É um raro percurso político o de António Costa. Foi, até hoje, um caminho difícil, no país e no partido, entre Soares e Sampaio, entre Guterres e Sócrates. Foi uma jornada muito difícil, com Soares e Sampaio, com Guterres e Sócrates. O que pareceu ser uma eterna assessoria, foi finalmente uma obra de arte a desbravar um caminho e a subir a montanha.
Inteligente, um grande prático do poder, entre a esquerda e a direita, entre o mercado e o Estado, este empírico das artes públicas nunca governa pela ideologia ou pela doutrina, mas sim para a galeria e o eleitorado. Vive com a mesma sinceridade as dificuldades das empresas e a má sorte dos trabalhadores. Sabe, como poucos, que a democracia se faz com os ricos e os pobres. E ele tenta governar para os dois, ora para uns, ora para os outros.
Libertou-se do seu negro passado que lhe adveio da experiência com o governo de Sócrates. Resgatou os seus amigos que também ajudaram este último e agora o ajudam a si, com o mesmo animo de áulicos dedicados. A todos soube mostrar que o seu futuro político dependia dele e só dele. Já meteu na ordem vários candidatos a Delfim e outros putativos sucessores.
Entre Lisboa e Berlim, entre Bruxelas e Frankfurt, construiu o seu caminho e modelou um raro perfil de talento na galeria europeia. Agrada à esquerda e à direita, com rara bonomia.
Na primeira fase dos seus governos, soube ser colaborador e apoiante do Presidente da República, para, na segunda fase, inverter os papéis e mudar o acento tónico. E assim soube resolver, melhor do que os antecessores, os defeitos do regime semipresidencialista.
Formou governo sem maioria e conquistou o poder apesar de ter perdido as eleições. Soube servir-se de quem o queria matar e rejeitar quem o queria ajudar.
Deu um contributo eficaz para o crescimento moderado do Chega, mas suficiente para liquidar o CDS e arrumar o PSD por um tempo considerável.
Conseguiu destroçar, quem sabe se definitivamente, as esquerdas radicais do PCP e do Bloco, seduzindo-os o suficiente para o ajudarem a contragosto, sabendo eles, como sabiam e verificaram, que era um episódio inevitável, é certo, mas provavelmente letal. Com o mesmo sorriso, chamou-os e desbaratou-os.
Graças a Costa, nunca a extrema-direita esteve tão forte nos resultados eleitorais, mas também se lhe deve o facto de o Chega se ter deixado, talvez irremediavelmente, seduzir pela liturgia democrática. É ainda sua obra a circunstância de as esquerdas revolucionárias nunca terem sido tão minoritárias e insignificantes como agora.
Com o mesmo discernimento empírico e pragmático, soube e tem sabido governar, ora à esquerda, ora à direita, com proclamações, certamente, mas sem compromissos políticos, económicos ou sociais.
Teve a má sorte da pandemia e da guerra na Ucrânia. Mas tem sabido utilizar uma e outra a seu favor, mostrando aos eleitores que é o melhor a tratar dessas duas calamidades.
Os êxitos políticos deste homem, indiscutíveis, são apenas comparáveis aos seus desastres ou, noutras palavras, à sua incapacidade.
Consigo, diante de si, o Serviço Nacional de Saúde, sempre com mais dinheiro, sempre com mais médicos e enfermeiros, não consegue dar conta do recado: as filas de espera, os adiamentos e a desigualdade social ameaçam o que de melhor se fez. O definhamento de SNS, ameaça real, tem apenas um responsável: a autoridade.
Durante o seu tempo, a Justiça portuguesa, promotora da desigualdade social, não consegue encontrar o caminho da reforma e da eficácia, nem consegue pelo menos modernizar-se o suficiente para escapar à corrupção, para reduzir a indolência, para enfraquecer a burocracia e para conter os interesses enquistados no sistema.
Não conseguiu inverter as tendências para a perda de investimento privado, nem para o desaparecimento das melhores empresas portuguesas ou estrangeiras em Portugal.
Diante de si, aumenta o número de emigrantes portugueses, com valores anuais a fazer lembrar os anos sessenta do século passado ou os anos noventa do século XIX. Mas parece não haver política capaz de olhar para esse problema. Consigo, aumentam os imigrantes estrangeiros em Portugal, ilegais, cativos de redes de passadores e presos por traficantes de mão de obra, sem que as autoridades tenham vontade ou força para resolver. Estes problemas, mais o do envelhecimento da população, servem para magníficos discursos de “homem de Estado preocupado”, mas continuam virgens de tentativas de resolução.
Depois de promessas repetidas e de programas para uma nova economia, uma nova ciência e a modernização digital; e apesar de todas as tentativas de reflectir, programar e planificar, não conseguiu até hoje ultrapassar o âmbito dos tratados e compêndios encomendados e da literatura tecnocrática e sistémica, materiais de uma aflitiva esterilidade.
Talvez tenha percebido ou identificado alguns dos mais sérios problemas da sociedade portuguesa, da falta de capital e de formação, à pobreza e à fragilidade de um Estado obeso. Da ausência de experiência democrática à pobreza das instituições livres. Da diminuta tradição liberal à quase nula independência individual. Mas decidiu há muito adiar o que é importante e crucial, o que é difícil, o que não se pode resolver numa geração, o que exige que vá contra a corrente fácil, o que implica não agradar a todos ao mesmo tempo e o que não está na moda.
É verdade que as suas políticas, no seguimento de outras anteriores, têm sabido aliviar a pobreza e a destituição. Uma parte da desigualdade económica é realmente contrariada pelo esforço público, isto é, pela Segurança Social, pela fiscalidade e por toda a espécie de apoios e subvenções estatais. É verdade e é bom que assim seja, em nome de mais decência na sociedade. Mas não é menos verdade que todos esses remédios sofrem do mesmo: da precaridade e do carácter provisório dessas medidas. As distribuições de rendimentos e de subsídios em curso, a toda a gente, incluindo a quem não precisa, são bons exemplos dessas políticas e dessa visão do mundo.
Tendo afirmado a prioridade absoluta à luta contra a pobreza e a desigualdade, o que é nobre e importante, deverá um dia confessar a tremenda falta de resultados. O alívio do sofrimento, tantas vezes real, é sempre no imediato e no curto prazo. Como o Carnaval, o lenitivo acaba na terça-feira. A dor recomeça na quarta-feira.
Público, 29.10.2022