Por Maria Filomena Mónica
O PRIMEIRO aspecto a notar é ser este livro atravessado por uma profunda nostalgia, o que não fica mal a um romântico. O tom usado confere à obra, como aliás ao seu autor, um fascínio invulgar. Não fosse isto e alguns leitores poderiam olhá-lo como uma ostentação provinciana de cultura. Mas se ele cita muitas obras-primas é por o exercício ser necessário ao que pretende demonstrar, isto é, que, ao longo da História Europeia, houve ciclos de criatividade, de curta duração, seguidos por longas noites de silêncio.
O livro tem muitas qualidades. Refiro a mais óbvia, a familiaridade com que o autor fala do arco temporal que vai da Grécia clássica ao mundo moderno. O relato tem qualquer coisa de teleológico, o que, em vez de me irritar, acabou por me encantar, talvez por conhecer o António Pedro há tantos anos. Leia-se o que vem na pág. 23: «Hoje não é heresia reconhecer que o século que acabou foi o século do cinema». Depois da tragédia grega, da pintura renascentista, do iluminismo, dos romances realistas, da poesia simbolista, eis que chega a arte suprema, a 7ª, que «vai retomar, no século XX, o fio que se foi urdindo, ao longo de vinte e oito séculos, através de constantes migrações, a grande História da Ficção no Ocidente». Basta olhar John Wayne, em A Desaparecida, de John Ford, para compreendermos do que está a falar.
O autor sabe que precisamos de uma gesta para sobreviver, como sabe que modernamente nada nem ninguém encarnou melhor esse desejo do que Hollywood e John Ford. É quase inexplicável, mas aconteceu: desde 1940 que os filmes de Ford, centrados em cowboys e índios, tocaram o coração de pessoas que nada sabiam da forma como os EUA tinham nascido. A imagem do cavaleiro solitário, que, algures num espaço sem fim, apenas com um Colt à cintura, enfrenta o Mal, permanece um dos grandes mitos da cultura contemporânea.
Mas voltemos a outra das suas teses, a do desaparecimento do romance. Aqui, as nossas diferenças são maiores. É possível que o romance, tal como o herdámos do século XIX, esteja a morrer, mas não é certo. Aceito que as experiências de romancistas que se puseram a brincar com a estrutura narrativa ou enveredaram por malabarismos com palavras redundaram em fracasso. Foi por terem optado pelo experimentalismo pretensioso que alguns escritores recentes, como, por exemplo, Jeannette Winterson, que, em 1985, publicou um romance notável, Oranges Are Not the Only Fruit, deixaram de me atrair. Mas, na narrativa ficcional, há qualquer coisa – seja ela em livro, no palco ou na televisão - que nunca desaparecerá. Porque os homens jamais se cansarão de ouvir ou de ler histórias. Talvez neste ponto – deve ser o único – seja mais optimista do que o António Pedro. Não antevejo um mundo sem ficção, porque ela é essencial ao ser humano.
Falo por mim. Desde a infância que leio romances e nunca se me pôs a questão de saber se estaria a perder tempo. O que pretendia era entrar num mundo novo, conhecer pessoas diferentes, chorar com dramas alheios. Não teria sobrevivido à infância se não tivesse «sido» Tom Sawyer, muito menos à adolescência se não me tivesse identificado com Cathy. A ficção fala de nós e ainda, ou sobretudo, desse «eu» que poderíamos ter sido, para usar o título do mais famoso poema de Robert Frost, «The road not taken». Por vezes, compreendemos melhor o mundo através da ficção do que olhando-o através da janela.
Abordei já algumas divergências. Quero ainda falar de outra, talvez a mais importante, que diz respeito à suposta degradação do nível cultural das massas populares. Para me ater apenas às televisões, é evidente que temos, diante de nós, uma programação pior do que a que, noutros países é oferecida. Reconheço que nunca, desde que entrámos no século XXI, vi nada que se possa equiparar às séries televisivas escritas por Alan Bennett, Dennis Potter ou John Cleese, nos anos 1970 e 1980. Mas esse mundo, onde apenas existia, ou quase, um canal generalista, desapareceu. O que não quer dizer que tudo quanto se vê na TV seja mau: basta recordar as séries produzidas pela privada HBO ou por Steven Bocho. Se Shakespeare estivesse vivo, optaria por escrever para a TV? E que faria Dickens diante das possibilidades abertas pelos DVDs?
