Holanda, em França? Há em quase todo o sítio. Tem de haver em Portugal.
- E é essa também a resposta à pergunta que fez, "o quê, por quem,
em quanto tempo?"
- "O quê" é determinar quais são os principais pontos para os
quais é necessária reforma. Na educação, o mais sério, o mais
importante, nem se toca na relação entre a escola e a comunidade. A
relação entre a escola e os pais, entre a escola e os autarcas, isso é
que é uma reforma estrutural! Saber até onde é que vai o currículo
nacional, onde é que há um currículo diversificado, qual é a relação
dos professores com a escola ou a relação dos professores com o
ministério, isto é que é a reforma estrutural! Mas nem se lhe toca!
Porque é grave, porque é sério, é problema para durar muito tempo e que
não se pode resolver na dependência do puro resultado eleitoral. O PSD
hoje faz uma coisa e no dia seguinte o PS ganha, faz o contrário ou
desfaz tudo. Já há, aliás, várias medidas tomadas pelo atual Governo
para as quais o PS já disse "quando chegarmos ao poder, daqui a um
ano, limpamos tudo, fazemos o contrário". As coisas são tão
profundas e tão importantes na autarquia, na saúde, na educação, na
segurança social, na justiça, que é necessário haver um acordo de longo
prazo. E em Portugal qualquer ideia relativa a um acordo entre partidos
é sempre malvista.
- Os estudos de opinião revelam que os portugueses querem acordos
alargados...
- Quem não quer é uma parte da elite política, uma parte importante dos
partidos políticos. E na imprensa, que vive a informação de uma maneira
mais ativa, enérgica, mais adversarial e contraditória, não tem bom
acolhimento a ideia.
- Já disse que era o momento de criar grupos de reflexão, de começar a
estudar para depois se poder fazer a verdadeira reforma do Estado. Acha
que os nossos credores aceitarão que, em benefício da qualidade dessa
reforma, se atrase um pouco os timings?
- Não falo por eles, não sei o que pensam. Os credores não têm nada que
dizer sobre este assunto. Repare no QREN. É um programa de
investimentos a seis, sete anos, de 24 ou 25 mil milhões de euros.
Sobre isso, não era importante haver um acordo de dois terços dos
representantes políticos? Era vital! Não vai haver, porque eles não
querem. Nem o PSD quer o PS nem o PS quer o PSD. Começassem a trabalhar
já, independentemente das eleições europeias, independentemente das
eleições do ano que vem... E há circunstâncias inspiradoras. Em
Espanha, em 1977, houve o acordo de Moncloa Na Alemanha temos uma
grande coligação. Há países na Europa com três, quatro, cinco partidos
no governo. (Continuando) Há também a revisão da Constituição: conforme
a altura, conforme o partido e conforme as circunstâncias, quem fala em
revisão da Constituição é logo acusado de qualquer coisa: fascista,
comunista, salazarista, qualquer coisa. Já se fizeram seis ou sete
revisões constitucionais, duas das quais muito importantes mesmo. Não
foi o suficiente. Esta Constituição serviu quase na perfeição durante
dez anos, foi uma espécie de apólice de seguro da democracia, contra
todos os vícios. Simplesmente, isto não resulta para poder governar,
não resulta para o futuro.
- Neste momento, vê que seja absolutamente fulcral avançar para uma
revisão constitucional?
- Passos Coelho foi às eleições dizer que queria a revisão. Tentou
fazê-la e no dia seguinte enterrou-a logo.
- Da forma como ele a procurou fazer, não teria consenso com o PS.
- Até às próximas legislativas, não vai haver nenhum resultado. Pode
haver é reflexão! E os dirigentes dos partidos políticos portugueses
têm de deixar de ter medo do pensamento. Têm de pensar, têm de
refletir, de estudar!
- A reforma do sistema político, que também advoga, poderia ajudar a
resolver esse problema da relação da classe política com o que é o
interesse geral, a necessidade de ter acordos?
- Sim! Por exemplo, dentro da reforma do Estado, outro assunto de que
nunca se fala, além da revisão constitucional, um instrumento da
reforma do Estado, é o sistema eleitoral. Ninguém hoje dá três vinténs
pelo sistema eleitoral que temos.
