sábado, 29 de outubro de 2022

Grande Angular - O génio de António Costa

 É um raro percurso político o de António Costa. Foi, até hoje, um caminho difícil, no país e no partido, entre Soares e Sampaio, entre Guterres e Sócrates. Foi uma jornada muito difícil, com Soares e Sampaio, com Guterres e Sócrates. O que pareceu ser uma eterna assessoria, foi finalmente uma obra de arte a desbravar um caminho e a subir a montanha.

 

Inteligente, um grande prático do poder, entre a esquerda e a direita, entre o mercado e o Estado, este empírico das artes públicas nunca governa pela ideologia ou pela doutrina, mas sim para a galeria e o eleitorado. Vive com a mesma sinceridade as dificuldades das empresas e a má sorte dos trabalhadores. Sabe, como poucos, que a democracia se faz com os ricos e os pobres. E ele tenta governar para os dois, ora para uns, ora para os outros.

 

Libertou-se do seu negro passado que lhe adveio da experiência com o governo de Sócrates. Resgatou os seus amigos que também ajudaram este último e agora o ajudam a si, com o mesmo animo de áulicos dedicados. A todos soube mostrar que o seu futuro político dependia dele e só dele. Já meteu na ordem vários candidatos a Delfim e outros putativos sucessores.

 

Entre Lisboa e Berlim, entre Bruxelas e Frankfurt, construiu o seu caminho e modelou um raro perfil de talento na galeria europeia. Agrada à esquerda e à direita, com rara bonomia.

 

Na primeira fase dos seus governos, soube ser colaborador e apoiante do Presidente da República, para, na segunda fase, inverter os papéis e mudar o acento tónico. E assim soube resolver, melhor do que os antecessores, os defeitos do regime semipresidencialista.

 

Formou governo sem maioria e conquistou o poder apesar de ter perdido as eleições. Soube servir-se de quem o queria matar e rejeitar quem o queria ajudar.

 

Deu um contributo eficaz para o crescimento moderado do Chega, mas suficiente para liquidar o CDS e arrumar o PSD por um tempo considerável.

 

Conseguiu destroçar, quem sabe se definitivamente, as esquerdas radicais do PCP e do Bloco, seduzindo-os o suficiente para o ajudarem a contragosto, sabendo eles, como sabiam e verificaram, que era um episódio inevitável, é certo, mas provavelmente letal. Com o mesmo sorriso, chamou-os e desbaratou-os.

 

Graças a Costa, nunca a extrema-direita esteve tão forte nos resultados eleitorais, mas também se lhe deve o facto de o Chega se ter deixado, talvez irremediavelmente, seduzir pela liturgia democrática. É ainda sua obra a circunstância de as esquerdas revolucionárias nunca terem sido tão minoritárias e insignificantes como agora.

 

Com o mesmo discernimento empírico e pragmático, soube e tem sabido governar, ora à esquerda, ora à direita, com proclamações, certamente, mas sem compromissos políticos, económicos ou sociais.

 

Teve a má sorte da pandemia e da guerra na Ucrânia. Mas tem sabido utilizar uma e outra a seu favor, mostrando aos eleitores que é o melhor a tratar dessas duas calamidades.

 

Os êxitos políticos deste homem, indiscutíveis, são apenas comparáveis aos seus desastres ou, noutras palavras, à sua incapacidade.

 

Consigo, diante de si, o Serviço Nacional de Saúde, sempre com mais dinheiro, sempre com mais médicos e enfermeiros, não consegue dar conta do recado: as filas de espera, os adiamentos e a desigualdade social ameaçam o que de melhor se fez. O definhamento de SNS, ameaça real, tem apenas um responsável: a autoridade.

 

Durante o seu tempo, a Justiça portuguesa, promotora da desigualdade social, não consegue encontrar o caminho da reforma e da eficácia, nem consegue pelo menos modernizar-se o suficiente para escapar à corrupção, para reduzir a indolência, para enfraquecer a burocracia e para conter os interesses enquistados no sistema.

 

Não conseguiu inverter as tendências para a perda de investimento privado, nem para o desaparecimento das melhores empresas portuguesas ou estrangeiras em Portugal. 

