sábado, 6 de novembro de 2021

Grande Angular - O grande sarilho

 Discutir prazos, perder tempo e perder-se com processos legais e outros, não é inédito. Em Portugal, acontece quase sempre. As audiências desnecessárias, as reuniões para cumprir calendário, as questões do recenseamento, os prazos e os recursos, as exigências da campanha e a regulamentação adjectiva, são as regras em Portugal. Sempre foi assim. Sempre afligiu.

É verdade que a democracia é, em grande parte, uma questão processual. Isto é, o respeito pelos processos estabelecidos e acordados, institucionais e duráveis, é o respeito pela democracia. Mas também não é menos certo que, com frequência, o legislador se compraz em criar processos burocráticos com os quais se pretende dar garantias de igualdade democrática, mas que na verdade são mais “regras do proprietário”. Os próximos meses, até termos orçamento, primeiro pretexto para a presente dissolução, serão uma boa ilustração destes processos democráticos que defendem os actuais senhorios.

Há quem diga que “da próxima vez, espera-se que já tenhamos corrigido…”, sem que nunca se mude e melhore o lado processual que os Portugueses adoram. Desde que se percebe que tem de haver eleições, desde que se fazem sentir os efeitos de um orçamento reprovado ou de uma dissolução anunciada, começam a contar os dias, as semanas e os meses, até encontrar um momento de estabilidade, de trabalho, de resultados e de cuidado com o povo! Há países em que poucas semanas bastam para ter novo governo em exercício. Portugal não é um deles. Passam-se meses até haver parlamento e governo. E muitos mais até haver novo orçamento. E ainda mais para que a maior parte dos ministros saiba o que está ali a fazer. Nada de grave. Nada de excepcional. É a democracia a funcionar.

Apesar dos lugares comuns incansavelmente repetidos, a verdade é que cada vez mais se vê e sente a crise dos partidos e da democracia. Que não é só portuguesa, é europeia. Facto que não alivia, antes agrava. Uma parte do problema consiste em identificar a crise. Uns dirão que é dos partidos, mas não da democracia. Outros dizem que é sobretudo desta, não daqueles. E há finalmente os que entendem, com mais verosimilhança, que estamos perante uma crise dos dois, da democracia e dos partidos. 

Antecipar eleições não é muito raro, nem grave. É a democracia. É frequente. Acontece em Portugal e noutros países. É o sistema político a funcionar.

Dissolver o Parlamento não é excepcional, nem dramático. Acontece. É a democracia a funcionar.

Perder agora numerosos meses com processos, prazos, avisos, conferências e recursos, não é novo, é o hábito em Portugal. É a nossa democracia a funcionar.

As divergências entre partidos, a dificuldade em chegar a acordo ou convergência e a impossibilidade de abdicar de pontos de vista, para poder chegar a uma base sólida de entendimento, são frequentes em Portugal. É mesmo quase a regra, é a nossa democracia a funcionar.

A gravidade do momento e dos últimos anos, a pandemia, as hipóteses de novo surto de contágio, a crise financeira e as probabilidades de um novo resgate financeiro não são suficientes para mudar os maus hábitos, não bastam para que os partidos entendam que devem mudar de comportamento e encontrar novas soluções: nada de novo, é a nossa democracia a funcionar.

À democracia portuguesa falta maturidade para que os seus protagonistas, partidos e instituições, percebam que a discussão, a negociação e o entendimento, além de serem necessários, são benéficos. Chegar a um acordo, elaborar um contrato, subscrever uma plataforma ou assinar um tratado podem ser virtudes e obras de arte políticas. São eventualmente actos de inteligência e sabedoria. Para já não dizer que são gestos de benefício para as populações.

Entre nós, as negociações e os acordos são considerados cedências. Os fracos receiam os acordos, os fortes desprezam-nos. O bairrismo da luta de classes, a rivalidade chauvinista e o orgulho marialva levam a melhor sobre a discussão e a convergência. Estas últimas são mesmo transformadas em defeitos graves, quando deveriam ser vitórias da razão.

Chegámos assim a este interregno longo e processual, de fingimento burocrático disfarçado de democracia, durante o qual se prepara o novo governo. Sem esquecer que estes episódios nos deixaram um sarilho: a escolha no dia das eleições. Isto é, o voto!

O PCP merece ser batido. Prefere, acima de tudo, tornar difícil a democracia, a Europa e a recuperação económica. Receia aflitivamente ficar amarrado ao PS e, a exemplo de quase todos os PC do mundo, desaparecer. Hesita entre morrer mudando de natureza ou morrer sem nada mudar.

O Bloco merece ser punido. Jogou mal e perdeu. Ficou apavorado. Teme perder o que tanto custou a ganhar, um eleitorado demasiado grande para as suas qualidades e as suas capacidades. Convenceu-se de que a esquerda do PS era a sua aliada. Ainda não percebeu que a sua aparente superioridade é uma inferioridade.

O PS merece ser castigado. Mudou de propósito, primeiro queria acordo orçamental, depois queria eleições. Sonha agitadamente com maioria absoluta. Na ausência de adversários à altura, convenceu-se da sua força e do seu saber. O seu governo aguentou mas não cumpriu. Nem desenvolveu. Um belo exemplo de enriquecimento sem justa causa.

O PSD merece ser ignorado. Perde-se à deriva, desperdiça talentos e experiência, vive em êxtase permanente, não tem autoridade, perdeu crenças e convicções, não tinha eira, agora não tem beira. Querer tudo, do corporativismo à social-democracia, do Estado à sociedade liberal, era a sua riqueza. Não querer nada é a sua pobreza.

O CDS merece ser esquecido. Deixou definitivamente de perceber a sua missão, já não sabe qual é o seu lugar, perdeu o sentido de posição e delapidou a herança. Não é protagonista, nem figurante. Nunca conseguiu sequer aproximar-se do que de mais importante tinha a fazer: trazer a democracia cristã para Portugal.

O CHEGA merece ser desprezado. Vive do nada. Mestre na agitação empolada, apraz-se no seu vazio, que transformou em virtude. Percebeu que a sua força residia no pavor alheio, no receio infundado com que os outros partidos olham para si. Não adianta. É tempo perdido.

É pena que não seja matematicamente possível que todos percam.

Público, 6.11.2021

2 comentários:

António Ladrilhador disse...

Entendo que comece pelo PCP a sua lista de perdedores.
A mensagem obsoleta e desequadrada da realidade triste do País, o advogar do inimaginável como se de verdades absolutas se tratasse - como terras de onde as pessoas não podem sair para outras que sejam povoadas por quem livremente escolheu lá ficar - leva, cada vez mais, a crer que o Partido apenas subsiste para gáudio de velhos do Restelo que, no interior das paredes de vidro, ainda impõem uma disciplina férrea: macambúzios, falhos de adrenalina, enfadados, contrariados, bruscos, agressivos, nada atraentes, cujo orgulho comunista os impede até de aceitar, vinda de fora, a mais tímida sugestão.
Refleti longamente sobre o tema em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/10/matusalem-reliquia-comunista-portuguesa.html, cuja leitura aqui deixo como sugestão.

Jose disse...

O problema é dos políticos.
Quantos deles colheram na sua vida profissional - se é que a tiveram - a noção do valor do tempo, do saber que acrescer valor é agir a todo o tempo, que esperar o ótimo é perder o possível.
O problema é dos portugueses.
Há anos embalados pelos hinos do tudo é possível, e sê-lo-á pela mão do Estado.