- Já se fez muita reflexão sobre essa matéria, mas nunca foi possível
chegar a um acordo...
- Já. Mas a decisão nunca é em nome do interesse público, é sempre em
nome da circunstância eleitoral.
- Nos últimos tempos, sempre que se tem falado de reforma do Estado
fala-se do Estado social. No fundo, estamos a falar de segurança
social, saúde, escola. Esses também são, para si, os eixos fundamentais
de uma reforma do Estado ou seria muito mais do que isso?
- E muito mais do que isso. Também é a parte política, a territorial, a
administrativa, a autárquica. Um capítulo da reforma do Estado é o
Estado social, sim, que tem de ser revisto e revisto.
- E vê razão para tanta barafunda no espaço público entre o PS e o PSD
ou os pontos de contacto são muito mais evidentes do que aquilo que
resulta da discussão que se está a ter publicamente?
- Sabemos que há mais proximidade do que parece, mas como é uma boa
arma de arremesso....
"Estamos melhor mas ainda não estamos bem"
- Sempre que fala, a propósito de qualquer coisa, somos sempre tentados
a pensar que nas suas respostas há sempre a mesma coisa implícita: os
políticos, em Portugal, olham pouco para os números e estudam pouco. É
isso mesmo que pensa?
- É exatamente isso que penso. Resulta do trabalho que fiz, por exemplo,
na PORDATA, ou antes da PORDATA numa coisa chamada Situação Social em
Portugal, que também foi uma publicação estatística enorme. Primeiro,
uma estatística não tem nada de sexy. Porque é que fiz isso? Foi por
ter verificado que, em Portugal, o mais fácil do mundo é fazer política
na base da opinião e nunca na base dos factos. Você nunca pergunta às
pessoas o que elas querem! Você é retórico, o Governo é capaz de fazer
uma reforma na saúde, na educação, no que quer que seja, sem perguntar
às pessoas o que é que elas pensam, sem perguntar aos juizes, aos
advogados, aos réus, aos solicitadores, sem perguntar aos médicos, aos
enfermeiros, aos doentes, às associações, sem perguntar aos
administradores hospitalares. Fazem política sempre em frente! Eu colaborei
na lei de bases do sistema educativo, era deputado na altura. Numa
comissão especializada para isso, sentámo-nos os cinco grupos
parlamentares, e fiz uma lista com 60 pedidos ao Governo. Número de
estudantes, o número de professores, o número de chumbos, quem é que
passava, quem não passava, o que é que se gastava por cabeça.
- E sabiam?
- Não sabiam! As respostas chegaram seis meses depois da lei aprovada,
a lei foi aprovada na exclusiva base de opiniões!
- Se ainda estamos a contar os carros que existem na administração
pública...
- Bom exemplo.
- Se um partido político, qualquer que ele seja, pedisse ajuda à
fundação, e à PORDATA em particular, para obter dados sobre
determinadas matérias, para poder fazer propostas mais trabalhadas,
estaria disponível?
- Se é um pedido de dados, damos tudo o que temos. Se é para colaborar
com partidos políticos, não. Temos um site que está a começar cada vez
mais a ser visto, chamado Conhecer a Crise, estamos a tentar publicar
dados de três meses, mensais, trimestrais, porque os nossos dados da
PORDATA são anuais. Nestas dificuldades económicas e sociais, é bom
saber como é que as coisas estão a correr aos três meses, ou aos seis
meses. Como é que as pessoas estão a comer? Estão a comer mais ou menos
coelho, mais ou menos frango, mais ou menos azeite, mais ou menos óleo?
Isso é interessante. O resultado dessas coisas dá logo um sinal e vê-se
muitas vezes, em pormenores, nas dívidas, no cartão de crédito, nos
despejos, nos despedimentos e na comida, onde é que as coisas estão a
mexer. Esse género de coisas, qualquer partido político, qualquer
instituição pode pedir. Nós damos tudo o que temos, se soubermos.
Colaboração bilateral com um partido, não.
- Olha muito para os números. Nos últimos dois anos começam a aparecer
alguns indicadores macro que parecem alimentar expectativas positivas.
