domingo, 6 de dezembro de 2020

Grande Angular - O caso da Justiça

 A actuação do competente, intolerante e autoritário ministro Eduardo Cabrita, assim como dos seus dirigentes, designadamente da Directora do SEF, é reveladora e inadmissível. Sem explicações, sem vigor nem rigor, sem desculpas nem escrúpulos, consideram-se imunes e ao abrigo de qualquer crítica. Os seus erros são virtude e as suas falhas inexistentes.

 O caso do cidadão ucraniano detido, batido, torturado e assassinado por agentes da polícia de estrangeiros nos corredores esconsos do aeroporto já deveria ter suscitado, pelo menos, uma atitude de arrependimento, de correcção ou de julgamento. Conforme está, fica-se pelos piores terrenos, os da indiferença, do despotismo e da insuportável arrogância dos virtuosos no poder.

 

Sabemos que os tempos não são bons e não correm de feição. Toda a realidade está dominada pela pandemia. Toda a vida social e económica está hipotecada pela doença e pelas tentativas de a combater. Mal ou bem, as autoridades fazem o que podem e o que sabem. O problema é que parecem poder pouco e saber menos. Felizmente que as soluções estão a ser encontradas no quadro da União Europeia, o que permite que os países menos apetrechados, como o nosso, tenham respaldo.

 

Não sabemos como as autoridades se vão sair desta tragédia, nem sabemos como vão dirigir a campanha de vacinas para a qual não há evidentemente treino, meios e equipamentos. Por enquanto, imagina-se que haja algumas competências institucionais, boas vontades profissionais e dedicação individual, mas, como se sabe, nada disso chega para resolver o essencial: vacinar uns milhões de pessoas em pouco meses. Já se preparara o mercado negro de vacinas. Já há planos para as cunhas, os favores, as falsas prioridades, a ruptura de stocks e os atrasos injustificados. É neste terreno da organização que as causas se ganham ou perdem. E que em Portugal tantas vezes se perdem, como com os incêndios, os temporais e respectivas reparações.

 

Obcecado com a política, as sondagens e as futuras eleições, o governo entregou-se à infinita habilidade de António Costa e a uma poderosa máquina de comunicação que de tudo faz propaganda. Até da doença. O principal plano do governo parece resumir-se a uns pontos claros. Não precisar da oposição. Governar sozinho. Obter os dinheiros da União Europeia. Aguentar as sequelas do desastre económico. É pouco.

 

Da oposição, não vem mais nem melhor. Uma oposição de esquerda vendida e calculista. Uma oposição de direita desorientada e oportunista. Oposições unidas num desígnio maior: o de vigiar de perto a impotência do governo e espreitar os seus erros para aproveitar eleitoralmente. Nunca, na história recente, se viu tamanha sarna à espera que o governo falhe e que a população sofra uma tragédia. Uns esperam que a pandemia destrua o governo, outros gostariam que a impotência das autoridades se pague com uma derrota. Conhecemos a frase feita: quanto pior, melhor! É o santo e a senha das oposições contemporâneas.

 

A aprovação do orçamento foi um caso aberrante. Berros e negociações inadmissíveis, chantagens e oportunismo por excesso, perda de vista de tudo o que é essencial, com visível favor a tudo o que possa ser resolvido com as habilidades do costume. Um governo de um país em séria crise que depende, para os seus orçamentos, de duas deputadas independentes caprichosas e rebeldes, de abstenções tácticas e com reserva mental e de dádivas de medidas que se prestam à demagogia barata… Não é boa receita. Não é auspicioso. Nem bom sinal. O governo que faz estas coisas, que assim se porta, que perde de vista o que é essencial, não merece confiança nem nos dá esperança.

 

Bastavam a dívida pública, a TAP, o Aeroporto de Lisboa e o Novo Banco para exigir um governo com autoridade, maioria e estabilidade. Com a pandemia e as consequências desastrosas para a economia e a sociedade, um governo com autoridade é ainda mais necessário. Até porque não se trata apenas de resolver os problemas visíveis e urgentes, a começar pela saúde, pelas falências e pelo desemprego. Trata-se também de não perder de vista que há um país adiado, atrasado, impune, que não sabe resistir à intriga, ao roubo e à corrupção.

 

É bem possível que, um dia, vacinada a população, consolidada a imunidade e depois de feito o luto necessário multiplicado por milhares, regressemos aos nossos problemas, à economia e à sociedade, com relevo para a justiça, que não deveria ficar mais uma vez adiada ou, pior, suspensa até mais ver, sem dia marcado.

 

As intenções legislativas, excelentes mas pouco práticas, da Ministra da Justiça, no combate à corrupção, parece ficarem em terra de ninguém. Algumas novas directivas da Procuradoria-geral da República levantam as mais sérias dúvidas em quase toda a comunidade judicial. As negações de justiça de que são vítimas tantas mulheres são arrepiantes. Valerá a pena recordar os casos de Justiça? Isto é, a lista estonteante de casos não resolvidos, de casos eternos, de casos à espera, de casos sempre adiados, de casos de que não se vê fim nem solução?

 

Será que temos de esperar com indiferença pela prescrição, pelo mistério e pela decisão inconclusiva, relativamente aos casos do nosso subdesenvolvimento político e moral? Será que estamos condenados a deixar passar os processos que mais prejudicaram o país e que mais honra destruíram? Será que a falta de maioria política, a ausência de uma clara legitimidade democrática e a obsessão com a habilidade nos vão condenar a deixar passar os arguidos da Operação Marquês, os responsáveis visados pela Operação Monte Branco, os trafulhas dos Vistos Gold e os culpados citados pelas operações do BES, do GES, do Banif, do BPN, do BPP, da PT e da EDP?

 

Será que estamos mesmo condenados a ter os mais ilustres corruptos e bandidos da Europa, em cujo elenco se incluem Primeiro ministro, ministros, secretários de Estado, deputados, presidentes de câmara e vereadores, directores-gerais, secretário-geral de ministério, presidente de Instituto, chefe de polícia, magistrados de primeira instância e da Relação, alguns dos mais importantes banqueiros, gestores e administradores de algumas das mais importantes empresas privadas e públicas, oficiais das Forças Armadas e dirigentes de polícia militar?

 

A pandemia não pode ser desculpa para a injustiça. Nem para a falta de Justiça.

Público, 6.12.2020

1 comentário:

Unknown disse...

Para além da venalidade e incompetência, insaciável apetite por poder, incluindo os pequenos e grandes poderes instalados nas teias burocráticas, não encontramos fortes causas deste trágico estado de coisas nas leis que a alguns serve e a outros condena?