 

Diante de si, aumenta o número de emigrantes portugueses, com valores anuais a fazer lembrar os anos sessenta do século passado ou os anos noventa do século XIX. Mas parece não haver política capaz de olhar para esse problema. Consigo, aumentam os imigrantes estrangeiros em Portugal, ilegais, cativos de redes de passadores e presos por traficantes de mão de obra, sem que as autoridades tenham vontade ou força para resolver. Estes problemas, mais o do envelhecimento da população, servem para magníficos discursos de “homem de Estado preocupado”, mas continuam virgens de tentativas de resolução.

 

Depois de promessas repetidas e de programas para uma nova economia, uma nova ciência e a modernização digital; e apesar de todas as tentativas de reflectir, programar e planificar, não conseguiu até hoje ultrapassar o âmbito dos tratados e compêndios encomendados e da literatura tecnocrática e sistémica, materiais de uma aflitiva esterilidade. 

 

Talvez tenha percebido ou identificado alguns dos mais sérios problemas da sociedade portuguesa, da falta de capital e de formação, à pobreza e à fragilidade de um Estado obeso. Da ausência de experiência democrática à pobreza das instituições livres. Da diminuta tradição liberal à quase nula independência individual. Mas decidiu há muito adiar o que é importante e crucial, o que é difícil, o que não se pode resolver numa geração, o que exige que vá contra a corrente fácil, o que implica não agradar a todos ao mesmo tempo e o que não está na moda.

 

É verdade que as suas políticas, no seguimento de outras anteriores, têm sabido aliviar a pobreza e a destituição. Uma parte da desigualdade económica é realmente contrariada pelo esforço público, isto é, pela Segurança Social, pela fiscalidade e por toda a espécie de apoios e subvenções estatais. É verdade e é bom que assim seja, em nome de mais decência na sociedade. Mas não é menos verdade que todos esses remédios sofrem do mesmo: da precaridade e do carácter provisório dessas medidas. As distribuições de rendimentos e de subsídios em curso, a toda a gente, incluindo a quem não precisa, são bons exemplos dessas políticas e dessa visão do mundo.

 

Tendo afirmado a prioridade absoluta à luta contra a pobreza e a desigualdade, o que é nobre e importante, deverá um dia confessar a tremenda falta de resultados. O alívio do sofrimento, tantas vezes real, é sempre no imediato e no curto prazo. Como o Carnaval, o lenitivo acaba na terça-feira. A dor recomeça na quarta-feira. 

Público, 29.10.2022

sábado, 22 de outubro de 2022

Grande Angular - Duas ditaduras

 Vale a pena recordar. Duas imagens ou sequências que servem para ilustrar um novo mundo possível. Coincidentes no tempo, mas também na intenção. A primeira tem origem lá muito longe, nos palácios de Pequim: são as cerimónias inaugurais do grande congresso quinquenal do partido comunista chinês, numa esplendorosa sala com milhares de delegados, quase todos homens, muito aprumados, quase todos iguais, com os mesmos fatos escuros, as mesmas gravatas, o mesmo sapato escuro envernizado, a mesma pose, a mesma maneira de aplaudir, a mesma inclinação de cabeça, o mesmo sorriso que não é bem um sorriso, todos colocados simetricamente, arrumados em perfeita geometria, com o grande líder à frente, ao centro, e todos os restantes iguais, hirtos, áulicos em filas de prioridades e dignidades. Mantém-se a foice e o martelo, pois claro, abundam as bandeiras chinesas vermelhas, evidentemente, mas o uniforme de Mao desapareceu, agora é o fato burguês e burocrata do Ocidente, feito uniforme civil. Os soldadinhos de chumbo tinham mais vida e alegria. As marionetas têm mais fantasia.

