sábado, 12 de novembro de 2022

Grande Angular - Requiem para a cidade de Lisboa

Foi esta semana anunciada a decisão de transformar o edifício da Caixa Geral de Depósitos em sede do governo. Era para ser apenas uma parte, sabe-se agora que será por inteiro. As mudanças já começaram. Parece que dentro de quatro anos a operação estará terminada. É possível que a maior parte do governo e dos ministérios se localize ali, naquele que a opinião designou, há anos, por Palácio Ceausescu, versão reduzida de um dos mais horrorosos edifícios de toda a Europa!

 

Será então a altura para prestar atenção, comparar e reflectir. À Lisboa do Governo do Terreiro do Paço e da Praça do Comércio, do Cais das Colunas e da Ribeira das Naus, sucede a Lisboa do Governo da Caixa e da arquitectura vulgar e pseudo… Pseudo monumental, pseudo pós-moderna, pseudo funcional e pseudo ousada! 

 

Entre as duas cidades, houve hesitação. Durante dois séculos, o coração e o poder balanceavam entre as Necessidades, a Ajuda e Belém. Os Ministérios foram dispersos. Parecia desenhar-se São Bento como lugar de referência, primeiro por causa de Salazar e da sua residência, depois por causa dos deputados e seu Parlamento. Mas nunca foram suficientes para organizar a cidade e seus poderes. O retrato agora é simples: da Lisboa do Terreiro do Paço para a Lisboa da Caixa.

 

A serena majestade do Terreiro do Paço, o apuramento de linhas dos edifícios, o equilíbrio das arcadas e das janelas, a abertura para o rio, o comovedor Cais das Colunas, a calma do tablado central, a nascença das ruas pombalinas, a vista para algumas colinas, a visão do Castelo São Jorge e um sentimento de grandeza recatada serão substituídos pela medonha arquitectura pagode da burocracia. Aliás, a evolução desenhava-se. Na Praça do Comércio, a que outros também chamam a Praça do Cavalo Negro, vem crescendo a cidade do burburinho pechisbeque, feita de hamburgers e tuk-tuk, hotéis atrevidos e restaurantes pretensiosos, à procura dos turistas da cerveja e da bola.

 

Apesar das chamadas de atenção e mau grado os programas eleitorais, a cidade prossegue o seu declínio. Ou antes, a sua metamorfose, a transformação numa cidade desinteressante, difícil, incaracterística, suja, barulhenta e desconfortável.

 

A cidade é seguramente uma das mais belas do mundo. A sua disposição, a sua geografia e a sua orografia fazem dela uma raridade. Vista da Outra Banda, do Cristo Rei, das pontes, do Tejo, do Parque de Monsanto ou de qualquer outro local que permita uma panorâmica, a cidade exibe-se esplendorosamente. A Lisboa de Carlos do Carmo, de Ary dos Santos e seus amigos é inesquecível, emparceira com as mais bonitas do mundo. 

 

O problema é Lisboa por dentro, Lisboa por perto, às voltas em Lisboa, Lisboa de todos os dias, Lisboa das ruas e do comércio, Lisboa do trabalho e do passeio, Lisboa do património e da vida.

 

A Lisboa histórica está a desaparecer. É natural. Nada é eterno. Mas o que muda, para diferente, pode ser para pior ou melhor. Com cuidado, o que se transforma pode incluir o que de melhor tem e trazer o que de melhor se pode ter. Com Lisboa, pode simplesmente tratar-se do pior dos mundos. Desaparece o melhor, a história, a beleza, a identidade… E aparece o pior, a uniformidade, o excêntrico, a insegurança, o banal, a vulgaridade com ar de contemporâneo, a infâmia inestética e parola. Para além do que desaparece, e mal, e do que aparece, pior ainda, há o que fica, o que se mantém e agrava. Este é o pior capítulo.

 

Assistimos a um verdadeiro assassinato da cidade de Lisboa, mais propriamente da Baixa de Lisboa, da Lisboa histórica, da Lisboa da tradição. Morrem as melhores Lisboa. A Baixa Pombalina, um prodígio urbano em vias de demolição. A Lisboa mourisca, quase única na Europa, em vias de destruição. A Lisboa burguesa dos séculos XIX e XX, com irrepetível personalidade. A Lisboa dos monumentos, dos Palácios, das quintas nobres e das quintinhas e dos retiros. A Lisboa do rio e das colinas. 

 

Prossegue o despovoamento do centro, da Baixa e dos bairros históricos. Multiplicam-se os hotéis e escritórios de aparente luxo, para reciclar capitais sorrateiros e Vistos Gold. Nas ruas, alastra o turismo nómada do souvenir e da placa magnética para colar no frigorifico. Nas ruas pombalinas e no Rossio, ainda se poderia ouvir grito desesperado “Acudam, que matam Lisboa!”, mas já é tarde. As ruas da Baixa estão inundadas de lojas de mau gosto, com grafiti e souvenirs plásticos, portas e janelas tapadas com tijolos para proteger dos sem abrigo, da droga e dos ratos. Multiplicam-se as lojas que nunca se perceberá o negócio que fazem, dado que os recuerdos não chegam para pagar a luz, quanto mais as rendas de milhares de euros. Crescem os comércios que negoceiam residências falsas e contratos fictícios para imigrantes ilegais. Há lojas de fachada e de droga. Há lojas de residência e de contrato. Há lojas de conveniência e de contrabando. Há lojas de tatuagem e casas de passe. Há negócios escuros para pagar rendas milionárias com que nenhum comércio legítimo será capaz de competir.

 

Como se fosse pouco, há a sujidade tradicional, aumentada pelo turismo, pela indiferença, pela megalomania dos planos integrados incapazes de arrumar e calcetar. Buracos voltaram a aparecer. Nas ruas e nos passeios, trotinetas e bicicletas são ameaças para os velhos, os deficientes, as crianças e os doentes. Não é seguramente o vereador X ou o presidente Y nem sequer o partido Z… São vários em sucessivos anos que deixaram Lisboa morrer e definhar. Regressaram os pedintes. Voltaram os esfomeados. Cresceram os sem abrigo. Estão por ali novamente falsas mães com crianças de empréstimo para pedir esmola. Sobram os receptadores de telemóveis, carteiras, iPad, computadores e equipamentos dos automóveis. Esgueiram-se por todo o lado os carteiristas da Carris. Pululam os indocumentados, os imigrantes ilegais e os candidatos a refugiados. A Baixa divide-se por grupos étnicos, por ramos de negócio ilegal, por sectores de actividades nocturnas e por artigos de contrabando.

 

Todos os dias a Câmara, as autoridades e o Governo têm invenções. Vias para bicicletas, centros de negócios, congressos de web, passes gratuitos, é só pensar. Mas o mais simples, lavar e limpar, remendar e tapar buracos, pintar e restaurar, alojar e legalizar, fica para trás. À espera de negócios obscuros e de demolição, casas devolutas e palacetes arruinados morrem devagar, até que a grua e o caterpílar ponham termo à cidade. Lisboa necessita de habitantes, moradores, estudantes residentes, lojas decentes, limpeza e cuidado, não necessita de start-ups chiques.

.

Público, 12.11.2022

 

 

Sem comentários: