Há dez, cem, mil anos que se pensa e discute a Liberdade! Às vezes mesmo sem ela. Ainda bem. É uma discussão infinita. No dia em que não haja essa discussão, é mau sinal. Ou não há liberdade ou é proibido discuti-la. Esse horroroso dia está longe. A reserva de razão e de força humana é tal que, mesmo em climas adversos, a planta cresce. Enquanto houver seres humanos, haverá liberdade. Ou vontade dela.
Em Portugal, de vez em quando, discute-se a liberdade de expressão. O que é e o que não é. Tem limites? Quem zela pela liberdade? Em que consiste a liberdade de cada um? Tem de ser regulamentada? Como se defende? Por que razões a liberdade de expressão é a mais evocada e a mais debatida?
É mau sinal discutir agora a liberdade? Será que esta discussão se faz sobretudo em países que têm poucas horas de democracia? Não parece que Portugal esteja pior do que outros. Certo é que há pressões perigosas em Portugal. Os episódios da Assembleia da República demonstram-no. O número de processos relativos ao uso e ao abuso da liberdade de imprensa parece estar a aumentar. Cada vez mais se fala de limites. Não se pode insultar. Não se pode não gostar de alguém, pessoa, tribo ou país. Há grupos especialmente protegidos, o que é mau sinal. Aos períodos de pressão das direitas, sucedem períodos de pressão das esquerdas. Mas o tom moralista e totalitário é o mesmo.
É bom discutir a liberdade de expressão. Até porque, sem esta, não se pode discutir as outras! É necessário discutir porque é um conceito móvel. Já houve tempos em que havia liberdade de expressão para os poderosos, não para os dependentes. Para os homens, não para as mulheres. Para os educados, não para os analfabetos. Para os ricos, não para os pobres. Para os indígenas, não para os imigrantes. Muitas destas diferenças, nos países ocidentais, foram diminuindo. Mas as ameaças são permanentes.
É por isso sempre necessário renovar a discussão sobre a liberdade de expressão. Portugal é hoje comparável a outros países democráticos. Há entraves à liberdade de expressão? Certamente. Os poderosos são mais susceptíveis do que o povo, é um facto. Os letrados usam melhor a liberdade de expressão do que os iletrados, verdade também. Os que têm protecção política defendem-se melhor, seguro. Muitos magistrados perfilham concepções antiquadas da liberdade de expressão, verdade ainda.
A gestão da liberdade de expressão é difícil. Mas mais simples do que se julga. A começar pelo facto de não dever haver limites, de não dever haver quem controla, quem avalia e quem julga. Até porque, em muito casos, não é da liberdade de expressão que se trata, mas sim de crimes de difamação. Como também não é de “discurso de ódio”, aberrante bizarria de invenção recente.
Este “discurso” é uma invenção. Ninguém sabe exactamente o que é. Ou antes, é o que convém a quem a ele se refere. Quais são os seus termos? Há uma lista? Quem estabeleceu? Com que direito? Como se comunica ao cidadão o que é proibido? Deverá estabelecer-se um “Index”? Um “Manual de boas maneiras democráticas”? Poderia o sistema de prevenção chamar-se “exame prévio”?
O “discurso de ódio” é um dos maiores mistérios do presente. Não distingue entre opiniões e acções. Falar de alguém sem tom afectuoso ou sem elogios, isso é discurso de ódio? Desde quando se deve gostar de toda a gente? Como é possível imaginar alguém que não tenha “ódios de estimação” e não goste de fascistas ou de comunistas, de burgueses ou de sindicalistas, de europeus ou de africanos, de portugueses ou de estrangeiros, de Cristãos ou de Muçulmanos?