Estamos melhor ou estamos pior?
- [Sorriso] Estamos ligeiramente melhor do que há três anos, no estrito
sentido que parece termos evitado a bancarrota e o pior, de que iríamos
pagar cem anos. Nisso estamos ligeiramente melhor. Há um bocadinho de
músculo. Mas não estamos melhor ainda porque não andamos bem. As
pessoas não estão a viver melhor, ainda estão a viver pior do que há
quatro ou cinco anos, quando só havia a dívida. Fui operado há pouco
tempo e estou a fazer fisioterapia. O joelho já tem músculo e já ando;
e já não se vê que estou manco, mas ainda sinto que está cá qualquer
coisa. Portanto, preciso ainda de mais um bocado para poder dizer
"estou mesmo melhor".
- Qual a maior ameaça, para o Estado social? A financeira, porque
vivemos uma crise financeira grave, ou a ideológica, que possa existir
de uma clivagem entre PS e PSD?
- Ideologia há sempre. Quando vejo um partido acusar outro de ideologia
dou sempre uma gargalhada, porque estão ambos a ser ideológicos. É bom
ser ideológico, isto é, defender ideias e princípios, mas defendê-los
com números e com factos e saber do que estamos a tratar. Quantos
reformados vamos ter daqui a 20 anos? Há dinheiro para isso? Quantos
reformados vamos ter daqui a 40 anos? Há dinheiro para isso? Há um
número que gosto sempre de recordar a mim próprio, para nos pôr no
sítio: há 30,40 anos, em Portugal, havia 150 mil, 130 mil reformados e
pensionistas. Hoje há três milhões. Esta é a diferença, são as balizas
da diferença que criam um problema sério.
- Essa é a medida do avanço do nosso bem-estar social, mas também a
medida do nosso problema?
- É. Por exemplo, sou favorável à manutenção de um Serviço Nacional de
Saúde. Foi talvez o que de melhor em Portugal se fez nestes 40 anos.
Melhor do que se fez na educação, melhor do que se fez na justiça -
aqui nem comparação -, melhor do que se fez na segurança social. E,
portanto, vamos preservar muito disto. Mas também já se sabe que este
sistema não é eficiente, há muita gente em filas de espera, há
acidentes que acontecem com frequência por falta de tempo, de espaço
nos hospitais, portanto, é necessário alterar algumas coisas. Por outro
lado, há o dinheiro: a despesa da saúde, já toda a gente sabe no mundo
inteiro, é exponencial, não tem limite, é infinita. Mas o que as
pessoas ganham, o que as pessoas rendem, o que as pessoas trabalham, é
finito. Tem de se encontrar também uma solução para isto. Todos os
partidos o sabem, não têm é coragem de o dizer e de aceitar que é
necessário começar a estudar.
- Não têm coragem ou os interesses que estão dentro desses partidos
assim o exigem?
- Pode ser as duas coisas.
- Falta dimensão aos líderes para além dos grandes interesses que
atravessam os partidos?
- Pode ser as duas coisas... Vejam a questão, por exemplo, da medicina
privada e da medicina pública. Sempre fui defensor da separação de
águas. Um médico que é médico no público, que não seja médico no
privado, e vice-versa. E eu encontro gente que pensa a mesma coisa nos
dois ou três partidos. Mas depois, quando chega a altura...
- É a diferença entre estar na oposição e no Governo, que marca muito o
PS e o PSD?
- Infelizmente, é. E era por isso que eu achava que um grande esforço
de entendimento devia ser forçado pela opinião pública, por vocês,
jornais, rádios, universidades.
- "Coesão social: efeitos da troika, consequências a médio e longo
prazo", foi o segundo tema que escolheu para esta conversa.
Acabado este ajustamento, daqui a uns meses, se as coisas correrem bem,
estaremos mais bem preparados para enfrentar o futuro? Ou, pelo
contrário, este ajustamento e esta crise deixaram demasiada gente para
trás e as consequências, as mais graves, ainda se vão fazer sentir?
