sábado, 27 de março de 2021

Grande Angular - Estado frágil de país vulnerável

A história das vacinas na Europa e no nosso país é um sinal dos tempos e dos caminhos que percorremos. Há um hiato entre Estado e União. Talvez um dia a transferência de poderes e de competências dos Estados nacionais para as instituições da União (comunitárias ou federais) esteja mais consumada, seja mais eficaz e não revele estes espaços vazios… Mas ainda não é verdade. Nem se sabe se um dia será. Como também não podemos prever que não haja recuos.

Há meses, acreditou-se que a força da União era finalmente superior à soma das forças dos Estados. Pensou-se que a cooperação europeia, pela primeira vez, em caso tão dramático e difícil, tinha levado a melhor sobre os “egoísmos” nacionais, termo que os virtuosos europeus tanto gostam de utilizar. Poucos meses depois, verificou-se o contrário. A força europeia era fragilidade. À autoridade moral e à força simbólica da União não correspondiam uma capacidade prática e uma agilidade operacional à altura dos acontecimentos. Mais uma vez se verifica que a entidade política europeia, carregada de reputação e prestígio, não tem poderes reais. Com um novo problema: no labirinto europeu, não se sabe onde está a responsabilidade. 

Por outro lado, verificou-se também que os interesses nacionais (os que marcam as eleições e os que definem as democracias…) acordaram e sobrepuseram-se à ilusão federal europeia. Cada país tem tentado aproveitar o máximo do que a União pode dar, mas depois segue o seu caminho e tenta encontrar soluções próprias. A falta de vacinas e a deficiente capacidade produtiva industrial alertaram os governos que recearam, justificadamente, a reacção dos seus eleitorados. As dificuldades de negociação com as poderosas organizações privadas (tanto farmacêuticas, como industriais e comerciais) reforçaram a ideia de que a Europa corre permanentemente o risco de se ver reduzida à sua condição de “profeta desarmado” ou de “fidalgo arruinado”. É forçoso reconhecer que perderam as nações e os Estados, mas a Europa também. Muito se tem feito para acudir, vacinar, tratar, prevenir e proteger. Com grande dispêndio e enorme esforço humano. Mas temos de admitir que o muito foi pouco e o enorme insuficiente.

Este caso da pandemia e das vacinas é revelador do que pode ser uma situação equivoca, de transição entre um passado que já não é e um futuro que ninguém sabe o que pode ser. Há um vazio institucional e constitucional. Há um equívoco. Há uma terra de ninguém, local onde todos os desastres são possíveis. O lento definhamento dos Estados nacionais não é compensado ou substituído por uma União forte, democrática e prestigiada. Ficar a meio do caminho é geralmente perigoso. Manter a rota errada não é menos. Recuar é impossível. Só restam as hipóteses de corrigir, alterar e reformar. 

Já não é a primeira vez que todos perdem, nações, Estados e Europa. A invasão do Iraque foi talvez uma dessas ocasiões. Mas eram tempos de guerra, pouco dados a clareza de visão, ainda por cima com a NATO e os Estados Unidos às costas. Desta vez, com as vacinas, não havia esses imponderáveis. E tudo parecia ter começado bem para a Cooperação europeia. Um papel para a Comissão, outro para o Parlamento e outro ainda para o Conselho. E a colaboração dos Estados nacionais parecia assegurada. Tudo parecia ou levava a crer que havia paz e entendimento entre Estados, União, indústria, serviços financeiros e de transportes, autoridades sanitárias… Parecia… Em poucos meses, chegámos ao estado actual em que percebemos que não era verdade e que perderam todos.

Será que estamos apenas diante da conjuntura excepcional, irrepetível, da pandemia? Será que, passada esta, a Europa e as suas nações retomarão os seus grandes projectos de relançamento económico, de competição científica e tecnológica com o resto do mundo, de atracção irresistível dos povos emigrantes e refugiados? Seria bom pensar assim. Mas seria também errado. A pandemia e as suas consequências sociais e económicas, mais do que trazer consigo novas crises, revelaram as existentes, incluindo as adormecidas. Mostraram a fragilidade crescente dos Estados e dos países, considerados individualmente, acentuaram a vulnerabilidade da construção europeia no seu conjunto.

Não se acredite que os Estados europeus sejam fortes, têm poder, usufruem de grande autoridade e como tal são reconhecidos pelos seus cidadãos. Os Estados europeus não são fortes, são pesados. Nas suas obediências, dividem-se entre os privilegiados dos sectores públicos e os mandantes da economia e das finanças. Em graus diversos, é verdade, mas há muito que perderam a autoridade da sua força independente dos predadores. Não se acredite, pois, que, deixada a pandemia para trás, os Estados e a sua federação retomarão, sem profundas reformas, os seus papéis serenos de liderança e orientação. Até porque o mundo voltou a mudar em poucos anos. Depois da desgraça de Trump, nunca mais a América será o que foi ou poderia ter sido para os europeus. Por outro lado, o novo papel da China no mundo, conjugado com a velha função da Rússia, deixou a Europa em piores condições e sobre terreno frágil.

Parece ser indispensável, por causa das questões económicas e científicas, reforçar o papel da União. E, por causa da política e da democracia, voltar a dar aos Estados nacionais uma função política de relevo. Mais difícil ainda, fortalecer a ameaçada segurança europeia, tanto global como nacionalmente. Parece simples, mas não é. Regressar ao nacionalismo é um verdadeiro suicídio. E não se crê que possa ser democrático. Enveredar às cegas, como até agora, pelo federalismo e pela destruição do Estado nacional, dá mau resultado. Como se vê. E também não parece vigorosamente democrático.

O Estado não é forte de mais. É fraco e pesado. E frágil. Só é forte nos obstáculos que cria. E para favorecer os seus. O Estado com autoridade será o que cria condições, abre caminhos, deixa viver, incentiva e estimula. É o Estado capaz de voltar a ter competência técnica e capacidade científica. É o Estado que não se deixa prender por interesses económicos ou financeiros, sindicais ou partidários, muito menos por empresas de publicidade, sondagens, consultoria, engenharia financeira ou comunicação. É o Estado que protege quem necessita, sem favorecer os seus.

Público, 27.3.2021

  

Sem comentários: