sábado, 8 de outubro de 2022

Grande Angular - O caldo entornado

Ainda há tão pouco tempo era possível revelar tranquilidade! Havia maioria de governo e promessa de estabilidade. Ao contrário da história das últimas décadas, o semipresidencialismo mostrava enfim a sua boa face, a da colaboração entre Presidente, Parlamento e Governo. Apesar da pandemia, da guerra na Ucrânia e da crise energética, havia sinais de que era possível recuperar a economia e recomeçar a nossa vida social. Orgulhoso, o partido do governo olhava para o país com magnanimidade. A maior oposição organizava-se, o que é sempre recomendável. As pequenas e médias oposições agitavam-se sem consequência. Até que tudo foi perturbado por uma série de episódios de imprevisíveis efeitos. Em menos de um ano, tudo se alterou.

 

Vários evidentes conflitos de interesses atingiram alguns governantes, que não souberam esclarecer com honestidade. Suspeitas, não resolvidas, de tentativas de favorecimento familiar por parte dos governantes deixaram amargo de boca, até porque os clássicos defensores da “ética republicana” não reconheceram as dificuldades nem reagiram a tempo.

 

A incompetência das autoridades relativamente às urgências de obstetrícia, com relevo para o fecho temporário de maternidades e de serviços de urgência, suscitou desconfiança e incredulidade. Como era possível que tal acontecesse em situações tão dramaticamente simbólicas como o nascimento e a maternidade?

 

O processo de decisão do director executivo do Serviço Nacional de Saúde, com que o governo parece sacudir o capote das suas responsabilidades, arrasta-se, com crescente prejuízo para o seu futuro dirigente, o que revela a falta de convicção e de acerto de quem tomou as decisões, mal preparadas.

 

A inexplicável persistência das falhas na colocação de professores no início do ano lectivo, com muitos milhares de alunos sem professores, sem horários e sem ocupação, confirmou os tradicionais vícios do sistema.

 

A enorme barafunda à volta do aeroporto de Lisboa, nada menos do que o maior investimento da história, prosseguiu a sua vida em novas reviravoltas picarescas. A crise foi aparentemente interrompida com a decisão de, mais uma vez, adiar para daqui a uns tempos, à espera de mais estudos, mais hipóteses… O partido do governo, que já tomou pelo menos três decisões definitivas, todas diferentes, continua enredado na sua própria teia. Como se não bastasse, somou-se, ao aeroporto, a trapalhada da gestão da TAP, reveladora de caricato subdesenvolvimento.

 

Perante a inquietação da população, foi criada a confusão nacional com os preços do gás e da electricidade. Entraram em vigor procedimentos informáticos incompreensíveis para a maioria, num processo em que foi manifesto o desprezo do ministro responsável e das empresas de serviços que maltratam os consumidores.

 

Surgiram fricções graves entre ministros da Economia e das Finanças. Entre vários ministros e o das Infra-estruturas. Entre a Saúde e os outros. Sem falar nos disparates incompreensíveis da responsabilidade de governantes relativamente à agricultura e aos fogos florestais. A exibição de conflitos insanáveis entre ministros ou entre o Primeiro ministro e outros ministros é tremenda para a confiança dos eleitores.

 

As divergências, dentro do governo, sobre política fiscal e impostos, revelam uma inesperada quezília interna que o Primeiro ministro foi incapaz de dirimir. Instalou-se a deriva no seio das autoridades políticas e financeiras, com meias verdades, palpites, erros e prognósticos sobre o ano corrente e os próximos.

 

A discussão pública sobre o aumento de poder de compra (diz o governo) e o empobrecimento (afirma a oposição), ou sobre o crescimento de subsídios, salários e pensões (governo) e os cortes brutais na despesa (oposição), assumiu foros de Ópera Bufa, perante a incompreensão dos beneficiários (cidadãos, pensionistas, funcionários…) que não fazem a mínima ideia do que vão receber, pagar, ganhar ou perder… O processo de distribuição dos 125 Euros está a transformar-se num pesadelo burocrático e informático e já se percebeu quem vai sofrer as consequências.

 

Instalou-se, para o debate público, o clima e o tom do Pátio das cantigas. O Presidente da República, os Ministros, os deputados, dirigentes partidários e encarregados de imagem enviam-se recados pelas televisões, pelas redes sociais, em comentários insuportáveis à saída das reuniões, entre duas portas, à entrada de um automóvel, nos corredores de um palácio, à chegada de um avião, na feira da bifana ou na mostra do medronho! As televisões adoram os recados, os apartes, as banalidades carregadas de ironia e frases-feitas venenosas. Os políticos aproveitam, sem perceberem que se estão a magoar e diminuir. 

 

Sem razão, o Primeiro ministro decidiu incomodar o Presidente. Incomodado, o Presidente respondeu acidamente. Tudo evidentemente com palavras bem-educadas, cortesias insidiosas, lugares-comuns avinagrados e amistosa perfídia. Mas já toda a gente percebeu que existe um problema entre o Presidente e o Governo. Ou entre o Governo e o Presidente.

 

Sem que se perceba bem porquê, instalou-se a intranquilidade no governo, nas instituições e no espaço público. O mais banal dito do Presidente da República, “Em democracia, nada é eterno”, transformou-se no mais radical aviso ao governo e na mais séria advertência à nação. O governo encontrou inesperadas divergências no seu seio. O partido do governo detectou enormes divisões dentro de si próprio. Derramar sobre o país as suas dificuldades não é o que há de mais razoável. Mas é o que está a acontecer.

 

Estávamos servidos com a pandemia e a guerra na Ucrânia, a crise climática e a da energia, as ameaças bélicas na Europa e na Ásia. Tudo isto se traduziu numa enorme perturbação no mundo global, no comércio internacional e na estabilidade. Não precisávamos de acrescentar o nosso contributo. Que foi o que as autoridades fizeram. Há factos inquietantes, ameaças sérias e perigos evidentes, é certo, por isso precisávamos de serenidade entre os governantes, de esforço sério para resolver o possível e de informação honesta sem propaganda. Não é isto o que temos. À inquietação, o governo acrescentou ansiedade. À preocupação, juntou a incerteza.

 

Basta um Presidente da República afirmar que a democracia não está em perigo, para que toda a gente pense que, então, está!

 

Público, 8.10.2022

1 comentário:

Jose disse...

Tudo à imagem do que seria uma empresa se a sua direcção executiva tivesse à sua volta, não subordinados, mas uma matilha de agentes de interesses próprios ou alheios que, com ruído, inércia ou acção, filtrasse toda a orientação ou comando emitidos por essa direcção executiva.

À multidão de pessoal político que infesta as estruturas do Estado acresce, por uma indeterminável extensão ou adição, a frouxa cadeia de comando que pode identificar-se no quadro da administração pública.

Coloque-se sobre toda esta bagunça, gente medíocre, com olhos e mente absorvidos pelos ecos da comunicação social e dos humores do ocasional chefe político e temos o cenário que todos os dias nos brinda com cenas de opereta bufa.