- Respondo 'sim' às duas perguntas, que parecem contraditórias mas não
são. Creio que nalguns sectores da economia, nalguns sectores do
pensamento, da reflexão e da economia real, há domínios que estarão
hoje em melhores condições de enfrentar os anos a seguir. Muita gente
percebeu que o consumo e a poupança são duas entidades em que se deve
mexer com cuidado. Estão a aumentar os níveis de poupança, que é para
mim uma surpresa agradável. Portanto, há sectores, situações, segmentos
da população que vão estar melhor, mas cujos resultados só se sentirão
se ho u ver bom enquadramento, isto é, uma boa política para os
próximos anos. Para mim, o caso mais flagrante da maior falha do
Governo atual foi que muito pouco se fez para preparar o investimento
futuro. Estava à espera de que, desde há três anos, aparecesse um novo
código de investimentos, uma simplificação dos processos, dos contratos
com as empresas mundiais que podem vir para Portugal para a criação de
emprego. Com capitais nacionais ou estrangeiros, não é só capitais
estrangeiros, e já ouvi dizer aí que há quem queira beneficiar os
capitais estrangeiros em detrimento dos portugueses. Este novo
enquadramento geral do investimento, com a burocracia, a justiça, foi
muito pouco estudado. Depois, há a segunda parte da pergunta: há quem
tenha ficado para trás. Há quem se tenha ido embora. É pena que ainda
hoje não se saiba quantos é que se foram embora nos últimos anos. Há
tanta demagogia a propósito das consequências da troika Todos os dias
vejo nos jornais, na imprensa, ou na rua, em qualquer sítio, que há
mais suicídios, mais tuberculosos, mais crime, mais homicídios, mais
divórcios, mais mortalidade infantil...
- Isso são consequências sociais do plano de ajustamento?
- Isso é o que toda a gente diz.
- Mas não é verdade?
- Em parte não é verdade. Cada vez que me dizem "no ano passado
houve menos 500 crianças do que no ano anterior, isto é a crise",
a primeira coisa a fazer é ir ver como é que foram os últimos dez anos,
e depois ver qual é a evolução! Há situações da natalidade que fazem
pensar que talvez - talvez! - nos próximos cinco anos se confirme uma
tendência para uma redução suplementar, mas não vamos esquecer de que
estamos em redução há 40 anos!
- A troika não é responsável por tudo aquilo que aconteceu em
Portugal...?
- Não. São os portugueses! São os responsáveis por tudo o que aconteceu
em Portugal, desde o desvario do endividamento, da dívida, de ter de
chamar a troika - e por tê-la cá naquelas circunstâncias, por se ter
adiado um, dois, três anos, o que podia ter sido feito antes em muito
melhores condições. Nós chamámos a troika...
- ...No limite?
- No limite da guilhotina. Já a lâmina vinha a cair, alguém pôs lá uma
mãozinha, o que eu agradeço, porque se a guilhotina tivesse caído era
um bocadinho pior. Agora, nós somos os responsáveis do que fizemos.
Houve especulação financeira mundial? Houve, no mundo inteiro, não foi
só em Portugal. Houve banditismo financeiro americano e multinacional?
Houve, no mundo inteiro, não foi só em Portugal. O que aconteceu de mal
a Portugal aconteceu no mundo inteiro, mas nós estávamos
particularmente mal preparados para isso.
- Há pouco, ia falar da natalidade. A natalidade foi colocada agora no
centro das atenções pelo Governo. Esse é um dos problemas ou é mais um
chavão?
- Já é, pelo menos, o terceiro ou quarto Governo que nos últimos 30
anos faz da natalidade o problema mais importante do País. E eu acho
que, em grande parte, é demagogia. Já há quem tenha oferecido cheques
de 200 euros a receber 18 anos depois... Houve um candidato a
primeiro-ministro que disse, um dia, "eu em quatro anos de Governo
farei aumentar a natalidade 3%"!... Isto são tolices medonhas
porque não se mexe na natalidade assim, nem com 200 euros, nem com ação
do Governo, nem sequer com creches. É um conjunto de medidas, de ações,
de sistemas, ao longo do tempo...De décadas! A França tem uma política
natalista há 80 ou 90 anos!
- Isso é resultado também da evolução económica do País?
- Os valores são diferentes. As pessoas muito conservadoras e muito
reacionárias gostam muito de dizer "hoje já não há valores".
