A mais famosa Comissão de Inquérito Parlamentar era, até agora, a que tratou do “Caso Camarate”, isto é, o incidente com o avião que transportava Sá Carneiro e Amaro da Costa e seus acompanhantes, todos vítimas mortais. O caso era em si suficiente para ficar na história. Mas há mais motivos para não esquecer. Comissões de Camarate houve dez! E mais de trinta anos! A primeira foi criada em 1982, dois anos depois da “ocorrência”. A última, a décima, foi criada em 2012 e terminou os seus trabalhos em 2015. Nem todas as anteriores chegaram ao fim dos mandatos, mas as que chegaram aprovaram diferentes conclusões, desde a certeza da avaria, até ao erro humano e às dúvidas não fundamentadas, para acabar em suspeitas de atentado e até, finalmente, a garantia de que se tratou de crime. A vida deste inquérito é um caso irrepetível de má conduta, ineficácia, envolvimento político em processos judiciais, legislação absurda e tropelias de toda a espécie. Houve para tudo. Menos para se fazer justiça. Foram comissões de inquérito para a chicana, para o incómodo entre facções partidárias. Havia quem não quisesse inquérito. Como havia quem garantisse que se tratava de acidente, não existia nada para inquirir. Procurava-se incomodar sucessores de Sá Carneiro e de Amaro da Costa. Tentava-se descobrir uma conspiração internacional, mesmo antes de tentar descobrir a verdade. A última comissão terá talvez feito o melhor trabalho de todas. É provável que o seu relatório final seja certo e conclusivo, nunca se saberá realmente, mas foi fora do tempo, sem consequências penais ou políticas.
Nestes mesmos trinta e cinco anos, várias comissões parlamentares de inquérito, CPI, foram aprovadas ou recusadas, algumas delas deram espectáculo e tempo de antena. Foram perto de 90 as CPI aprovadas. Onze tinham como tema de investigação os bancos: sistema bancário, TOTTA, BPN, BES, CGD, BCP e BANIF. Boa parte destas comissões não serviu para nada. Ou não acabaram os seus trabalhos, ou não chegaram a conclusões. Por defeito próprio ou porque as legislaturas acabaram. Ou as conclusões eram ditadas pela maioria política, o que retira valor ao trabalho. Mas também houve casos em que as CPI deram origem a procedimentos de relevo. O que se passou, por exemplo, com o BES ou com a colecção Berardo, o BCP e a CGD, terá talvez começado ali, nas salas de inquérito da Assembleia. Parece que, em conclusão, houve algumas comissões que serviram para alguma coisa.
Nos últimos anos, a actividade de inquérito tem vindo a crescer ou a prometer. Para a presente legislatura, já há várias propostas feitas, sendo que só uma, a das “Gémeas”, iniciou os seus trabalhos. Antes disso, em legislatura anterior, o computador do assessor de Galamba, a demissão da presidente da TAP, o vencimento de secretária de Estado e a indemnização da administradora da mesma TAP já tinham brilhado como autênticas vedetas.
A partir de agora, a CPI mais famosa pode bem ser a do “Caso das Gémeas”, tal como ficou designado pela voz corrente. O que se tem visto nas televisões arrepia! Tudo se pode ver ali. Guerrilha política. Telenovela de mau gosto. Insídia. Cinismo a jorros. Falta de educação e de cortesia. Sem hesitar, com respaldo em normas jurídicas obtusas, há deputados que exigem ver a correspondência privada, seja do Presidente da República, seja a dos vários protagonistas, mãe, médico e amigos das “Gémeas” ou até de pessoas apenas evocadas. Disse bem: correspondência privada! Como entendem exigir a apresentação de documentos privados de empresas estrangeiras. Como deputados, são maus inquiridores. Como inquiridores, são maus deputados. Como deputados inquiridores, têm dificuldade em perceber que há direitos dos cidadãos que constituem limites à sua acção.
Este inquérito ao “caso das Gémeas” é o mais recente exemplo de aviltamento de uma nobre faculdade, a de representar e apurar a verdade. Desde o início que se percebeu que a ideia era uma espécie de institucionalização da velhacaria, do disfarce e da dissimulação. Os autores da proposta, os seus principais actores e os protagonistas, de quase todos os partidos, lutam contra o Presidente da República, contra os governos, contra outros partidos, pelas suas reputações pessoais e partidárias… Quem acompanhe, pela televisão, estes debates, ou antes, estes interrogatórios, perceberá que o que está em causa é a política mais rasteira que se imagina. Com o acréscimo de se tratar de encenação perfeita. Em nome da verdade, a favor da igualdade de direitos e por conta da luta contra as cunhas, cria-se um espectáculo de justiça exemplar. Absolutamente enganador. O caso, pela mãe e pelas crianças, é comovedor. Pela cunha e pela mentira, é repelente. Pelo oportunismo e pelo cinismo, é desprezível. Mas é provável que já se saiba tudo o que há para saber. Que os juízos morais já estejam feitos. E que nada mais haja a fazer. É difícil levar a tribunal o Portugal das cunhas, a mentira dos notáveis e a arrogância dos deputados.
Estas comissões de inquérito sofrem de falta de eficácia e de boa organização do trabalho. Há sessões que podem durar cinco, dez ou mais horas. Há depoimentos que duram mais do que interrogatórios de uma polícia política. As instalações ao serviço dos deputados, dos inquiridos e das testemunhas, assim como dos jornalistas e assistentes, são horrendas, toscas, não dignas de trabalho parlamentar sério, sem cortesia nem facilidades de trabalho. Os deputados não se dão ao respeito. As testemunhas são maltratadas. Os visitantes são desprezados. Os inquiridos sentam-se nas esquinas das mesas, são tão respeitados como criminosos em tribunais.
Muitos deputados julgam que têm ali tribuna para a história. Fazem perguntas longas como relatórios. Maltratam as pessoas. Desconfiam dos inquiridos ou insultam as testemunhas. Debatem e exprimem as suas opiniões como se estivessem em sessão plenária, não em comissão de inquérito. Julgam que são da polícia judiciária. Pensam que são procuradores. Acreditam que são detectives. Comportam-se como juízes. Acham-se dotados de poderes acima dos mortais. Com algumas excepções de deputados que quase fizeram a sua reputação ali, pelo rigor e pela qualidade do seu trabalho, a maior parte dos inquiridores está preocupada com os seus camaradas, os seus eleitores, os jornalistas e os seus fans.
Solução? Ter paciência e esperar pelas próximas gerações.
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Público, 27.7.2024
2 comentários:
O mais assinalável é ficar indefinido se o objecto é denunciar a cunha ou associar-lhe limites em valor de despesa pública.
A meu ver, tudo porque a política tornou-se num meio para tudo menos as busca de um Bem-comum, de um ideal de Sociedade justa e próspera.
Um caso ridículo onde discute tudo menos o essencial. A desfuncionalidade ou inoperância do sistema de saúde. E ninguém questiona porque não funciona ou funciona com tanta espera? Porque é necessário ou só funciona com o jeitinho ou a cunha?
Quantas gerações levamos depois de 74? Quantas mais teremos de esperar?
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