sábado, 20 de julho de 2024

Grande Angular - Complexos de superioridade

 Somos tão melhores! Somos, quem? Conforme o caso, nós somos os Portugueses, os Europeus, os democratas, os ocidentais, os brancos, os cristãos e os intelectuais.

 

Somos melhores do que os outros. Os outros, quem são? São os Americanos, os Russos, os Asiáticos, os Africanos, os Judeus e os Muçulmanos.

 

Muitos Europeus, de esquerda e de direita, desprezam os americanos, têm medo dos russos, consideram os chineses inferiores e pensam que estão acima dos africanos. Os Europeus de esquerda acrescentam a esses preconceitos alguns juízos mais sofisticados. Os americanos seriam incultos, os russos brutos e os chineses atrasados. Mas sobretudo os Europeus consideram-se superiores moral, política e intelectualmente. Têm melhores sentimentos, história mais interessante, leram mais livros, são mais democratas, têm passaporte e falam várias línguas.

 

Os americanos seriam bebés grandes, atrasados mentais, populistas, prontos para matar os povos indefesos, amantes da violência, imperialistas e apenas ciosos de liberdade quando esta lhes traz dólares. A maioria dos americanos, para muitos europeus, de esquerda como de direita, é composta de gente analfabeta, dada a desportos violentos, a hambúrgueres e cerveja. Os americanos, que votaram Reagan, Bush e Trump, seriam idiotas, imperialistas, evangelistas e racistas.

 

Os franceses, com excepção dos intelectuais e dos profissionais da moda, seriam pequeno-burgueses de simpatias extremistas, racistas de tradição, exploradores de árabes, convencidos de que podem mandar na Europa. Os que votam nas direitas, aliás cada vez mais, seriam fascistas.

 

Os alemães são sempre os mesmos, pesados, brutos, exploradores, violentos, amantes de cerveja, eternos invasores dos seus vizinhos, disponíveis para aventuras fascistas, usaram os franceses para se promoverem a democratas, mas agora querem é mandar em todos. E só pensam, evidentemente, em conquistar os vizinhos e comprar as suas indústrias.

 

É assim que os Europeus se enganam.

 

Estão em curso mudanças profundas, tão vastas e tão rápidas como raramente se viu na história. Também é verdade que tudo anda mais depressa. Que tudo se sabe mais rapidamente. E que tudo e todos comunicam e estão ligados a todos e tudo. 

 

Muitos não souberam perceber o que se passava com as nações. Com as comunidades nacionais. Com as comunidades de língua, cultura e tradição. Consideraram que tudo isso era nacionalismo de pacotilha, conspiração obscurantista e capitalismo selvagem. Quando não fascismo puro e duro. E de qualquer modo racismo. Há uma falsa racionalidade na política democrática contemporânea que evita a nação e a história. As tentativas de reescrever a história, de restituir, de devolver, de reinterpretar e de traduzir em dialecto correcto a herança histórica europeia estão a destruir a democracia.

 

Muitos não conseguem entender que as populações estão em mudança acelerada, inescapável, em processo que ultrapassa as vontades de um governo ou de um só país. A circulação de pessoas, a miscigenação e as migrações são partes estruturais da história do presente. É impossível estancar, com democracia, tais tendências. Mas é possível ordenar, controlar, legalizar e administrar. Com o assentimento dos povos. Com tolerância. Caso contrário, a explosão racista e a desordem estão aí, ao virar da esquina. E a falsa igualdade generosa acaba por ser o mais eficaz estímulo ao mercado negro de pessoas, à ilegalidade e à exploração mais vil que se pode imaginar.

 

O contexto internacional é um incentivo à ansiedade. Os Russos procuram uma vingança histórica. Os Chineses querem consolidar um lugar no posto de comando das potências. A Índia não quer ficar para trás. A Europa está a perder e não quer perceber. Os Estados Unidos estão a deixar de ser hegemónicos, sendo embora ainda dominantes, mas não sabem como deixar de o ser e não toleram essa hipótese. África, América Latina e Ásia, que estão à venda a quem der mais, a quem envie ajuda militar e capitais, deixaram de ter fidelidades históricas ou amizades electivas. 

 

É uma verdadeira metamorfose aquilo de que se trata. Ao que dizem, para os animais que passam por essa via, é dos momentos mais dolorosos da vida. As nações e os continentes estão actualmente num processo desses, não se duvide. Quem não o percebeu será quem mais sofrerá. Os que menos percebem são evidentemente os que mais perdem na balança de poderes. Estados Unidos à cabeça. Europa a seguir. Estas duas potências, separadas ou em conjunto, deveriam repensar o seu lugar no mundo.

