O caso “Raríssimas” ocupa a
crónica nacional. É natural. Tem contribuído, para o clima nacional, com várias
revelações. Ou confirmações. Como seja, por exemplo, o primado do mexerico nos
costumes. Ou o papel da inveja na cultura nacional. Ou ainda a indiferença pela
realidade e pelos factos, assim como o desprezo de muitos profissionais e comentadores
pelos números. E também a facilidade com que não se resiste à tentação da pele,
da carne e do bolso. Ou, finalmente, a posição do bilhete de avião, do carro,
do vestido e da gamba na escala de valores morais.
O caso despertou velhos
fantasmas. O dos polícias e inquisidores que entendem que se devem vigiar as
organizações de solidariedade e criar uns milhares de vigilantes para cuidar de
uns milhares de organizações. O da rústica simplicidade com que se afirma que é
necessário nacionalizar as instituições privadas e estatizar as funções
sociais. A estúpida candura dos que garantem que o Estado não corrompe, não
desperdiça, não se deslumbra e não mente.
Milhões! Palavra mágica! Número
mágico! Desencadeia imediatamente todos os maus sentimentos do mundo. Inveja.
Desconfiança. Ambição. Milhões! Quem os tem, guarda-os, não distribui e quer
mais. Quem os não tem quer ter. Quem não tem desconfia. E quem desconfia tem
inveja.
Infelizmente, a inveja e o
mexerico são suficientes para muita gente. É verdade que a corrupção, o
nepotismo e o deslumbramento são insuportáveis e não devem ser financiados. Mas
não podem fazer esquecer os factos e as situações a analisar. Na verdade,
“milhões” pode ser muito ou pouco. Depende dos resultados e para quê. Quem se
interessou realmente por saber quanto era gasto com cada doente e a que título?
Quantas pessoas eram auxiliadas e acompanhadas? Quais as condições de acesso a
estes tratamentos? Quantas pessoas trabalham nestes casos de doenças especiais
muito exigentes? Quantas famílias vivem nas mesmas condições? Quantos não
conseguem ter o mesmo apoio? O que pode ser feito com voluntários e o que deve
ser feito com técnicos remunerados?
Quantas crianças doentes estão a
ser tratadas naquela organização? Quantas pessoas estão internadas? Que outras
formas de tratamento estão a ser seguidas? Quantas pessoas foram tratadas desde
que a associação começou a receber subsídios do Estado? O acompanhamento
implica técnicos em tempo inteiro? Quantas horas por dia? Quantos dias por
semana? Há outras instituições semelhantes? Gastam mais ou menos? Muito mais ou
muito menos? Tratam mais pessoas ou menos? Há voluntários ou só técnicos
remunerados? Quantas pessoas existem em Portugal com doenças semelhantes e com
exigências deste mesmo género? Há pessoas que não conseguem subsídios ou
tratamento?
O que sabemos com segurança da
“Raríssimas” não nos permite chegar a uma conclusão certa. É possível concluir
que o seu trabalho é precioso, bem pago, justamente remunerado, devidamente
recompensado, deve ser continuado, pode ser replicado e constitui uma função
útil e necessária.
É possível concluir que aquele
dinheiro é bem empregue, que os sacrifícios que aquele trabalho exige devem ser
devidamente recompensados e que o facto de se tratar de milhões é indiferente
dado que as necessidades custam isso e muito mais.
Mas também é possível concluir
que há dinheiro a mais, que muitos recursos são ilicitamente aproveitados por
pessoas e famílias que se aproveitam, que aquele trabalho é mais bem feito por
outras associações privadas e por instituições públicas.
E também seria legítimo concluir
que aquele trabalho é desperdício, fonte de corrupção e promiscuidade, factor
de propaganda eleitoral e demagogia política e motor de promoção pessoal e
deslumbramento.
Mas, para concluir o que quer que
seja, é indispensável prestar atenção aos factos, aos números, à realidade e á
história. Enfim, minudências. Pois…
DN, 17 de Dezembro de
2017
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