 

A segunda vem de mais perto. De Moscovo, pois claro, onde um ditador minúsculo percorre corredores imperiais e atravessa portas colossais, com enormes porteiros e soldados gigantescos, em gestos de autómatos e que apenas aumentam o ridículo do pretenso imperador. Este último, a passo saltitante, mas com aparência de agilidade, aproxima-se de um pódio, numa sala imensa, preenchida com centenas de cadeiras arrumadas e ordenadas, com quase só homens, títeres ungidos, vestidos da mesma maneira, hirtos, aprumados, de fato escuro e gravata a condizer, de caras fechadas sem sorriso nem vontade, só com esgar obediente, a aplaudir ao mesmo tempo, com os mesmos gestos mecânicos. Num cardume, há mais liberdade.

 

Naquelas salas imensas, preparadas para reduzir a gente, criar a ilusão do poder, fingir a majestade do colectivo, simular a grandeza dos bens e a pequenez das pessoas, encena-se a liturgia do totalitarismo, como poucas vezes aconteceu na história. Aquelas cerimónias revelam as mais sérias advertências contra a humanidade, sobretudo contra a democracia e a liberdade. Uma coincidência seguramente não casual: em ambos os casos, o poder não é apenas do Estado e da força militar, é também o do ditador, do líder indiscutido e não eleito. Outras coincidências não escaparam. Ambos os países se dizem ameaçados. Ambos apelam à sua história e ao seu grande passado, para legitimar o renascimento actual. Ambos entendem que são imprescindíveis ao mundo: até agora, a Rússia pelos recursos naturais e a China pelo trabalho industrial. Mas, a partir de agora, pela força militar, pela vontade imperial e pela predisposição para usar a arma nuclear.

 

É impossível saber se estes dois homens e seus países alguma vez serão aliados sérios e duráveis, se conseguirão partilhar o mundo ou parte dele, se poderão ser capazes de afrontar todos os outros, poderosos ou não. Há quem pense que uma aliança séria e consistente entre estas duas potências é impossível e que qualquer aproximação temporária resulta sempre em desastre. Até nos tempos da primeira grande aliança comunista, com Estaline e Mao no poder, a amizade durou pouco, a cumplicidade foi sonho de breve duração, apesar de ter sido de terror para a Europa e a América. Ali perto, a Índia e o Japão constituem outros polos asiáticos também poderosos. E as Coreias não se podem esquecer. Certo e seguro, para já, é que as duas ditaduras conseguem condicionar o mundo inteiro, intimidar os vizinhos, ameaçar as nações que entenderem e criar uma crise económica à escala planetária quase sem precedentes.

 

Curiosamente, Putin e Xi, assim se chamam os dois ídolos, entenderam ser necessário recordar aos seus e ao mundo que defendiam as suas pátrias, não aceitavam ordens, não obedeciam a poderes estrangeiros, fariam tudo o que fosse necessário para defender os seus interesses, que poderiam utilizar a força armada quando assim o entendessem e que não abdicariam nunca do uso da arma nuclear. Mais claro não poderiam ter sido.

 

Que não sobrem dúvidas: estão ali, naquelas imagens de ditadores quase sagrados, os maiores riscos de guerra, os maiores inimigos da paz mundial, as maiores ameaças contra a democracia e a liberdade. Estão ali as principais e mais letais armas contra as repúblicas de cidadãos, de homens e mulheres livres e iguais, de ideias que se exprimem, de acções e de gestos que se escolhem, de sonhos individuais que se realizam e de promessas que se cumprem. Estão ali os principais inimigos dos direitos humanos, da dignidade individual e da liberdade de pensamento e expressão.

 

Em pouco mais de uma década, o mundo mudou. Para nunca mais voltar a ser o que era no fim do século XX. Agora, novamente, a democracia está em recuo. As ditaduras políticas, militares ou religiosas na ofensiva. Os equilíbrios que se conheciam desapareceram, novos estão em preparação. Regressa-se ao tempo dos blocos, agora com nova configuração. Esta fase de transição é perigosa. A cada novo episódio surge nova ameaça. As duas grandes ditaduras tiveram já alguns êxitos, nomeadamente abriram divisões dentro da Europa e das Américas, onde encontraram mesmo admiradores. Souberam aproveitar as fragilidades e os erros do mundo capitalista e democrático. Muitos se convenceram, do lado de cá, que aprofundar o comércio e a colaboração com aqueles dois países era suficiente para os amarrar ao mundo da cooperação internacional e do equilíbrio de paz internacional. Assim agiram. Até ficarem nas mãos da Rússia para os recursos naturais, especialmente gás e petróleo, mas também cereais. E nas mãos da China, para toda a espécie de trabalho industrial e para a aquisição da dívida pública de quase todos os países ocidentais. É difícil ver, com precisão, as alternativas. Todas têm defeitos e riscos. Mas as vias seguidas foram talvez as que mais expuseram debilidades do ocidente.

 

No novo desenho do mundo, em curso, é errado pensar que os blocos já estão definidos. Grande parte das Américas, a África e a Ásia, assim como o mundo islâmico, estão sob influência, sedução, atracção e conquista das duas grandes ditaduras. Também nestes continentes, a democracia ocidental e o capitalismo estão em recuo, defrontados e cercados pelos regimes totalitários, claríssimos nas noções de poder, de Estado, de força militar e de imperialismo.

 

Não tenhamos dúvidas. O que está em causa é a democracia. E a liberdade.

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Público, 22.10.2022

sábado, 15 de outubro de 2022

Grande Angular - Trabalhos práticos

Cuidar do urgente. Tratar do necessário. E pensar o possível. Esta poderia ser uma das maneiras de resumir a acção política. No caso português actual, aplica-se seguramente. Podemos ter a certeza de que há desastre à nossa espera se os cidadãos e os políticos não perceberem que nenhuma das três tarefas é dispensável. Mas todas têm a sua lógica.

 

Esta últimas semanas trouxeram alguns marcos que aconselham à reflexão. A quase aprovação do orçamento, com os votos que já se antecipam ou conhecem, inicia um novo ciclo. Tudo leva a crer que seja um orçamento equilibrado, realista e que recolheu apoio de alguns sectores sociais. Se vai ter de ser revisto é problema que nos ultrapassa.

 

A agitação inútil criada entre o Presidente da República, o Governo, a Igreja Católica, a imprensa, as televisões e os comentadores, a propósito da pedofilia no seio da Igreja, talvez tenha chegado ao fim desta primeira fase, dolorosa e causadora de danos. As próximas fases serão certamente menos surpreendentes. Mas toda a gente percebeu que o assunto é delicado e a asneira fácil. O futuro não será melhor: aberto o livro, nunca mais a crónica cessa.

 

Em princípio e teoricamente, dois termos sublinhados, estamos dispensados de crises de maioria, de incapacidade legislativa e de forças de bloqueio. O Governo está feito e seguro. Não há nenhuma razão para que os espíritos se ocupem com intrigas e sucessões. Sabe-se o que de pior aí vem: guerra, inflação, problemas de abastecimento e custo de vida, défice energético assustador e talvez uma deriva social em resultado dos problemas económicos. É pouco provável que haja ainda mais surpresas ou problemas maiores.

 

O governo e as autoridades sabem o que as espera, de imediato. As urgências são todas conhecidas. Mesmo se difíceis. Rever a política de defesa nacional e a organização das forças armadas: a guerra na Europa assim o exige. Preparar as emergências energéticas: a guerra impõe. Cuidar do emprego e da segurança social: é prioridade a curto prazo. Reformar o Serviço Nacional de Saúde, com inusitada energia e rara determinação. Rever os sistemas de formação e recrutamento de professores e médicos: toda a gente sabe que já é tarde!

 

Estas são as urgências. Sabidas e conhecidas. O Governo tem o tempo e os meios para o que é essencial. Só não fará o que é preciso se não quiser, se se deixar enredar nas tramas dos interesses e se repousar em gente incompetente. Mais importante, decisivo e difícil é tratar do que é necessário. Entre tantos temas e tantos assuntos, um avulta, pela dificuldade e pela força exigida para tarefa: as instituições.