 

Na Europa, há várias reacções possíveis contra estes processos. Mas há sobretudo três erradas. A primeira consiste em negar e considerar que a Europa será sempre a grande Europa, mesmo que já não seja. A segunda é a aceitação e a rendição, deixando que a Europa se entregue aos grandes pesos pesados no mundo, a América, a Rússia, ou mesmo a China, quem sabe. A terceira é falar, denunciar e vituperar, sem nada fazer. Isto é, considerar que a crítica é suficiente para convencer povos, demover amigos e derrotar adversários.

 

A comparação entre o Parlamento Europeu, calmo, aparentemente estável, com a actual vida política nos Estados Unidos e em França, sem falar de Israel e da Ucrânia, deixa-nos uma suave e doce impressão. A tentativa permanente de encontrar uma base racional e de diálogo merece aplauso e dá-nos consolação. Mas não se apaga a sensação de que não se trata de racionalidade e serenidade, antes é sonambulismo e falta de poder.

 

Para tentar fazer o nosso lugar no mundo em que vivemos e sobretudo aquele em que vamos ter de viver, importa começar por perceber. Por que razões os nacionalistas, a extrema-direita e os radicais conservadores protestam, criticam e acabam por ganhar eleições e encontrar-se em via ascendente nas Américas, em França, na Itália, na Alemanha, na Hungria. Por que razões as migrações descontroladas provocam racismos de todos os lados, dos nacionais e dos estrangeiros. Por que razões a abstenção e o afastamento político da maior parte dos eleitorados persistem em crescer. Por que razões as novas teorias do género, das minorias, do legado histórico, da restituição e do arrependimento estão a destruir a Europa e a liberdade.

 

Quando os Europeus começarem a perceber, então talvez se possa fazer luz.

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Público, 20.7.2024

4 comentários:

Jose disse...

O texto é uma clara apresentação da confusão, suportada em adjectivação bastante, mas nada diz sobre um rumo de análise.
Quando tudo se apresenta como muito confuso só há um caminho de análise: partir de valores seguros e avaliar o que os obscurece, distorce ou torna irrelevantes; no todo, haveria matéria para um livro…

As mudanças em curso, se ‘profundas’, seguramente são expectáveis no sentido de ser possível determinar-lhes as causas. O que as torna difíceis de ‘ordenar, controlar, legalizar e administrar. Com o assentimento dos povos’ é a falta de acção política, fundada na indisciplina na análise e na manutenção do relevo das inúteis ‘novas teorias do género, das minorias, do legado histórico, da restituição e do arrependimento’. Acresça-se a não denúncia de uma novilíngua que mais não faz que perverter noções de valores respeitáveis como a tolerância e a democracia; e assim ‘estão a destruir a Europa e a liberdade’.
O maior factor de perturbação é a falta de decisão política e a timidez em organizar os meios de poder sustentá-la.

Carneiro disse...

Perceber por que razões?!

Sempre ouvi que não há maior cego que aquele que não quer ver. Não há maior surdo que aquele que não quer escutar!

Não me parecem complexos de superioridade. São simplesmente consequências de elites decadentes e podres que, do alto das suas torres de marfim, soberba e gananciosamente obliteraram os corpos intermédios de poder que garantiam coesão e união social.

Assim resumiu Xi Jimping:
“Hoje, os países ocidentais enfrentam cada vez mais problemas"
"Estes países não podem conter a natureza gananciosa do capital e não conseguem resolver doenças crónicas como o materialismo e a pobreza espiritual"

Jose disse...

A remuneração do capital que a poupança gerou é ganancia?
Buscar meios de subsistência é materialismo?
A pobreza espiritual define-se a partir de uma multidão de sentidos, que vão do conhecimento ao incognoscível.

A vaguidade das frases em política tem nas leis e regulamentos a sua expressão perceptível.

Carneiro disse...

Um remédio na dose errada ou sem regra será sempre um veneno!

Sem capital da poupança, e sua respectiva rentabilidade/remuneração, não há capacidade para investir e muito menos meios para assegurar subsistência na velhice ou na incapacidade (pensões de reforma/invalidez).

O que é subsistência?
Um armário com dezenas de sapatos ou centenas de vestuários?!
Uma parede decorada de quadros a centenas de milhares de euros?!
Cartões com centenas ou milhares de milhas numa qualquer companhia aérea?!
Poder frequentar clínicas ou centros de cirurgia estética?!
Proferir a decisão ou sentença necessária a troco de um saco com dezenas de milhares de euros?!

Conter é a palavra. Bem-comum e legado, o propósito.

Porque mais importante que leis e regulamentos é a efetiva aplicação delas e deles. Assim como a coerência e implacabilidade na sua execução.
É só comparar Evergrande vs BES/GES.