A comparação já foi feita: o debate político parece-se cada vez mais com o futebol e respectivas claques. O que interessa é a cor e a camisola. O que conta é saber quem apoia e quem critica. Ou quem é apoiado e quem é condenado. O caso, o objectivo, a decisão, o programa, o valor e a ideia são de menor apreço e quase indiferentes. Importa, isso sim, é saber se é a favor ou contra o grupo, o chefe e o partido. Importa berrar e bramar, ameaçar e apoiar, vibrar de prazer ou rosnar de ódio, bajular ou agredir. Se os meus são criminosos, desculpam-se, porque a culpa é dos outros, batoteiros por definição.
Os meus têm valores. Os outros têm interesses. Os meus têm causas. Os outros têm bolsos. Os meus preocupam-se com o interesse nacional e o bem comum. Os outros só pensam nos seus grupos e nas suas corporações. Os meus são democratas, justos, racionais, eficientes, com causas, pergaminhos sociais, cultura e mérito. Os outros são candidatos a ditadores, oportunistas, mentirosos, prisioneiros dos lobbies e defensores de interesses ocultos. Se, entre os meus, já houve corruptos e aldrabões, esquecemo-nos facilmente. Os corruptos dos outros, por seu turno, são eternos.
Ouvir os socialistas falar hoje dos sociais-democratas e dos populares é ficar a conhecer um rosário de insultos e calúnias. Só comparável ao que se ouve aos sociais-democratas quando estes se exprimem sobre os socialistas; aos comunistas e aos bloquistas quando se referem aos partidos da direita; e a todos e cada um quando se exprimem sobre os outros. Um dos objectivos desta oratória consiste em explicar os saneamentos políticos e as nomeações dos amigos: os que vão sair são incompetentes, mentirosos e eventualmente corruptos. Os que entram, os meus, são exemplos de virtude e competência.
Outra dimensão de fino recorte intelectual é a da culpa. Não fui eu, foste tu! Não fomos nós, foram vocês! O vosso governo fez muito pior! A culpa é do governo anterior! As causas já vinham de trás! A pobreza e a miséria dos professores, a destruição do Serviço Nacional de Saúde, a imprevidência na protecção civil e a vulnerabilidade das instalações militares são da total responsabilidade do governo anterior. Assim como o aumento das desigualdades sociais. Ou o escândalo das energias renováveis. Tal como o anterior governo dizia. E o antes desse.
A este tom grave de acusação não corresponde depois acção judicial. Nem sequer demonstração pública das malfeitorias dos outros. Bem se pode esperar para saber mais sobre as famigeradas parcerias, as falências bancárias, as fugas de milhares de milhões, os offshores, a descapitalização fraudulenta, o mero roubo e os ajustes directos! Bem se pode esperar pela conclusão de processos de negligência na protecção civil!
Como o futebol, a política têm regras próprias e especiais. É permitido mentir, ameaçar, caluniar, roubar, corromper e não cumprir os contratos… E quando não é permitido, é tolerado. E se não é tolerado, o autor fica, em geral, impune. A verdade é que, como no futebol, o que os meus fazem é justo, o que os outros fazem é crime. Os meus podem “meter a mão”, quebrar os pés do adversário e faltar às regras, desde que o árbitro ou o juiz não vejam.
A grandeza deste debate e a qualidade destes termos são surpreendentes! A escola de oratória politica e parlamentar é hoje o comentário desportivo das televisões, horas a fio, diariamente, em todos os canais! O que criou o estilo político parlamentar foi a televisão, o futebol, a democracia directa dentro dos partidos e o sistema eleitoral. O que se diz, mente ou berra não se destina a ser ouvido pelos eleitores, mas sim pelos colegas de partido. São eles que decidirão se um deputado é fiel ao chefe e se é suficientemente agressivo contra os inimigos. Não parece que tão cedo haja condições para alterar este estado de coisas. A calúnia e o insulto têm uma função redentora: a de servir de biombo à falta de justiça.
DN, 10 de Dezembro de 2017
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