Daqui a uma década, mais ou menos, vamos todos recordar estes tempos presentes. As que parecem peripécias e intrigas não o são apenas ou não o são de todo. O que se pensa hoje que são males que se corrigem ou bens que duram revelar-se-á rapidamente uma espécie de fundação do país futuro. As novas sociedades, economia, política e cultura, organizam-se hoje, quase imperceptivelmente, de modo que, por vezes não nos damos conta do quadro geral, do que aí vem. Sobretudo se não soubermos, agora, prestar atenção ao futuro, preparar o melhor e evitar o pior.
O que se vai passar em Portugal não depende só de nós. Cada vez menos. O mundo, de Washington a Pequim, de Israel à Ucrânia ou do Irão à Rússia, terá influência decisiva. Não era assim, ou antes, não era tanto assim antigamente, há décadas ou séculos. As influências externas eram menores ou menos visíveis. Agora, é bem diferente. Da demografia ao trabalho ou das finanças às artes, “isto anda tudo ligado”. Em todo o caso, muito mais ligado do que antes.
Mas a verdade é que nos compete, a nós, povos soberanos e Estados independentes, decidir como reagimos e nos integramos. Depende de nós e das nossas escolhas, definir ou escolher o modo como queremos fazer parte do mundo novo em construção. A nossa presença, mais activa ou mais passiva, resulta das nossas vontades e das nossas preferências. Podemos não ter influência no mundo, é verdade, mas devemos proteger-nos do que nos diminui e aproveitar o que nos interessa.
A política portuguesa está em mau estado. Instável. Incerta. Distante. E em curso de mutação tão profunda que, dentro de muito pouco tempo, nada ficará como agora. Tanto por motivos políticos, como sociais. O envelhecimento rápido, a grande emigração de portugueses e a enorme imigração de estrangeiros estão a criar uma população inesperada. Mais de metade do país continua entregue ao abandono e aos incêndios.
A força de trabalho perde robustez, organização e influência. A independência do capital é diminuta. O Estado não tem sabido traçar o seu caminho na economia: asfixia os privados e cria obstáculos ao estrangeiro, mas, em última análise, não ajuda, não apoia, nem incentiva. A fragilidade e a vulnerabilidade do Estado português perante os interesses internacionais é por demasiado evidente.
Depois de se terem assegurado dois feitos essenciais, a criação de instituições democráticas e a integração europeia, o Estado português não tem sabido consolidar as suas funções sociais: em crise de eficiência, a saúde e a educação são bons exemplos. A pobreza dos serviços públicos, sobretudo de funcionamento, de eficácia e de atendimento, é proverbial.
Numa das mais nobres funções soberanas, a Justiça, o Estado, o poder legislativo e os próprios corpos da magistratura não têm sabido, talvez nem sequer desejado, organizar o seu sistema, tornando-o justo, eficiente e moderno. Mais do que os transportes e a saúde, mais do que a educação e a segurança social, é talvez a Justiça o principal exemplo de incapacidade democrática. Ora, quando a Justiça não está bem, é a democracia que bem não está.
Depois de algumas décadas de estabilidade aparente, pelo menos formal, o sistema político dá sinais de fragmentação, ou mesmo quase de desintegração. A extrema-direita aproveita e explora este clima. A direita democrática parece reduzida a uma herança. A esquerda democrática atravessa a sua mais grave crise desde os anos setenta, sendo discutível que possa acordar ou seja refundada. A extrema esquerda perdeu tudo, base, apoio, sonho, energia e programa. O centro político está destruído, vazio, sem meios nem vontade. O ideal da moderação em tempos difíceis e a esperança da aliança de equilíbrio em momentos de crise praticamente desapareceram do horizonte. Parece anunciar-se a pior polarização de todas: a das forças irracionais e sectárias.
As duas últimas eleições legislativas foram o sinal de partida do processo de desequilíbrio e de fragmentação. Se alguma coisa este anunciou, foi o crescente desinteresse da população pela política democrática e os partidos. Na verdade, este é encorajado pela política formal e nominal, adjectiva e processual, que caracteriza os actuais principais agentes políticos. Os líderes partidários vangloriam-se e oferecem-se à população, prometendo liderança e energia, tudo atributos e obras que não se anunciam: ou se é, ou não se é, não se proclama. Raros são os políticos que discutem com o público e as instituições os temas e os conteúdos da sua acção. Mas quase todos discutem processos e intrigas.
Há cada vez mais sinais de fortalecimento e desenvolvimento de pulsões antidemocráticas tanto na sociedade como no universo da política e dos partidos. Ora, não se vê que as únicas armas eventualmente eficientes para contrariar esses esforços, isto é, os dois grandes partidos democráticos, PSD e PS, estejam interessados em combinar, juntar, articular ou simplesmente convergir atenção e trabalho no sentido de lutar e contrariar as tendências antidemocráticas. Por outro lado, os movimentos de diálogo ou de aproximação entre o PSD e o CHEGA não só antecipam o pior que pode acontecer à democracia, a sua queda “por dentro”, como não parecem ser combatidos pelo PS, nem sequer pela totalidade da esquerda.
As eleições presidenciais, tal como noutros tempos passados, poderiam transformar-se num momento de verdade, num lugar geométrico das tarefas e dos esforços democráticos. É sabido que um presidente não pode, por si só, influenciar todo o sistema político e todas as instituições públicas. É até conhecido que, a sua importância seja diminuída pelos simples resultados das eleições parlamentares. Quer isto dizer que o seu mandato tem pouco de salvador. Mas a sua eleição é um momento alto da política nacional. A escolha feita, dentro de três ou quaro meses, será um esclarecimento essencial e um momento de definição. Seria bom que as forças democráticas, políticas e civis, traduzissem em acção e escolhas esta realidade. Seria importante que os agentes políticos e os candidatos percebessem que a eleição presidencial é mais do que uma formalidade. E muito mais do que um passo de calendário.
.
Público, 27.9.2024
Sem comentários:
Enviar um comentário