sábado, 11 de maio de 2024

Grande Angular - Desperdícios

É sabido que a situação de Portugal é difícil. Já esteve pior. E já esteve mais fraca. Apesar de algumas boas notícias relativas aos últimos anos (sobretudo de carácter económico e financeiro), sabemos que as dificuldades são grandes. Agravadas por uma situação internacional e mundial ameaçadora, muito perigosa e que todos os dias causa ruína e morte. Dito isto, tudo indicava que as autoridades políticas vissem os problemas, percebessem que não há tempo a perder e se entendessem sobre uma linha de rumo. Não unânime, pois claro. Negociada, com certeza. Mas capaz de aguentar os próximos anos e de retirar o melhor possível do que temos. Assim é que se esperava, sinceramente quase toda a gente esperava um arranjo político, sério e honesto, que fosse capaz de garantir alguma estabilidade governativa, uma base de apoio com um módico de solidez e um denominador comum capaz de orientar o melhor o que está à nossa disposição. Por exemplo, finanças razoáveis. Uma economia internacional que ainda oferece algumas oportunidades.  Meios nacionais e europeus pelo menos suficientes para suster um choque. E, apesar de alguma reserva de energia sindicalista e reivindicativa em certos sectores, uma disponibilidade segura da população para compreender um esforço colectivo. Desde que se percebam os objectivos, claro!

 

Em vez disso, temos de contar com expectativas estranhas e viciosas. A principal esperança do PSD e do Governo é que as coisas corram tão mal para as oposições, PS e partido do Chega, que tal seja um enriquecimento sem justa causa. A sua retórica é idiota: façam bem a oposição! Cumpram os seus deveres! É exactamente o contrário do que o Govenro espera.

 

A principal esperança do PS é que as coisas corram mal para o PSD e o Governo. E já agora também para o país. Se corressem bem, seria a sua tragédia. Seria a sua derrota. A retórica é simples: o Governo que cumpra o seu dever e governe bem. Exactamente o contrário do que pensa e espera.

 

A principal esperança do partido do Chega é que ninguém cumpra o seu dever, ninguém tenha qualquer espécie de bom resultado, que o Governo se mostre desastrado e que o PS se revele impotente. Deseja que haja mais corrupção e mais saneamentos. Que o governo não consiga aprovar leis e que o PS não aprove projectos.

 

Nos confins da Galáxia, a principal esperança das oposições de esquerda e extrema-esquerda é que a economia corra mal, assim como os serviços públicos e sociais, os que mais se fazem sentir. Com esperança que o governo fique à deriva e que o PS não perceba e não seja capaz de ter influência. Qualquer êxito do PSD, do PS e do Chega é uma derrota para as esquerdas.

 

De comum ao partido Chega e às esquerdas: que não haja aliança, nem coligação, nem entendimento entre o PSD e o PS. Claro?

 

O partido Chega espera que haja acidentes e incidentes com imigrantes. Confia no aumento do crime. Deseja ardentemente que as filas de espera nos hospitais não se resolvam, que os professores e os policias façam greve, que haja desordem na rua e que a corrupção cresça e se multiplique. Já percebeu que as suas únicas hipóteses são as que resultam de catástrofes nacionais. 

 

O PS tem as suas melhores pessoas a fazer leis que distribuam dinheiro, pensões, reformas e subsídios. Para ganhar créditos e para obrigar o governo a dizer que não. Apesar das boas condições, o PS sabe que só o desastre do PSD e do Governo lhe voltam a dar votos.

 

Entretanto, no meio dos comuns mortais, exige-se rápida acção e urgente intervenção nas ruas das principais cidades do país, a começar por Lisboa e Porto, onde situações de miséria, sem abrigo, ilegalidade, indignidade humana e pobreza proliferam, sem controlo nem remédio. Volta a haver bairros da lata em Portugal. Lamenta-se a diminuta, inoperante, impotente ou nula atenção prestada às cidades portuguesas, ao absoluto declínio das ruas e das praças, ao esterco nas ruas, à habitação miserável, sobretudo a falta de habitação. Em vez de acção, temos direito a debates teóricos sobre a engenharia orçamental.

 

Esperava-se pronta intervenção no SNS donde chegam notícias alarmantes quanto a filas de espera, questões laborais e salariais e gestão das consultas e das cirurgias. Em vez disso, demite-se o seu director, sem motivos nem fundamentação.