Isto é errado. Hoje há valores, são é diferentes do que eram há 40 ou
50 anos. Dito isto, é verdade que vale a pena estudar a demografia e
prever, como fizemos na Fundação Francisco Manuel dos Santos ou na
PORDATA, e no estudo que está agora a acabar de decorrer, que fizemos a
meias com o Instituto Nacional de Estatística sobre a fecundidade. É
verdade que dentro de 30 anos, ou 40, pode haver em Portugal sete
milhões de habitantes. É verdade!
- E isso é bom ou é mau?
- Se for essa a escolha dos portugueses, é o que deve ser, primeiro.
Segundo, pode ser mau. Isto é, esses sete milhões podem ser um grupo de
pessoas tão idosas, com tão pouca vitalidade para trabalhar, para
pensar, para estudar, para imaginar, seja para o que for, que o País se
transforme numa espécie de estaleiro de idosos. E depois, das duas uma:
ou assim fica ou é uma estação de férias para os países mais ricos e os
países com mais genica, ou então pura e simplesmente, que é outra
solução, vêm pessoas de África, da Ásia, da América Latina...
- A imigração. Vivemos num mundo globalizado. Se Portugal tiver
condições económicas para produzir e para exportar, nós que somos um
País de emigrantes, podemos olhar também para a imigração como ajudando
a resolver esse problema da falta de natalidade e envelhecimento da
população?
- Com certeza. Vai ser inevitável que Portugal tenha novamente, daqui a
dez ou 20 anos, novas vagas de imigração. Como naquele pequeno período
nos anos 1990, em que de repente apareceram em Portugal meio milhão de
estrangeiros, brasileiros, ucranianos, moldavos, cabo-verdianos,
guineenses. Para os meus valores é bom que Portugal seja uma sociedade
plural e não seja uma sociedade homogénea, tudo igual uns aos outros.
- Quando se fala na coesão social, fala-se também da reestruturação nas
infraestruturas, hospitais, tribunais, escolas. Como é que olha para
essa realidade?
- Acho que alguns desses passos foram muito bem dados. Uma das causas,
nos últimos 30 anos, da segunda vaga de decréscimo da mortalidade
infantil, quando estava a 10 ou 15 e foi trazida até aos 2,3 por mil,
ficou a dever-se muito ao desaparecimento de centenas de maternidades
que não o eram e à organização de um serviço de assistência neonatal às
mães em risco ou às crianças acabadas de nascer em risco. Era
necessário fechar maternidades que se julgavam capazes e não tinham os
meios necessários. Criar ambulâncias que fizessem os cinquenta
quilómetros até Lisboa, até ao Porto ou até Faro. E portanto, foi feita
uma reestruturação, muito combatida, como se lembram, e na qual
colaboraram as ministras, aliás, muitas mulheres, a Leonor Beleza, a
Maria de Belém, mais duas ou três, o Correia de Campos...
- ...Que pagou politicamente por isso...
- Pagou por todos. E ele tinha razão em tentar reestruturar e
aprofundar a reorganização do sistema de saúde. Entre nós, o que me
mete medo é que quando se começa a fazer uma coisa, geralmente, depois
vai-se longe de mais. É como com as escolas.
- O racional dessas medidas é sempre o número de pessoas que vivem
nessas regiões. Isso não é também um contributo para uma desertificação
rápida do País?
- Pode ser. Não chamo desertificação, é despovoamento. A sociedade
moderna vai ser uma sociedade em que não há tanta população rural
quanto havia no passado ou hoje. Isso não me preocupa.
- Isso é a tendência universal, a concentração nas grandes cidades.
- É. Preocupa-me é que o despovoamento seja acompanhado de
desertificação no sentido de abandono, porque a desertificação implica
perder recursos, águas, florestas, produção agrícola, localidades para
turismo. Há sítios no mundo, na Escócia, na Alemanha, nos Estados
Unidos, na França, na Itália, despovoadíssimos, ainda mais do que
Portugal, que são sítios belíssimos ou interessantes do ponto de vista
turístico,cultural, ou para a saúde, caça, flora, ou para produzir!
