As polémicas nacionais atingem por vezes graus inesperados de empenho irracional. É o tom das grandes emoções. É impressionante a fúria dos ataques às comemorações do 25 de Abril! Correm petições a exigir a demissão de Ferro Rodrigues. Reclama-se a destituição do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa! Já se sugere a realização de novas eleições, porque os deputados não respeitariam a vontade dos eleitores. Os argumentos são delicados como vetusta artilharia. Não se comemora a Páscoa, não se reza ao domingo, não se acompanham os mortos ao cemitério, não há casamentos nem baptizados, nem sequer se celebra o dia da Pátria, o dia de Camões… Mas há políticos a festejar Abril, a festejarem-se a si próprios e a proteger os seus privilégios! Nunca se viu um tal desplante dos comunistas e dos maçons! Passados perto de cinquenta anos, quase meio século, meu Deus, ainda há quem queira marcar aquela data, quem a considere superior à crença religiosa, ao amor de família, às festas da pátria…
Mas também é perturbador, cinquenta anos depois de fundada a democracia, em plena pandemia que mata três dezenas de pessoas por dia, ao mesmo tempo que a vida social está suspensa, este absurdo que é o de ver todos os órgãos do Estado, os seus partidos e as suas instituições, comemorarem, em romagem de saudade ou romaria festiva, a revolução de 25 de Abril! A lembrar os anciãos do 5 de Outubro ou os decrépitos do 28 de Maio! Fechadas as escolas, proibida a circulação de um concelho para o outro, interdito o enterro dos mortos, afastados os passeios dos jardins, limitados os giros de cães, silenciadas as missas, cerrados os bares e impedidos os circos, mas aberto o Parlamento numa incompreensível cerimónia que não honra ninguém!
Os insultos trocados e que variam entre fascistas, comunistas, maçónicos e beatos, fazem tremer os pilares da República! Revolucionários crentes e destemidos defendem, com ar seráfico, a necessidade de respeitar os rituais celebrativos da democracia! Liberais exigem a proibição das comemorações! Conservadores vituperam as cerimónias de culto da memória! Esquerda e direita acusam-se de crimes de lesa-pátria ou de atentado contra a liberdade. Verdade é que a tolice e a inutilidade destas celebrações só são comparáveis à histeria daqueles que as atacam. As comemorações em miniatura e com cenografia de afastamento social são tão ridículas que não deveriam despertar mais do que desdém e piedade. Mas não! Acordaram verdadeiras iras democráticas e republicanas! E Ferro Rodrigues foi transformado em temerário defensor da democracia por uns, monstro jacobino por outros.
Mais uma vez, vivemos dentro daqueles círculos de fogo onde não se consegue pensar diferente dos fanáticos, meditar com inteligência fora das labaredas assassinas, nem tentar compreender longe das hordas dos pensadores oficiosos. E, tal como antigamente, só há dois campos, o da democracia ou o do fascismo. O da revolução ou o da reacção. Forçam-se pessoas, sob pesado opróbrio público e debaixo de fortíssima condenação moral, a tomar partido, a garantir que se está do lado da Pátria ou da Liberdade!
É espectáculo inesperado ver socialistas e comunistas, verdadeiros bolchevistas, reclamar o direito de levar a cabo a liturgia democrática e o dever da República de realizar as comemorações celebrativas, enquanto Republicanos jacobinos criticam a operação com veemência! Recordar antigos revolucionários que, em seu tempo, consideravam os republicanos das romagens do 5 de Outubro uns patetas impotentes que pouco mais valiam do que discursos vácuos e ramos de flores nos cemitérios… Vê-los hoje a exigir celebração dá vontade de sorrir… Recordar Republicanos maçónicos que, durante décadas, nunca falhavam as romagens da República e vê-los agora a considerar de mau gosto umas pindéricas festas do 25 de Abril provoca estupefacção!
Ver e ouvir conservadores, nacionalistas, liberais e democratas de direita aproveitar a pandemia para finalmente se exprimirem contra a democracia, o Parlamento, a Assembleia da República e os seus deputados, mas em nome da decência e da liberdade, é quase cómico.
E, no entanto, é tudo tão simples… As comemorações do 25 de Abril são obsoletas. Mas são inocentes e não prejudicam ninguém, a não ser a democracia. As celebrações do 25 de Abril em plena quarentena são absurdas. Mas inofensivas, a não ser para quem lá for sem protecção profilática. Criticar seriamente estas festividades é perda de tempo e desperdiçar argumentos.
Esta polémica tem revelado o pior do ambiente em que vivemos. Assim como as dimensões mais sombrias da democracia que temos. Um projecto inconsequente obrigou pessoas e instituições a tomar posição com ar desassombrado e solene. Os políticos pensam que agredir a população é a melhor maneira de salvar a política. Os democratas sentem-se no dever de recordar aos cidadãos que eles são os proprietários. Os Jacobinos repetem os mesmos erros de sempre, fecham as portas, protegem as suas hostes, expulsam os liberais e os conservadores, mandam calar os oposicionistas, insultam as vozes livres.
Os democratas de consciência pesada entendem que não podem deixar de tomar partido, sob pena de serem considerados fascistas. Socialistas e comunistas entendem que este é o momento de cerrar fileiras por um novo bloco histórico de esquerda, mesmo que tenham de se aliar com simples democratas e republicanos filhos de Portugueses honrados! Ateus defendem as cerimónias de Páscoa, ora silenciadas, argumento bom para criticar a excepção aberta para estas tristes festas de Abril. Arruaceiros por inclinação, os populistas de esquerda revelam uma propensão inesperada para o bom comportamento institucional.
Realizar as comemorações do 25 de Abril em quarentena, depois de proibir funerais e baptizados, aulas e cinemas, missas e jantares, concertos e velórios, é simplesmente ridículo, revela políticos inseguros, pobres diabos novos ricos da política… Criticar a sua realização com fúria redentora e hordas de cavaleiros da virtude e aproveitar para desencadear uma operação de limpeza moral é tão caricato quanto levar a cabo cerimónia tão patética.
O reino dos céus espera por ambos…
Público, 26.4.2020