A Rússia sempre foi assim. Imperial e autocrata. E sempre será. Há para isso razões históricas, geográficas, económicas, étnicas, religiosas e outras. E os dirigentes russos nunca quiseram contrariá-las. Mais do que qualquer outro país europeu, a Rússia sempre viveu com tortura, escravidão, servidão e ditadura. Com este passado, a Rússia sempre foi brutalmente violenta. Tanto nos seus tempos de “esquerda” como nos de “direita”. Internamente opressiva e externamente opressora.
Poder-se-ia pensar que na Europa já não se bombardeavam bairros residenciais, escolas, hospitais, fábricas e teatros. E que já não se cometiam crimes de guerra. Quem assim pensava, desengane-se: esquecia-se da Rússia. O que esta faz na Ucrânia, agressão mais invasão mais destruição, foi o que sempre fez, tanto no estrangeiro como dentro das suas fronteiras.
Depois e apesar do Pacto entre a Alemanha nazi e a União Soviética, de 1939 a 1941, o heroísmo do Exército Vermelho, de 1941 a 1945, ficou para a história, mas só porque também a sua própria vida estava em causa. Mas ainda mais, para a crónica dos anos, ficou um dos seus perenes contributos para a história dos direitos humanos, o Gulag. Comparável ou igual, ao que dizem, ao Katorga czarista, uma rede de prisões e de estabelecimentos de trabalhos forçados que se estendia por toda a Rússia e que tinha os presos políticos como principais clientes.
Com a Rússia, não há entendimentos permanentes, nem cooperação, a não ser por necessidade, como aconteceu nos anos oitenta, quando perdeu influência no mundo, foi economicamente derrotada, foi cientificamente ultrapassada, atrasou-se militarmente e deixou fugir alguns dos seus aliados por esse mundo fora. No essencial, a Rússia tem de ser contida pela força, pela eficácia económica, pela superioridade da ciência, pela cultura e pela política. E pela lei internacional, com certeza, que a Rússia só respeita se a isso for forçada.
Esta é a Rússia que está em guerra e que invadiu a Ucrânia. Esta é a Rússia que suscita a complacência de muitas das esquerdas europeias, até de muitas direitas. E de intelectuais, universitários e jornalistas. Para muitas destas pessoas, a culpa, a responsabilidade e a autoria desta agressão, deste verdadeiro massacre, pertencem por inteiro à NATO, às democracias ocidentais, à União Europeia e sobretudo aos Estados Unidos. Assim como, evidentemente, ao capitalismo.
Os críticos da democracia chegam a afirmar solenemente que a Europa é culpada e não está à altura dos acontecimentos porque não está armada e não tem uma defesa própria! É verdadeiramente obsceno ver os que sempre recusaram que a Europa tivesse uma qualquer força militar proclamarem agora que a Europa deve abandonar a aliança com os americanos e forjar a sua própria força militar! Ou já o devia ter feito há muitos anos!
Culpar os americanos pela guerra da Ucrânia é infame. Sublinhar as responsabilidades europeias na agressão à Ucrânia é desonesto. Garantir que a invasão da Ucrânia pelos russos não é mais do que uma guerra entre os Estados Unidos ou a NATO e a Rússia, provocada pelos primeiros, é do domínio da fantasia fanática.
É extraordinário que haja quem tenha dificuldades em avaliar a acção russa (que é tipicamente a de uma agressão e de uma invasão), mas sinta necessidade de culpar e acusar o ocidente democrático, os países da NATO, a União Europeia e os Estados Unidos da América. É verdade que, para se defender, a Europa tem de se armar, organizar e libertar-se da dependência russa em energia. Mas não foi isso que provocou a agressão à Ucrânia. Só espíritos particularmente perturbados são capazes de formular a tese contrária.
E no entanto a evidência parece simples: a Europa deve ter a sua própria defesa, apoiada em forças comuns e forças nacionais, assim como deve prosseguir e reforçar a sua aliança com os americanos, mas se possível em posição de menor dependência e mais paridade. Isso custa muito caro. Seria bom que os Europeus estivessem dispostos a isso. Talvez a destruição da Ucrânia e talvez os crimes russos cometidos nestes quinze dias sejam bons argumentos para os Europeus finalmente gastarem mais com a sua defesa e a sua segurança. Sempre com uma certeza: por mais forte que seja, a Europa necessitará da sua aliança com a América. Podem rever-se os termos, os custos, os prazos e as orientações. Mas tem de haver aliança.
É estranho que tantas pessoas, que não cessaram de combater no passado qualquer ideia de defesa europeia, surjam agora a culpar a Europa (a UE e a NATO) pela invasão da Ucrânia e pelos massacres de populações civis. Mas também a considerar que uma das culpas da guerra na Ucrânia reside no facto de a Europa não ter defesa própria! Não há maior cinismo! Não há mais grosseiro oportunismo! Impressionada com a solidariedade mundial, essa gente menor procura um bode expiatório para os actos de guerra e a agressão russa. Estava mesmo a ver-se: eram os Estados Unidos e a inexistente defesa militar da Europa.
Imaginemos as várias ideias de defesa europeia. Primeira, a de exércitos europeus internacionais e transnacionais. Segunda, a coexistência de vários exércitos nacionais devidamente articulados. Terceira, uma combinação das duas anteriores. Imaginemos também que qualquer destas hipóteses pode ou não incluir os Estados Unidos. E que a aliança com os Estados Unidos, como actualmente na NATO, pode ou não coexistir com uma defesa mais europeia ou mais autónoma. De toda a maneira, estas hipóteses podem sempre entender-se com mais ou menos dependência dos Estados Unidos. Uma coisa é certa: quanto menos a Europa fizer, maior será a sua dependência americana. E a sua vulnerabilidade perante a Rússia.
Qualquer destas hipóteses, com os seus méritos e defeitos, custa muito dinheiro, exige esforços, implica constância e persistência. Qualquer destas soluções deve ser compatível com a democracia e as liberdades. Ora muito bem: os críticos da defesa militar europeia sempre condenaram estas hipóteses, sobretudo as que implicam alianças com os Estados Unidos. Já se viu o essencial: estas opiniões só parecem absurdas a quem não percebe que o que está em causa é a democracia liberal, o Estado social europeu, a União Europeia, os Estados Unidos da América, o capitalismo e a economia de mercado.
A agressão à Ucrânia é violenta e destruidora. Mas também está a refundar uma nação e a acordar um continente solidário. E a exibir os charlatães do pensamento.
Público, 12.3.2022
1 comentário:
Tudo muito bem dito!
Nota: o heroísmo do Exército Vermelho, de 1941 a 1945, é a melhor expressão dessa violência; já vinha do tempo do Trotsky - quem recua morre!
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