domingo, 17 de dezembro de 2017

Sem emenda - Este meu país tão raro!

O caso “Raríssimas” ocupa a crónica nacional. É natural. Tem contribuído, para o clima nacional, com várias revelações. Ou confirmações. Como seja, por exemplo, o primado do mexerico nos costumes. Ou o papel da inveja na cultura nacional. Ou ainda a indiferença pela realidade e pelos factos, assim como o desprezo de muitos profissionais e comentadores pelos números. E também a facilidade com que não se resiste à tentação da pele, da carne e do bolso. Ou, finalmente, a posição do bilhete de avião, do carro, do vestido e da gamba na escala de valores morais.
O caso despertou velhos fantasmas. O dos polícias e inquisidores que entendem que se devem vigiar as organizações de solidariedade e criar uns milhares de vigilantes para cuidar de uns milhares de organizações. O da rústica simplicidade com que se afirma que é necessário nacionalizar as instituições privadas e estatizar as funções sociais. A estúpida candura dos que garantem que o Estado não corrompe, não desperdiça, não se deslumbra e não mente.
Milhões! Palavra mágica! Número mágico! Desencadeia imediatamente todos os maus sentimentos do mundo. Inveja. Desconfiança. Ambição. Milhões! Quem os tem, guarda-os, não distribui e quer mais. Quem os não tem quer ter. Quem não tem desconfia. E quem desconfia tem inveja.
Infelizmente, a inveja e o mexerico são suficientes para muita gente. É verdade que a corrupção, o nepotismo e o deslumbramento são insuportáveis e não devem ser financiados. Mas não podem fazer esquecer os factos e as situações a analisar. Na verdade, “milhões” pode ser muito ou pouco. Depende dos resultados e para quê. Quem se interessou realmente por saber quanto era gasto com cada doente e a que título? Quantas pessoas eram auxiliadas e acompanhadas? Quais as condições de acesso a estes tratamentos? Quantas pessoas trabalham nestes casos de doenças especiais muito exigentes? Quantas famílias vivem nas mesmas condições? Quantos não conseguem ter o mesmo apoio? O que pode ser feito com voluntários e o que deve ser feito com técnicos remunerados?
Quantas crianças doentes estão a ser tratadas naquela organização? Quantas pessoas estão internadas? Que outras formas de tratamento estão a ser seguidas? Quantas pessoas foram tratadas desde que a associação começou a receber subsídios do Estado? O acompanhamento implica técnicos em tempo inteiro? Quantas horas por dia? Quantos dias por semana? Há outras instituições semelhantes? Gastam mais ou menos? Muito mais ou muito menos? Tratam mais pessoas ou menos? Há voluntários ou só técnicos remunerados? Quantas pessoas existem em Portugal com doenças semelhantes e com exigências deste mesmo género? Há pessoas que não conseguem subsídios ou tratamento?
O que sabemos com segurança da “Raríssimas” não nos permite chegar a uma conclusão certa. É possível concluir que o seu trabalho é precioso, bem pago, justamente remunerado, devidamente recompensado, deve ser continuado, pode ser replicado e constitui uma função útil e necessária.
É possível concluir que aquele dinheiro é bem empregue, que os sacrifícios que aquele trabalho exige devem ser devidamente recompensados e que o facto de se tratar de milhões é indiferente dado que as necessidades custam isso e muito mais.
Mas também é possível concluir que há dinheiro a mais, que muitos recursos são ilicitamente aproveitados por pessoas e famílias que se aproveitam, que aquele trabalho é mais bem feito por outras associações privadas e por instituições públicas.
E também seria legítimo concluir que aquele trabalho é desperdício, fonte de corrupção e promiscuidade, factor de propaganda eleitoral e demagogia política e motor de promoção pessoal e deslumbramento.
Mas, para concluir o que quer que seja, é indispensável prestar atenção aos factos, aos números, à realidade e á história. Enfim, minudências. Pois…
DN, 17 de Dezembro de 2017


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