 

Pensava-se que as guerras na Ucrânia e em Israel, a crescente ferocidade ameaçadora da Rússia, assim como as ameaças americanas de suspender a NATO já eram suficientes para que o debate da Defesa Nacional e das Forças Armadas estivesse no domínio público e preocupasse boa parte dos cidadãos, mas, em vez disso, tivemos, do Ministro da Defesa, a idiota proposta ou reflexão, se é que se pode chamar a isso uma reflexão, sobre as capacidades correctivas das forças armadas e sobre o seu papel na recuperação de delinquentes.

 

Esperava-se acção forte e destemida do Presidente da República relativamente às deficientes e agravadas condições de governação, sem maioria e com confusão de executivo e de legislativo. Em vez disso, tivemos o inútil, incompreensível e excêntrico apelo à reparação das malfeitorias portuguesas durante 500 anos.

 

Em vez de acudir ao que é urgente, empurram-se os partidos uns para cima dos outros. E tivemos direito a um dos maiores absurdos de história de Portugal, uma das maiores idiotias que só não é risível porque é indigna e dramática: a acusação de alta traição à Pátria feita ao Presidente da República pelo partido do Chega.

Na Administração Pública, começou mais uma série de movimentos telúricos dito enxurrada, fornada e saneamento. Na política portuguesa, tal ficou com um cognome: chama-se confiança política!

 

Para atacar as dificuldades, havia tudo, quase tudo. Meios, conhecimento, tempo e necessidade. Há uma situação económica e financeira melhor do que se pensava ou receava, há a possibilidade de, com coligação de esforços e de votos, reorientar para o investimento, melhorar a produção, aperfeiçoar o Estado social. Mas, em vez disso, temos uma querela de adolescentes malcriados para saber quem é culpado e quem é responsável pelas poupanças existentes, pelos subsídios distribuídos, pelos impostos aforrados…. Havia tudo. Há tudo. Só não há maioria parlamentar, nem esforço conjunto para governar.

 

É mentira, mas é conhecido: são os pobres que desperdiçam mais. Ou antes, é aos pobres que o desperdício faz mais falta!

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Público, 11.5.2024

 

sábado, 4 de maio de 2024

Grande Angular - Escola única, livro único

 que é irreparável não tem reparação. É simples, mas é difícil compreender. Ou antes, dá jeito utilizar o conceito, na esperança de compensação. Que não se confessa, com certeza. Mas a reparação contemporânea do colonialismo, da escravatura e da “conquista” é muito útil para alimentar o “ego” ou obter vantagens económicas. Os países que pediram perdão e já começaram a reparar, têm todos ou quase todos interesses políticos, económicos e militares nos países beneficiários.

 

A escravatura é irreparável. Ponto final. Todas as suas vítimas estão mortas. Os que com ela ganharam também. Aceite por quase todos na altura (menos as vítimas, claro), é hoje repudiada por toda a gente. Os males que a escravatura fez, a violência que usou, a crueldade com que agiu, a injustiça que praticou e os milhões de vidas que destruiu, não têm reparação, a não ser demagógica ou com interesses disfarçados.

 

Pedir perdão pela escravatura é inútil e, sob a aparência de beatitude, é hipócrita. Não apaga crimes, não repõe justiça. Não castiga malfeitores. Não compensa vítimas, geralmente mortas há séculos. Relativamente à escravatura, à conquista, ao colonialismo ou ao racismo, essencial é não encontrar sucedâneos de igual natureza, mas sim respeitar as pessoas, aceitar a dignidade de todos e cultivar a liberdade.

 

Em vez de reparar o irreparável, importante é cultivar a liberdade e o pluralismo, não substituir pensamento único por único pensamento. Quase todos os movimentos de opinião dos últimos séculos têm um ponto comum: o desejo de reformar a educação, de dar uma orientação às escolas e aos programas, de redigir os novos manuais e de formar consciências. Os Republicanos pensaram em expurgar as escolas da perfídia monárquica, adaptando-as ao novo sistema de vida, à gloriosa República. Contra os malfeitores Republicanos, Salazar garantiu que não havia uma “escola neutra”, refez programas e criou o “livro único”, ajustando tudo aos novos tempos de “Deus, Pátria e Família”. Contra os Fascistas de diversos tempos, os Democratas não tiveram sossego enquanto não tentaram fazer uma escola de programas democráticos. Contra a Democracia liberal e plural, nunca os socialistas, comunistas e outros marxistas deixaram de se preocupar com uma escola formadora de consciências e com programas que anunciem a nova sociedade. Contra as tradições ocidentais dos últimos séculos, múltiplos movimentos empenhados na raça, no género e na idade, tentam hoje adaptar a escola aos novos valores, moldar espíritos das novas gerações e formar novos cidadãos. Entre as maneiras de o fazer, conta-se a elaboração de programas e a redacção de manuais.