 

Apesar de todas as mudanças feitas nos últimos anos, ou mesmo nas últimas décadas, muito do que faz parte das instituições, seu lugar no Estado e na sociedade, seu funcionamento e suas actividades ficaram muitas vezes na mesma. Têm pouca liberdade, pouca autonomia e dependem do governo e dos interesses. Os deveres e as obrigações diante do Estado e dos cidadãos estão mal definidos. As obrigações do pessoal político são obscuras. Os deveres dos grandes serviços públicos para com os cidadãos são considerados coisas menores. Estes últimos, aliás, são tratados com imperial desprezo e considerados apenas consumidores. As grandes organizações e instituições da sociedade vivem na dependência e na marginalidade. A administração local é pobre em muito do que é essencial.

 

As grandes instituições, públicas, privadas ou mistas, são a força da sociedade e o suporte da política. As instituições, como sejam as universidades, as igrejas, as associações, as autarquias e as magistraturas, enriquecem a vida pública e protegem os cidadãos. Sendo capazes de duração e de mudança, as instituições duram mais do que uma geração, mais do que um regime. São essenciais à vida em comunidade. Muito especialmente a justiça. Esta é a mãe da democracia, a garante da liberdade, o nervo da igualdade e a exigência da cidadania.

 

A necessidade de justiça começa logo na vida política. As incompatibilidades e os impedimentos dos agentes políticos são bem o retrato da miséria das nossas instituições. Após quase cinquenta anos de fundação de um novo regime, da aprovação de uma Constituição e do início da democracia, ainda as questões de corrupção, de favoritismo, de nepotismo, de privilégio partidário, de imunidade e de responsabilidade estão longe de resolver. O essencial da recompensa e do castigo, mecanismo essencial para a liberdade, está ainda por esclarecer. O serviço que a justiça deve prestar aos cidadãos e à democracia está longe de ser cumprido. Os ricos de fortuna, os poderosos da política, os importantes dos credos e os porta-vozes dos interesses têm a sua justiça, as suas leis e os seus magistrados. É ainda possível usar a política para favorecimento familiar e vantagem própria. É ainda possível aos milionários e aos poderosos favorecer-se à custa do Estado, passar impune e quase fazer troça da justiça. 

 

É possível reformar muito na justiça e no funcionamento do sistema político. Mas também talvez seja necessário tocar na Constituição e rever dispositivos essenciais. Não é obrigatório, mas é possível. Mais um argumento para se aproveitar os próximos anos que, apesar de difíceis, são bons conselheiros para as reformas que exigem um clima de serenidade. Há hoje, na representação nacional, forças suficientes e uma reserva de serenidade para tratar do que é necessário. Só assim se resistirá ao desgaste do populismo.

 

Os socialistas têm diante de si um desses raros momentos da história em que não é difícil saber o que se deve fazer, em que se tem tempo para a obra, em que se possuem os meios indispensáveis, em que talvez tenham o apoio da maioria dos portugueses e em que podem ter aliados no campo da democracia. Será quase criminoso não aproveitar esse tempo e esse momento. Para que serve gastar a energia de tantos políticos, de tantos autarcas e de tantos cidadãos se é apenas para o curto prazo, o efémero e o superficial? Qual a utilidade da enorme mobilização de recursos e de vontades se depois nada ou pouco se faz com essa força? É verdade que os socialistas têm páginas negras nas suas folhas de serviço. Mas quem as não tem? Se é verdade que ninguém é perfeito, também é que quase não há irrecuperáveis. A força da necessidade é muita. Mas também a crença de que a política vale a pena se concebida e vivida acima da mediocridade.

Público, 15.10.2022

 

sábado, 8 de outubro de 2022

Grande Angular - O caldo entornado

Ainda há tão pouco tempo era possível revelar tranquilidade! Havia maioria de governo e promessa de estabilidade. Ao contrário da história das últimas décadas, o semipresidencialismo mostrava enfim a sua boa face, a da colaboração entre Presidente, Parlamento e Governo. Apesar da pandemia, da guerra na Ucrânia e da crise energética, havia sinais de que era possível recuperar a economia e recomeçar a nossa vida social. Orgulhoso, o partido do governo olhava para o país com magnanimidade. A maior oposição organizava-se, o que é sempre recomendável. As pequenas e médias oposições agitavam-se sem consequência. Até que tudo foi perturbado por uma série de episódios de imprevisíveis efeitos. Em menos de um ano, tudo se alterou.