Quanto à ficção escrita, só o tempo separará o trigo do joio. Não há outra maneira, nem outro juiz. Por isso, não vale a pena chorarmos sobre uma eventual decadência. Bastou-me olhar a estante, que fica ao lado do meu computador, para ver algumas obras-primas, de autores tão diferentes quanto Doris Lessing, V. S. Naipaul ou Philip Roth.
Apesar de partilharmos inquietações, não aceito a visão apocalíptica do António Pedro. Em primeiro lugar, a civilização do espectáculo apenas tornou visível o que há muito existia, isto é, o gosto boçal por determinados entretimentos populares. Aquilo de que nos devemos ocupar é de oferecer aos nossos filhos e netos uma boa educação, o que pressupõe a existência de uma rede de escolas públicas decente, onde o Canon clássico seja ensinado. Tanto eu como ele pertencemos a uma minoria privilegiada, a classe média, o que nos pode levar a ter uma visão distorcida do mundo contemporâneo. Enquanto eu e ele líamos, e sublinhávamos, Stendhal, muitos raparigas e rapazes da nossa idade andavam pelos montes a guardar rebanhos. Antes de começarmos a chorar a perda de um mundo que nunca existiu, temos de nos perguntar quantas pessoas, há 100 ou 200 anos, tinham acesso à cultura superior.
Tão pouco aceito a sua ligação do termo «globalização» à diminuição da qualidade da produção cultural, tal como expressa numa frase que aparece perto do final (pág 59): «Os progressos da globalização trouxeram consigo uma atomização da cultura, uma proliferação das ficções e uma democratização dos meios de a produzir. Hoje, qualquer um pode ser criador. E, no entanto, nunca houve tão poucos criadores». Não é verdade. Foi o António Pedro que me recomendou um livro, fruto do fenómeno da globalização – neste caso, da emigração da América do Sul para a do Norte – que merecera a sua atenção, a obra The Brief Wondrous Life of Óscar Wao», de Junot Diaz (2007).
Termino com uma gracinha que diz muito sobre as diferenças culturais entre os países. Aquando do escândalo envolvendo Hugh Grant em Los Angeles – quando o famoso actor foi apanhado num carro, estacionado na via pública, dentro do qual uma prostituta se dedicava à prática de sexo oral - um jornalista perguntou-lhe se não tencionava consultar um psicoterapeuta. A resposta foi: «Não, em Inglaterra, preferimos ler romances»
[1]. O António Pedro pode estar descansado. Como em séculos pretéritos, talvez mais do que em séculos pretéritos, o mundo precisa de ficção. O público fragmentou-se, mas haverá sempre lugar para obras de qualidade. Não, não vamos esquecer de Aristóteles, nem, muito menos, ter de esperar dez séculos para o redescobrir.
6 comentários:
"ao longo da História Europeia, houve ciclos de criatividade, de curta duração, seguidos por longas noites de silêncio.", não sei onde estaremos agora.
(Gosto sempre tanto de ler Maria Filomena Mónica...)
Nem sempre concordando, leio com apreço Maria Filomena Mónica. Este é um belo texto.
NOTA: como "webmaster", e no seguimento de uma dúvida colocada por um leitor, esclareço o seguinte:
Este texto, ao contrário de todos os outros até hoje publicados neste blogue, NÃO é da autoria de António Barreto, mas sim (como no início se indica) de Maria Filomena Mónica.
NÃO é da autoria de António Barreto, mas sim (como no início se indica) de Maria Filomena Mónica....claro bastou-me olhar a estante, que fica ao lado do computador dela, para ver algumas obras-primas como canopus em argos e outras cousas dum passado já morto e enterrado, de autores tão diferentes quanto Doris Lessing, V. S. Naipaul ou Philip Roth....a intemporalidade dura pouco...
é como aquele clássico o infor...manias
acho que o tal de barreto terá mais livros do tengarrinha que da autora do canopus en argos
mas mim phode tar esganado....afundação por afunnação..
as três marias ainda mexem?
são mercúrio free e alzeimher free?
khmer vermelho free ou fréon?
parece-me mais fé on...é típico do soaristan con cafetan
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