sábado, 12 de agosto de 2023

Grande Angular - O mal dos outros e o nosso

 O mundo não está bem. Raramente, nas últimas décadas, esteve tão perto de abismos diversos. É um daqueles momentos de transição que revelam perigos inéditos. É verdade que o mundo está sempre em mudança. Já deveríamos estar habituados. Mas o problema das evoluções bruscas é a dimensão e a profundidade. Reside no facto de os principais equilíbrios serem postos em causa. São momentos de transformação em que muitos perdem e alguns ganham: Estados, nações, povos, classes sociais, partidos e empresas estarão, dentro de poucos anos, em posição bem diferente da que conhecem hoje. São verdadeiras placas tectónicas em movimento.

 

Os Estados Unidos perdem, já não são a nação hegemónica. A Europa, sempre invejável, já só tem protagonismo se for parte do Ocidente, ao lado dos Estados Unidos. O mundo bipolar da Guerra Fria está longe de nós. Apesar de garantir um lugar no novo mundo fragmentado, a Rússia perde, não sem estrebuchar, deixando o planeta suspenso. A brutal invasão da Ucrânia é o mais recente feito da barbárie que julgávamos afastada. Graças ao seu esforço, a China ganha, ajudada pelo Ocidente que lhe deu as bases para uma posição invejável. O Japão, atá há tão pouco tempo uma potência ascendente, estagna e pesa pouco. A Índia, pelo contrário, surge no horizonte com cores de novo poder. No Próximo Oriente, Israel treme nos seus fundamentos, enquanto Estados islâmicos poderosos se preparam para uma nova era militar e financeira. Outras nações, africanas e asiáticas, querem garantir pelo menos um lugar de acessório indispensável. Mas toda a gente percebe que está tudo em causa. Drama é o termo mais tranquilo. Tragédia é mais provável.

 

Ceder parte da sua força, perder uma grande dose do seu poder e alienar uma enorme porção da sua fortuna não se fazem sem convulsão. Ascender às primeiras posições e obter lugar de proeminência só se fazem com inevitável perturbação da ordem estabelecida. Estas transformações fundamentais deixam o planeta em crise. A despesa militar não cessa de aumentar.

 

A América Latina já entrou em percurso agitadíssimo. A droga liquidou o continente. Do Equador à Colômbia, da Venezuela ao México e ao Brasil, aquele mundo prepara-se para viver um novo ciclo de violência. Em África, trava-se mais uma guerra de partilha e extracção, com um número inédito de protagonistas. As numerosas ditaduras locais aliaram-se às forças interessadas na divisão e nos despojos. Rússia, China, Europa, Estados Unidos, poderes islâmicos e regimes militares africanos preparam-se para deitar fogo ao continente. A democracia, em flagrante recuo no mundo, deixa de ser aspiração ou disfarce para povos e Estados. Cada vez mais confinada ao Ocidente, a vocação universal dos direitos humanos recua todos os dias. Os novos grandes poderes deste mundo declaram mesmo que a democracia e os direitos humanos são apenas tradições de uma pequena parte da humanidade.

 

E Portugal? E os portugueses? E nós? Onde estamos no meio destas ameaças? A primeira resposta é simples, optimista e errada: não estamos no centro de nenhuma destas controvérsias e por isso não seremos arrastados para uma situação dramática. Na superfície, está certo. No essencial, é falso: neste mundo, o nosso destino será o da Europa, teremos tanto a perder e a ganhar como qualquer um dos nossos vizinhos.

 

A segunda resposta é mais complexa, céptica e verdadeira. Sem envolvimento directo em nenhum dos vendavais, temos as nossas próprias misérias. Apesar das mudanças das últimas décadas, os nossos contemporâneos vivem a alegria de algum sossego, vivem a calma de agitações suportáveis, mas vivem também situações intoleráveis de uma sociedade dura e de um Estado moralmente medíocre. Até quando?

 

Tivemos uma Jornada da Juventude gloriosa. Temos todos os dias resultados desportivos que nos honram. Temos uma formidável temporada de concertos estivais com muitas dezenas de milhares de jovens entusiastas. Temos promessas ilimitadas de novos comboios, de aeroporto, de parques de inteligência artificial, de laboratórios científicos, de novos hospitais e de modernos portos marítimos. Pois bem! Pode ser que tudo isso seja verdade e que os feitos recentes do nosso povo orgulhem muitos. Ma nada é suficiente para esconder a falta de cuidado dos serviços públicos, em fase de desperdício e desatenção como raramente se viu. 

 

Na saúde, a ausência de previsão, de planeamento e de pragmatismo conduziu a esta situação desumana de maternidades fechadas, de urgências encerradas, de pobreza de recursos do INEM e de meses e anos de espera por parte dos doentes. Sem falar no recrutamento por atacado de centenas de médicos latino-americanos. Desfazem-se diante de nós anos e anos de lenta construção do Serviço Nacional de Saúde, agora condenado a uma cada vez mais triste e desigual existência.

 

Tudo o que pede cuidado, sentido de humanidade e de igualdade, eficácia e prontidão, parece condenado a um triste atraso, sem desculpa nem decência. Os custos e o tempo de espera na Justiça, desorganizada e desigual, são um permanente aviso e uma recordação do peso do privilégio. Os tempos de espera e a indiferença em quase todos os serviços que implicam atendimento e atenção, impedem um qualquer juízo de esperança e optimismo. A desordem na escola, o deficiente recrutamento de docentes, a vista grossa para o cumprimento dos deveres e a complacência perante a disciplina pedagógica quase nos fazem desesperar do progresso cultural do nosso povo. A permanente desordem na imigração e o vigor dos traficantes de mão-de-obra clandestina apontam directamente para a desorganização e a desumanidade.

 

Neste quadro sombrio, falta evidentemente uma breve alusão a esta incapacidade de criação de riqueza, de estimular investimento, de garantir melhor salário e mais rendimento, de oferecer oportunidades a uma população dividia e pobre. Vejam-se os números, deixemos de brincar e fazer demagogia com as estatísticas, não continuemos a responder a um passado triste e a um presente difícil apenas com promessas e intenções irresponsáveis. Olhe-se com seriedade para os montantes da emigração e tentemos responder à pergunta mais simples: porquê?

 

É de mau tom ser-se ácido e pessimista. Não fica bem “dizer sempre mal”. Mas não há por onde escapar: os portugueses não têm actualmente razões nem motivos para se sentirem optimistas.

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Público, 12.8.2023

1 comentário:

Jose disse...

Tudo o que se observa tem no observador um ponto de partida definidor.
A sem esperança de quem observa, a partir deste país desesperançado, não pode deixar de reflectir-se numa realidade de sempre: o combate de cada um por si, temperado pelo reconhecimento de que partilhamos uma mesma casa e um mesmo destino.

O que se tornou mais evidente, nas relações internacionais, é a luta daqueles que requerem a multipolaridade, algo indefinido, mas que claramente comporta que, adentro das suas fronteiras, os poderes instalados possam oprimir livres de regras universais que os condicionem. As alianças de tais poderes fariam da ‘ordem internacional’ algo despido de um humanismo que, como tal, nunca pode distinguir os humanos por fronteiras.

A ‘decadência’ da democracia traduz essa luta e os seus promotores estão por todo o lado, reescrevendo a história, associando o liberalismo à perda da liberdade sob um qualquer pretexto e, reclamando-se como inovadores, ressuscitam valores do passado como o racismo, e criando valores artificialmente distorcidos, da identidade de género às relações homo, assim associam a democracia à insensatez e à depravação, para gáudio dos antidemocráticos.