 

Vários evidentes conflitos de interesses atingiram alguns governantes, que não souberam esclarecer com honestidade. Suspeitas, não resolvidas, de tentativas de favorecimento familiar por parte dos governantes deixaram amargo de boca, até porque os clássicos defensores da “ética republicana” não reconheceram as dificuldades nem reagiram a tempo.

 

A incompetência das autoridades relativamente às urgências de obstetrícia, com relevo para o fecho temporário de maternidades e de serviços de urgência, suscitou desconfiança e incredulidade. Como era possível que tal acontecesse em situações tão dramaticamente simbólicas como o nascimento e a maternidade?

 

O processo de decisão do director executivo do Serviço Nacional de Saúde, com que o governo parece sacudir o capote das suas responsabilidades, arrasta-se, com crescente prejuízo para o seu futuro dirigente, o que revela a falta de convicção e de acerto de quem tomou as decisões, mal preparadas.

 

A inexplicável persistência das falhas na colocação de professores no início do ano lectivo, com muitos milhares de alunos sem professores, sem horários e sem ocupação, confirmou os tradicionais vícios do sistema.

 

A enorme barafunda à volta do aeroporto de Lisboa, nada menos do que o maior investimento da história, prosseguiu a sua vida em novas reviravoltas picarescas. A crise foi aparentemente interrompida com a decisão de, mais uma vez, adiar para daqui a uns tempos, à espera de mais estudos, mais hipóteses… O partido do governo, que já tomou pelo menos três decisões definitivas, todas diferentes, continua enredado na sua própria teia. Como se não bastasse, somou-se, ao aeroporto, a trapalhada da gestão da TAP, reveladora de caricato subdesenvolvimento.

 

Perante a inquietação da população, foi criada a confusão nacional com os preços do gás e da electricidade. Entraram em vigor procedimentos informáticos incompreensíveis para a maioria, num processo em que foi manifesto o desprezo do ministro responsável e das empresas de serviços que maltratam os consumidores.

 

Surgiram fricções graves entre ministros da Economia e das Finanças. Entre vários ministros e o das Infra-estruturas. Entre a Saúde e os outros. Sem falar nos disparates incompreensíveis da responsabilidade de governantes relativamente à agricultura e aos fogos florestais. A exibição de conflitos insanáveis entre ministros ou entre o Primeiro ministro e outros ministros é tremenda para a confiança dos eleitores.

 

As divergências, dentro do governo, sobre política fiscal e impostos, revelam uma inesperada quezília interna que o Primeiro ministro foi incapaz de dirimir. Instalou-se a deriva no seio das autoridades políticas e financeiras, com meias verdades, palpites, erros e prognósticos sobre o ano corrente e os próximos.

 

A discussão pública sobre o aumento de poder de compra (diz o governo) e o empobrecimento (afirma a oposição), ou sobre o crescimento de subsídios, salários e pensões (governo) e os cortes brutais na despesa (oposição), assumiu foros de Ópera Bufa, perante a incompreensão dos beneficiários (cidadãos, pensionistas, funcionários…) que não fazem a mínima ideia do que vão receber, pagar, ganhar ou perder… O processo de distribuição dos 125 Euros está a transformar-se num pesadelo burocrático e informático e já se percebeu quem vai sofrer as consequências.

 

Instalou-se, para o debate público, o clima e o tom do Pátio das cantigas. O Presidente da República, os Ministros, os deputados, dirigentes partidários e encarregados de imagem enviam-se recados pelas televisões, pelas redes sociais, em comentários insuportáveis à saída das reuniões, entre duas portas, à entrada de um automóvel, nos corredores de um palácio, à chegada de um avião, na feira da bifana ou na mostra do medronho! As televisões adoram os recados, os apartes, as banalidades carregadas de ironia e frases-feitas venenosas. Os políticos aproveitam, sem perceberem que se estão a magoar e diminuir. 