Portugal precisa de produzir floresta em grandes quantidades e para
isso, muitas vezes, é melhor despovoar. Se for feito sem atenção,
chama-se desertificação e pode ter muito maus resultados. Se for feito
com atenção, chama-se despovoamento e eu não sou desfavorável. Fui
visitar escolas no Alentejo, aindahá dez anos, que tinham três, quatro,
cinco alunos. O processo pedagógico, social, cultural, psicológico, de
formação destes alunos não é aceitável! Estes miúdos têm de ter
20,40,50 colegas, têm de mexer-se de uns lados para os outros. Mas
depois os ministérios perdem a cabeça, os diretores-gerais perdem a
cabeça e em vez de quatro é dez, depois em vez de dez são 20, depois
dos 20,40, e depois não se repara, não se faz a diferença. Há sítios
onde se justifica uma escola de 20 alunos.
- Passamos para o terceiro tema. Há pouco dizia que tinha uma certa
preocupação por ver que o Governo não preparou o investimento económico
para um futuro breve e por isso propôs debater "as condições
políticas para o desenvolvimento económico". O que é que podia ter
sido feito aproveitando este ajustamento?
- Estudo e inquérito real a milhares de empresários portugueses e
estrangeiros. Para saber exatamente o que é que os faz vir para
Portugal, oqueéque os faz sair. Há cinco anos, fui convidado a assistir
a uma reunião em que um secretário de Estado ia falar com umas dezenas
de empresários. Anunciou as 200 medidas que ia tomar. Quando terminou,
o primeiro empresário que estava na sala pediu a palavra e disse:
"O Estado anuncia isso tudo, eu fico muito contente e gostava
muito que muitas dessas medidas fossem, efetivamente, tomadas. Isto vai
demorar muito tempo, eu propunha-lhe só uma coisa: o Estado podia
começar a pagar o que deve aos empresários, e com grande rapidez, e eu
já não queria mais nada. E o secretário de Estado, diante de toda a
gente - o desplante é que é espantoso -, disse: "O senhor, se não
se importa, no fim da reunião dá-me o seu nome e fala com a minha secretária que eu vejo o seu caso e resolvo." Isto não é política
de investimento. Portanto, primeiro, estudar o que os empresários
querem e precisam, saber para o que estão disponíveis e o que querem
fazer, o que é preciso para eles voltarem ou aumentarem os seus
investimentos. Depois disso, falar seriamente com os sindicatos e ver
em que é que podem contribuir.
- E podem?
- Acho que sim.
- Não os acha, alguns, talvez a maior parte, um tecido muito
- Está à espera de que eu lhe diga... os da Autoeuropa contribuem para
o desenvolvimento e para o investimento.
- A Autoeuropa é só uma.
- Mas há mais empresas. Talvez não tão poderosas.
- Há um sindicalismo mais moderno a emergir?
- Creio que sim, que é o sindicalismo de empresa. O sindicalismo nas
empresas, não nos sectores, porque quando se mete o sector em que vem,
de um lado, a empresa de informática ou de química mais moderna do
mundo, e do outro lado um vão de escada completamente perdido...
- Olhamos para os sindicatos e vemo-los muito atravessados pelos
interesses dos partidos. Não vê também isso ainda assim, hoje?
- Vejo. Mas sabe que quando você chama as pessoas, elas são capazes de
dar o melhor de si. Se você chamar, você Governo, você patrões... Os
patrões falam pouco diretamente com os sindicatos.
- E quando falam, como é o caso da Autoeuropa, dá resultado?
- Dá. Se os patrões estão disponíveis para falar e para encontrar
soluções, encontram soluções. Para o investimento, não esqueça:
burocracia, justiça, contratos a longo prazo, estabilidade fiscal e
legal.
- Temos falado nesta entrevista do consenso que é necessário entre os
partidos. O acordo do IRC que foi feito entre o PS...
- [Interrompendo] Foi uma ajuda.
- E é um princípio para fazer mais nesta área e entre os partidos? Era
exigível que isso acontecesse?