Se levarmos a sério o “discurso de ódio”, as anedotas com Alentejanos ou Belgas devem ser proibidas. De igual modo, as histórias com Galegos, Judeus, Africanos, Índios e Chineses. Ou Portugas. Termos como Monhé ou Mulato teriam de ser vedados. Nababo e Soba têm de ser eliminados. “Les portugais sont toujours gais” deverá ser interdito. “Paciência de Chinês” e “avareza de Escocês” ou de Judeu é ódio. “Fazer judiarias” é termo a merecer cadeia. Tratar alguém de Siciliano é condenável. Termos como Mariquinhas têm de ser abolidos. Livros têm de ser reescritos: Lusíadas, Cid, Quixote, Sermões, Camilo, Eça, Castro e Aquilino têm de passar à lupa da nova moral. Esperam-nos tempos sombrios. Mesmo sabendo nós que estas modas e estas pressões vão mudando. Para bem e para mal.
Quem quiser perceber o carácter móbil da moralidade dos costumes pode entregar-se a vários passatempos. Por exemplo, ler os álbuns do Tintim desde os anos 1930 até hoje. A maneira como são tratados os Negros, os Chineses, os Russos, as Mulheres, os Animais, até os Portugueses, ilustra bem a evolução de critérios. A leitura dos “Astérix” permite as mesmas conclusões. Outro exercício consiste em ler os “Pontos nos iii”, o “António Maria” e a “Paródia”, todos de Bordalo Pinheiro. Pelo que lá diz, o artista estaria hoje à sombra, impedido de publicar. “O Mundo ri” e a “Gaiola aberta” já teriam sido condenados. O que era ingénuo passou a ser odioso. O que era proibido é agora recomendado ou livre.
O grande problema é o da definição dos limites. Quem define? Com que direito? As horas de violência, sexo e palavrões, na televisão, já mudaram muito e evoluem conforme os tempos. Os insultos de hoje não são o que eram há vinte anos. Os nus de hoje não são o que eram há trinta. Com que direito um grupo de sábios, parlamentares, professores, jornalistas, sacerdotes ou advogados define o que posso exprimir e a que horas posso dizer?
Todos os dias vemos quem se julgue mestre de moral, titular de direitos sobre as vidas dos outros, imbuído de conhecimentos excepcionais sobre o que é bom ou mau para os cidadãos, convencido de que pode transformar em leis as suas preferências, certo de que as suas opções são as únicas decentes! A superioridade moral dos partidos de esquerda só tem de igual a certeza dogmática dos partidos da direita. Os últimos anos têm sido de agravamento deste dilema entre duas formas de despotismo.
A liberdade de expressão ganha força quando se lhe deve aquilo de que não se gosta. Se a liberdade de expressão consiste em pronunciar as frases aceites e os conteúdos admitidos, não há liberdade. Temos eventualmente um belo coro, mas liberdade não. A liberdade de expressão não se limita a poder dizer o que nos apetece. Implica ter de ouvir o que não gostamos. A liberdade de expressão não é só construtiva! É também destrutiva, crítica e demolidora! A minha liberdade de expressão não termina com a liberdade de expressão do outro. Não! Ela implica a liberdade de expressão do outro, implica que a opinião do outro seja diferente. O confronto entre opiniões, ao abrigo da liberdade de expressão, chama-se discussão. A diferença entre opiniões chama-se controvérsia. A coexistência chama-se liberdade.
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Público, 25.5.2024
1 comentário:
Que «A superioridade moral ...só tem de igual a certeza dogmática ...» suscita a questão de saber se o direito de liberdade de opinião pressupõe o dever de esta poder conformar-se a uma verdade demonstrável.
Creio sempre ter sido reconhecido que tal conformação não é sempre possível, mas o que o tempo presente nos traz é a ausência de esforço em obtê-la e a genérica dispensa em exigi-la.
Mais alarmante ainda é ser tolerado que alguém se assuma como infelectual ou prócere ideológico, porque sabe enunciar dogmas ou máximas morais, sem que que se lhe exija um detalhe, um exemplo, um plano de acção, que pareça vir a dar-lhes sustento.
Todo o direito melhor se define pelos deveres que se lhe associem; assim com o direito à liberdade de expressão.
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