 

Sem razão, o Primeiro ministro decidiu incomodar o Presidente. Incomodado, o Presidente respondeu acidamente. Tudo evidentemente com palavras bem-educadas, cortesias insidiosas, lugares-comuns avinagrados e amistosa perfídia. Mas já toda a gente percebeu que existe um problema entre o Presidente e o Governo. Ou entre o Governo e o Presidente.

 

Sem que se perceba bem porquê, instalou-se a intranquilidade no governo, nas instituições e no espaço público. O mais banal dito do Presidente da República, “Em democracia, nada é eterno”, transformou-se no mais radical aviso ao governo e na mais séria advertência à nação. O governo encontrou inesperadas divergências no seu seio. O partido do governo detectou enormes divisões dentro de si próprio. Derramar sobre o país as suas dificuldades não é o que há de mais razoável. Mas é o que está a acontecer.

 

Estávamos servidos com a pandemia e a guerra na Ucrânia, a crise climática e a da energia, as ameaças bélicas na Europa e na Ásia. Tudo isto se traduziu numa enorme perturbação no mundo global, no comércio internacional e na estabilidade. Não precisávamos de acrescentar o nosso contributo. Que foi o que as autoridades fizeram. Há factos inquietantes, ameaças sérias e perigos evidentes, é certo, por isso precisávamos de serenidade entre os governantes, de esforço sério para resolver o possível e de informação honesta sem propaganda. Não é isto o que temos. À inquietação, o governo acrescentou ansiedade. À preocupação, juntou a incerteza.

 

Basta um Presidente da República afirmar que a democracia não está em perigo, para que toda a gente pense que, então, está!

 

Público, 8.10.2022

sábado, 1 de outubro de 2022

Grande Angular - A maré negra

Era assim que se falava antigamente, quando havia verdadeiro fascismo e real nazismo. Aqueles regimes e outros de direita ou mesmo ditaduras (como as de Salazar e Franco), tiveram alguns anos de vida coincidentes. Era o que se chamava, em certos círculos, a “maré negra”! Anos depois, derrotados os fascismos, cada vez que um partido de direita concorria ou ganhava eleições, era o fascismo revanchista! Quando vários partidos de direita ou de centro-direita governavam ao mesmo tempo, então tínhamos a designada “maré fascista”. Ou a mais poética “maré negra”. Durante décadas, cada vez que alguém, liberal, democrata ou social-democrata, aparecia em cena ou ganhava eleições, o epíteto de fascista estava logo ali. Quando vários países, ao mesmo tempo, eram governados por partidos de direita, rapidamente se concluía que havia uma conspiração, organizada pelas multinacionais capitalistas e dirigida contra os trabalhadores e os países socialistas. Era a “maré negra”. Para muitas esquerdas, para os comunistas, para revolucionários avulso e para muitos socialistas de combate, a Europa esteve praticamente nas mãos dos fascistas nos anos sessenta, setenta e oitenta. A partir de noventa, com a estrondosa queda do comunismo, da União Soviética e de quase todos os socialismos, o fascismo instalou-se na fortaleza, passou a governar a Europa, pôs em prática as suas políticas revanchistas de empobrecimento e de rearmamento. A “maré negra”, capitalista e reaccionária, está aí, veio para ficar. Esta é, em caricatura rigorosa, a visão dos comunistas portugueses e de muitas esquerdas europeias.

 

O problema é que agora há mesmo uma maré. Não é fascista. Mas é de direita. Por toda a Europa, partidos marcadamente à direita exibem real progresso nos seus resultados eleitorais. Alguns chegam ao governo. Nas eleições legislativas e nas presidenciais (onde as há), as direitas conseguem tornar-se partidos de poder ou oposição de peso. Na Europa, apenas em cinco ou seis países, entre os quais Portugal, as direitas e a extrema-direita não fazem parte dos governos, mesmo se já estão com força nos Parlamentos. Da Hungria à Polónia, da Itália a Áustria, da Suécia à Alemanha, assim como em quase todos os países do Báltico e dos Balcãs, os partidos de direita governam ou têm representações parlamentares importantes. Em quase todos os países europeus, as direitas dominam ou andam lá perto.