 

Este processo de substituição não tem falhas. Quem pretende criticar o que lhe parece errado, elimina a ortodoxia e aprova nova orientação. Com o propósito de formar consciências. Afonso Costa e Salazar, Hitler e Mussolini, Estaline ou Mao Tsé-Tung tiveram em comum o apetite de orientação doutrinária. Ainda hoje, programas educativos e respectivos manuais traduzem a tentação de “moldar espíritos”.

 

Nas modas actuais, a inclinação dirigista, para não dizer totalitária, está sempre patente. A muito pouca gente ocorre admitir a ideia de uma escola livre, de programas abertos e de manuais plurais. Ou antes, de uma pluralidade de manuais, ficando os estudantes e as suas famílias responsáveis pelas escolhas. Não, não é essa a ideia preponderante. É, isso sim, o propósito de uma ordem alternativa. Para apagar o racismo, destruir o machismo e derrubar o capitalismo, são necessários a escola e os manuais devidamente orientados.

 

Explicar o colonialismo e a escravatura, por exemplo, é tarefa permanente. Ainda recordamos os manuais do Estado Novo. As suas “narrativas” e as suas explicações para os Descobrimentos, a colonização, a escravatura e a conquista traduziam o que se espera e conhece. Não faltavam a superioridade da civilização ocidental e a missão evangelizadora dos portugueses. O descobrimento e a conquista eram o resultado do esforço dos missionários e dos descobridores portugueses. O que os guiava, a eles e aos poderes metropolitanos, não eram o interesse, a cupidez, a ambição e a vontade política, mas sim a “missão” e a “vocação” do Ocidente em geral e dos Portugueses em especial.

 

Qualquer pessoa com um pouco de idade recorda esses manuais. Às escondidas, denunciava-se a explicação metafísica, beata e hipócrita, revelava-se o verdadeiro interesse imperialista e colonialista dos portugueses e dos ocidentais. Agora, há quase cinquenta anos, é constante o esfoço de construção de uma nova ortodoxia. Com novas actualizações. Já se exige a elaboração de novos manuais taxativos em questões de colonialismo, racismo, exploração capitalista, machismo e ditadura de género. Parece que é preciso demolir a ideologia dos Descobrimentos. Entre activistas e militantes, entre sociólogos e pedagogos, dá-se voz às exigências de novas escolas, novos métodos, novos programas e novos manuais a denunciar a “culpa” dos Portugueses, dos capitalistas, dos colonialistas e dos esclavagistas.

 

O tão urgente esforço de exigência de isenção para a escola pública, para o programa e o manual, está já substituído pela pressão de uma nova ideologia. Raras, muito raras são as pessoas que defendem um esforço de isenção. É verdade que nada é absolutamente neutro na vida, a escola também não. Mas, lutar por uma neutralidade ideológica é uma luta superior. Por que razão não haverá manuais mais ou menos marxistas e materialistas, ao lado de idealistas e confessionais? Por que não será possível conviver, na mesma escola, com todos os manuais possíveis, ficando às famílias a faculdade ou o dever de escolher?

 

As escolas que praticam obrigatoriamente o cristianismo, o islamismo, o judaísmo e qualquer outra forma de imposição de valores não são progresso da liberdade, bem pelo contrário. São sempre formas, mais ou menos radicais, de imposição de valores e de intoxicação. A China e a Coreia do Norte, tal como o Irão e Cuba, são bons exemplos de sistemas escolares despóticos.  A proibição de ensinar Darwin e o evolucionismo, em vigor em várias regiões americanas, é do domínio do obscurantismo. Como são todas as tentativas de impor novas ortodoxias, mesmo as que se designam por libertadoras, democráticas e progressistas. 

 

Por que diabo se exige das autoridades que façam leis e aprovem novos programas e novos manuais? Descolonizar não deveria implicar a imposição de uma nova doutrina. Libertar não deve criar novos livros únicos. Reparar a escola opressiva, não se faz com uma escola de livro único. Nem sequer democrático.

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Público, 4.5.2024