- Muitíssimo mais. À volta dos investimentos públicos do QREN, podia
também fazer-se, para dar tempo à revisão constitucional, um trabalho,
um acordo entre partidos, princípios fundamentais para a definição do
Orçamento. Em vez de inscrever no Orçamento os limites da dívida, os limites
do QREN e do IRS, criar alguns princípios que associassem os principais
partidos a uma política, para que um partido não venha pôr em causa o
que o outro fez. À volta disso, um grande programa de desenvolvimento
do investimento, interno e externo. Isto é matéria para um formidável
acordo nacional.
- Para sairmos deste programa de ajustamento, em sua opinião, Portugal
deve procurar uma saída à irlandesa, ou limpa, como se diz, ou é melhor
um programa cautelar que nos dê garantias?
- Até essa discussão se transformou numa guerra de capoeira, numa
guerra política, porque se um diz que quer a saída limpa, o outro diz
"não, não, eu quero à irlandesa", "não, não, eu quero à
italiana", ou à grega, "não, não, eu quero um programa
cautelar". Agora, dentro dos programas cautelares, já há três
hipóteses, o cautelar forte, o cautelar fraco, o cautelar assim-assim.
Eu não sei o suficiente de finanças internacionais para poder
responder. Parece-me que depois destes três anos, em que o facto de
haver um apoio externo ao ajustamento serviu para alguma coisa, sair
bruscamente só para ser machista, para ser marialva, para dizer "é
limpo, é uma saída limpa"... penso que há gente no Governo que
quer isso, e depois na oposição também querem. Querem se o Governo quiser
o contrário, como é o costume. Parece-me que um ou dois anos com a
parede escorada ainda, com um bocadinho de apoio, já não é de
canadianas, para voltar ao outro exemplo, mas com uma ajuda, acho que é
melhor. É um recado dado ao exterior...
- [interrompendo] Conhece a classe política. Não seria melhor estarmos
controlados ainda mais um tempo por alguém de fora, para não fazermos
disparates?
- Controlados, acho que não. Escorados, acho que sim. Devemos ter
durante um ano ou dois, sobretudo na União Europeia, não sei se no
Fundo Monetário, alguém a quem prestar contas, o Banco Central Europeu
e a Comissão, e o Parlamento, para mostrar que somos capazes de tomar
conta do assunto. £ uma das maneiras de o fazer era assinar um acordo,
mais uma vez - estou obcecado com isso -, um acordo PS-PSD que se
chamasse "Acordo de Colaboração e Cooperação Pós-Troika",
para dois ou três anos. Com esse acordo, garanto-lhe que metade do
assunto cautelar está resolvido.
- Mas se o Presidente da República conseguiu estimular o aparecimento
desse acordo, quem é que poderá fazê-lo? Só a absoluta necessidade, um
dia?
- Se for verdade o que diz, é mais uma vez a justificação do meu
pessimismo ou do meu ceticismo. Se fosse chefe do PS, tinha-o proposto
eu, por exemplo.
- O que é que espera das próximas eleições europeias? Uma vitória do
PS?
- Mais abstenção, mais desinteresse. No caso português, não estou à
espera do aparecimento de coisas de extrema-direita, nacionalistas,
porque em Portugal não há disso.
- Fenómenos populistas. Não vê nenhuma personagem que possa estimular o
seu aparecimento?
- Não, em Portugal não creio que vá haver disso.
- Não acredita que Marinho e Pinto tenha um resultado fora do normal em
Portugal?
- Não estou à espera de que ele tenha um resultado fora do normal.
- Está à espera de que estas eleições tragam dificuldades para António
José Seguro, no PS, ou mais para Pedro Passos Coelho na chefia do
Governo?
- Parece-me que as eleições europeias vão ter, primeiro, resultados
negativos, abstenção, desinteresse pelas questões europeias. E depois
vão talvez forçar a ideia de que há uma espécie de empate, de travão
mútuo, em que o PS não consegue vingar, o Governo, mesmo com coligação,
também não consegue vingar, o que é um anúncio de que as eleições
legislativas a seguir poderão confirmar essa espécie de empate. E o
empate não sei se é boa solução. Ainda não percebi se um empate é um
estímulo ao acordo que eu proponho sistematicamente ou se é um travão a
esse acordo.
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(*) - «DN» de 9 de Março de 2014