 

Era tão bom que os europeus, os democratas, os liberais, os democrata-cristãos, os socialistas, os conservadores e outros democratas e europeístas se dessem ao trabalho de se perguntar porquê! Por que razões, na maior parte dos países europeus, crescem as tendências nacionalistas, populistas, de direita radical, ultraliberais, antieuropeias, para já não falar de fascistas e integralistas? Por que progridem na difusão das suas ideias, reforçam as suas expectativas eleitorais, aproximam-se das áreas do poder, conseguem mesmo os sufrágios e a legitimidade para governar?

 

Era tão bom que os democratas, os centristas, os liberais, os sociais democratas e outros europeístas percebessem as suas responsabilidades nesse processo de ascensão das direitas antieuropeias, radicais ou não democráticas! Era bom, mas é provavelmente inútil ou tarde de mais.

 

Para as esquerdas e para os europeístas, a culpa é… da direita pois claro! Os perigos são fascistas. As ameaças são neoliberais e ultraliberais. Os riscos são populistas e nacionalistas. De quem é a responsabilidade? Da direita, evidentemente. Da extrema-direita, com certeza. Dos grupos económicos, dos ricos, do sistema capitalista e do capital financeiro. Dos nacionalistas, dos monárquicos, dos racistas, dos machistas e dos xenófobos. Todos capitalistas.

 

Nunca ocorre perguntar: e as responsabilidades das esquerdas? E dos democratas? E dos social-democratas? E das forças políticas europeias, cosmopolitas e integracionistas? Se procurarmos bem, rapidamente encontraremos múltiplos factores que estão na origem deste recrudescimento das direitas e dos nacionalismos.

 

A integração europeia foi longe de mais. Perdeu de vista as nações. Os eurocratas quiseram mesmo destruir o espírito de identidade nacional. Entendeu-se que o cosmopolitismo universal era a solução para a paz e a democracia. Os dirigentes convenceram-se de que a igualdade social, de direitos e de oportunidades, só eram possíveis sem nações, mas com regiões integradas numa espécie de continente europeu sem fronteiras.

 

Os europeus convenceram-se da sua própria ortodoxia integracionista e federal. Um Parlamento europeu, internacional, sem circunscrições reconhecidas e sem fidelidades nacionais tornou-se virtude. Órgãos dirigentes, sem reconhecimento nem proximidade cultural, sem lealdade nacional nem identidade, ficaram a tomar conta de uma Europa toda ela feita de diversidade, de contradições, de passado, de conflitos e de história.

 

Os europeus decidiram tudo comprar com subsídios e fundos, à espera de fazer leis federais. Não se importaram com a corrupção crescente. A bem de uma Europa fantasmagórica, cederam a empresas de salteadores e a mais que suspeitos capitais internacionais estranhos, aparentemente privados, frequentemente públicos, vindos de Estados totalitários asiáticos, africanos e russos. Cederam à Rússia nas matérias-primas e à China na indústria. Ficaram dependentes como nunca na história.

 

Os Europeus adoptaram o politicamente correcto, acreditaram num continente descarnado, sem história e sem identidade, tudo quiseram normalizar. Até para compensar as identidades europeias, aceitaram a imigração descontrolada. Promoveram o tráfico de mão-de-obra e o trabalho clandestino. Em nome do cosmopolitismo universalista, cederam culturalmente a valores não europeus, emergentes, tantas vezes marginais e antieuropeus. Convenceram-se de que tinham a obrigação de reescrever a história, de pedir desculpa aos povos de todos os continentes não europeus. Cederam cultura e carácter. Cederam história e princípios. 

 

Não ocorre pensar que estes Europeus, mesmo democratas, partilham plenamente as responsabilidades pelo regresso das direitas? Que as suas criações, os Estados actuais e a União de que tanto se orgulham, se encontram no início da cadeia de responsabilidades pelas ameaças contra a Europa e a democracia? Se não perceberam o mal que fizeram à Europa e aos países europeus, então nunca conseguirão evitar os males que aí vêm, se avizinham ou nos ameaçam.

 

Público, 1.10.2022