Ser governado por Lisboa, pelo distrito, pela região, pelo município ou pela freguesia? O que é melhor? Os portugueses nunca decidiram, de modo claro, ou pelo menos durável, o que preferem. A Constituição consagrou o Estado central, as Regiões e as Câmaras, eliminou os distritos e fez uma vaga vénia às freguesias. O problema é que a Constituição nunca foi referendada. E que nunca se fez a regionalização, nem sequer se aprovou o mapa das regiões: os dispositivos escolhidos foram de tal modo urdidos que se destinavam bem mais a impedir do que a avançar. Parece ser a única parte da Constituição que nunca foi cumprida. Quando, uma vez, em 1998, se fez um referendo sobre o assunto, a resposta popular foi “Não”! De qualquer modo, o veredicto não era vinculativo, pois mais de metade ficou em casa. Neste panorama, exceptuam-se as duas Regiões Autónomas, Açores e Madeira, outrora designadas por “ilhas adjacentes”, “arquipélagos insulares” e outros epítetos de desprezo. Estas denominações estiveram em vigor, quase sempre, desde a Constituição de 1822.
Na ausência de regiões, a Administração Pública do país fica entregue ao Estado central e às autarquias locais, câmaras e freguesias. Durante o Estado Novo salazarista, estas tinham uma existência menor, a começar pelo facto de os presidentes de câmara e as vereações não serem eleitas pela população. Nomeados pelo governo, dependiam ainda do Governador Civil, igualmente nomeado.
A democracia prometia alterar isto. E algo fez, nomeadamente as eleições para os órgãos autárquicos (câmaras e freguesias) e a eliminação do Governador Civil. Foi de tal modo inovador, pelo menos aparentemente, que se criou o hábito de tratar do poder local como “a mais importante realização do 25 de Abril”! Verdade é que a transferência de poderes e funções do Estado central para as autarquias ficou-se pelo caminho. As regiões só foram criadas no papel, onde ainda jazem. As Câmaras têm hoje mais funções, mais pessoal e mais orçamento do que em qualquer outra altura. Mas a real transformação das Câmaras em órgãos poderosos, próximos, eficientes e modernos ficou, na maior parte dos casos, muito aquém das esperanças e das possibilidades. Quando, numa Câmara, um Presidente e uma Vereação têm talento, força, independência pessoal, imaginação e apoio dos cidadãos, a sua grandeza é real e os resultados vêem-se. Com estas excepções, o poder local definha. Queixa-se do poder central. Acusa a oposição. Vai-se entretendo.
Na realidade, toda a gente sabe isto. Se formos ler os programas eleitorais dos partidos e de todas as autarquias, o rol de queixas do poder local e contra o poder central é infinito. E não há excepção: quem está acusa a oposição; e a oposição queixa-se de quem está. As preferências e simpatias também são comuns a todos: se é com o seu partido, todos preferem o Estado central e o governo. Se é com o partido da oposição, são adeptos firmes da descentralização. Ou mesmo da regionalização, se esta trouxer vantagens ao seu partido e à sua família.
A campanha eleitoral deste ano foi bom momento para verificar uma velha realidade. Os portugueses são, em abstracto e na conversa, defensores do poder local e da descentralização. Até da regionalização. Mas, quase sem excepções, na prática, na acção pública, nas instituições e na vida real, são centralizadores e preferem o governo central. Em geral, têm certezas conhecidas: o poder local não tem meios e tem pouca sabedoria, os autarcas não têm formação técnica, nas autarquias há mais corrupção e ali abundam as cunhas partidárias e os fretes familiares. Para muitos, “os problemas” (segurança social, educação, saúde, ordem pública, estradas, incêndios, habitação, pobreza, criminalidade…) têm uma escala muito superior ao poder local, têm de ser analisados e resolvidos pelo governo central. Sem excepção, os partidos têm crenças seguras e opostas: adeptos do poder local, aspiram ao poder central.
Há muito que se impõe um exame global e rigoroso dos poderes autárquicos, das suas dimensões, das suas funções e do seu mapa. Ainda se tentou qualquer coisa há poucos anos, fizeram-se umas tantas fusões de freguesias (muitas das quais depois voltaram para trás), mas não se chegou a tocar nos reais problemas, nas funções, nas competências, nos meios e nas responsabilidades. Assim é que temos um poder local fraco, pobre, sem meios, sem poder nem competências.
Uma comparação entre países europeus não é um grande contributo para esclarecimento. Há países com dezenas de milhares de municípios, há países com apenas umas dúzias deles. A questão parece estar mais do lado dos poderes dessas unidades administrativas eleitas. E das funções de cada uma. Assim como da despesa pública de que cada uma é responsável. Em Portugal, o poder local tem uma parte ínfima do investimento público, uma percentagem muito reduzida da despesa pública, uma dimensão diminuta do pessoal da Administração Pública. Além de ter poderes limitados e mãos atadas em vários domínios essenciais: educação, saúde, segurança social, policiamento e segurança, licenciamento comercial, habitação e incêndios.
No contexto europeu, a informação sobre Portugal é previsível: é um dos países em que a administração local é responsável pela menor parte da despesa pública e do investimento. A parte local terá aumentado durante as últimas décadas, mas estamos longe, muito longe, do que se faz nos restantes países europeus. No entanto, o critério não é esse, o da paridade com a Europa. O critério é o da competência para fazer o que tem de ser feito. A eficácia. A sabedoria. A proximidade. O controlo social. A capacidade para corrigir. Nestes critérios, Portugal fica cá atrás.
Poderá haver exemplos de temas ou sectores em que não se duvida da necessidade do poder central? Certamente. As Forças Armadas, por definição. O espaço aéreo. O caminho de ferro. O orçamento nacional. Os impostos nacionais (que não as taxas locais, os impostos municipais e tantos outros). As leis de enquadramento nacional e de bases gerais. Os direitos fundamentais.
Os portugueses hesitam, há cinquenta anos, entre o município, a região e o Estado central. A retórica é favorável à região, mas as forças reais, do eleitorado aos partidos, das empresas aos sindicatos, são favoráveis à centralidade, ao poder central. É pena. A democracia seria melhor.
Público, 11.10.2025
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