Desde 1975 que não se assistia a ameaças tão contundentes à liberdade de expressão, aos direitos de informação, associação e à greve.
Ter uma opinião sobre os imigrantes, as minorias, a integração racial, o multiculturalismo, o racismo e temas afins é hoje uma actividade perigosa! Se as opiniões não forem o que está consagrado pela aliança do governo, podem ser motivo de processo-crime, hipótese que se traduz em verdadeira intimidação. Anuncia-se já uma revisão das leis que regulam “os discursos de ódio”, designação perigosíssima, próxima de outras utilizadas pelos regimes fascistas, nazis e comunistas!
Reunir em Portugal movimentos e partidos políticos de direita ou de extrema-direita, provavelmente de conotação fascista, eventualmente de crenças racistas, pode ser actividade de risco e incorrer em intimidação, agressão pura e proibição legal.
Exprimir opiniões contrárias a certas instituições sagradas, como sejam os clubes de futebol, é uma actividade perigosa, propícia a acabar nos tribunais. Também aqui, não se sabe ainda o que estes decidirão, mas a carga de intimidação está preparada.
Desenvolver actividades sindicais que não sejam do agrado do governo e da sua aliança, pode levar a situações muito delicadas, como tem acontecido com as greves dos camionistas não conformados com os estabelecidos.
Uma greve conduziu, com rapidez inédita, a uma requisição civil atrevida, acompanhada da mobilização imediata das polícias e das Forças Armadas, em gesto muito ameaçador. O governo pôs-se a jeito para aproveitar o vento e virar a seu favor os receios de uma perturbação gigantesca da vida quotidiana. Mas a verdade é que o desvario de um sindicato não justifica nem desculpa os desmandos do governo.
O PS está a mudar. Perigosamente. Está a ceder às esquerdas radicais, antidemocráticas ou totalitárias. As mais profundas convicções democráticas e liberais que marcaram o carácter do PS estão a sofrer uma erosão manifesta, causada pelo apetite de poder e pela influência ideológica do Bloco.
Ademocracia é o regime de todos, incluindo dos antidemocratas. A democracia defende-se com o bom governo, o reconhecimento dos cidadãos, a identificação com os valores do regime e a atenção prestada pelos dirigentes às necessidades do seu povo! A democracia não se defende com propaganda, muito menos com proibições de pensamento e de opiniões. A Justiça e a democracia castigam acções, não intenções. São punidos os gestos e as obras, não as opiniões. Os crimes são actos, não discursos.
A democracia é o regime de toda a gente, incluindo racistas e xenófobos. Todas as idades, raças, géneros, opções e condições cabem dentro da democracia, nenhuma pode ser expulsa. Ninguém é criminoso ou pode ser proibido pela sua opinião. Mesmo os insultos são permitidos. Se forem calúnias, deverão ser tratados como actos, não como opiniões.
A democracia admite a diversidade e a diferença. O conflito e a polémica. A democracia não permite que se castigue quem é diferente. Mas não admite que as diferenças cheguem à violência, à eliminação dos outros, à tortura, à mutilação, à segregação violenta e a todas as formas que implicam infracção à lei, comportamentos ilícitos e violação de direitos dos outros. A democracia admite o preconceito, a estupidez e a presunção racial, desde que sejam opiniões. Traduzidos em actos, a violência sobre minorias, a segregação, a tortura sob qualquer forma, a expulsão de local público, a mutilação e o mercado de seres humanos são merecedoras de punição. A democracia admite todas as formas de ambição e de utopia, sejam a revolução social, a restauração nacionalista, o apostolado cristão, o proselitismo muçulmano e a pregação de qualquer outra forma de convencimento, desde que não se traduzam em actos violentos e atentatórios dos direitos de outros.
A democracia é um corpo simples de princípios e de convenções que pode coexistir com várias ideologias e filosofias políticas. A democracia não proíbe opiniões. Nem religiões ou crenças. Nem credos nacionais. Nem aspiração revolucionária. Mesmo sabendo que o nacionalismo pode violentar, que a revolução mata, que a religião pode torturar e que as utopias podem coagir: enquanto forem opiniões, a democracia não pode proibir.
Aliberdade de expressão parece ser actualmente o valor mais ameaçado. Estranhamente, há em Portugal quem se queira notabilizar nesse esforço de condicionamento. Os socialistas, as esquerdas e certas minorias étnicas ou religiosas revelam reflexos perigosos de intolerância, como se a intolerância dos outros e a do passado justificassem a deles. E rapidamente recorrem à tentativa de condicionar a liberdade de expressão.
Convencido de que o seu ADN é um salvo-conduto para a democracia, o PS português está a perder qualidades. Dá sinais de aceitar que existem limites severos à liberdade de expressão, de que as Forças Armadas podem intervir em conflitos laborais e de que os tribunais são bons substitutos para a arbitragem e a negociação. Em questões como a segregação racial, o racismo, a desigualdade étnica e social, o assédio sexual e a violência doméstica, os socialistas estão a considerar crime o que muitas vezes é mera afirmação ou opinião.
Por sua própria iniciativa, porque julgam que a autoridade dá frutos eleitorais, porque cedem às influências do PCP e do Bloco, os socialistas estão a mudar de pele. Estão a deixar de entender que a democracia é de todos, mesmo dos antidemocratas. Que a tolerância é de todos, mesmo dos que o são pouco. Estão a torcer o direito à greve e a comprimir a liberdade de expressão. Estão a chamar as Forças Armadas para se envolverem em lutas sociais.
Estamos a viver tempos difíceis para a democracia e para as liberdades, designadamente a liberdade de expressão. O PS está a perder gradualmente a sua tradição liberal, a sua veia tolerante e a sua marca democrática que parecia inamovível. O PS está a deixar que as suas pulsões escondidas, jacobinas, de intervenção estatal, de condicionamento da livre expressão e de intolerância apareçam à superfície e se transformem em método de acção. A liberdade, em Portugal, não depende só dos socialistas, mas está por eles muito marcada. Se faltar o seu contributo republicano, democrático e liberal, poderemos ter de viver tempos cinzentos que julgávamos ultrapassados por muitos anos. Num país, como o nosso, em que a direita liberal é tão escassa e volúvel, a esquerda democrática é essencial. Mas, se é a primeira a não respeitar as suas boas tradições, então temos um problema!
Público, 18.8.2019
Sem comentários:
Enviar um comentário