sábado, 13 de setembro de 2025

Grande Angular - Desleixo. E indiferença.

 O acidente do Ascensor da Glória deu origem a momentos difíceis de suportar. Sobretudo para os que foram atingidos pela dor. Mas olhar para o que se seguiu, o que se viu e ouviu, o que ainda se passa, é motivo de desânimo. Talvez seja assim noutros países, o que é indiferente. O que se passa em nossa casa é suficiente.

 

            A utilização imediata do acidente, como argumento político, foi evidente e de penosa observação. Não faltou quem, com ou sem conhecimento dos factos e das circunstâncias, exigisse uma imediata demissão, naquele que é o gesto mais banal da política portuguesa. Logo seguido dos que, teatralmente, garantiram que tinham cumprido todos os seus deveres. Depois, vieram os que acusaram os outros de fazer política, de aproveitamento, como dizem. Sem esquecer, claro, os que fizeram política, garantindo que não faziam. Toda a gente prometeu ou exigiu inquéritos e estudos, até às últimas consequências, “doa a quem doer”, em que tudo será dito e revelado. Como em tantos outros inquéritos e estudos que ainda hoje estão por concluir e publicar.

 

            A responsabilidade pelo que aconteceu, ou a “culpa”, como se tem repetido, será talvez apurada, um dia. Será pessoal ou institucional, política ou técnica, da corrupção ou da ignorância. As conclusões poderão ser conhecidas a tempo de indemnizar as vítimas ou de castigar os responsáveis. A avaliar pela tradição e pela história, não é certo que assim seja. Mas, se for, ao menos temos isso. Porque pode faltar o que é igualmente importante: que haja consequências, que se faça o que é preciso para que não se volte a repetir. Para que os portugueses em geral, os políticos, os funcionários, os engenheiros, os autarcas e tantos mais retirem lições e aprendam com os desastres. E tenham em conta com o mais importante de tudo: os direitos e a segurança dos cidadãos.

 

            O que está em causa são algumas das características nefandas da nossa sociedade e do Estado. O desleixo ou o desmazelo estão presentes por todo o lado. A negligência, a incúria e o desinteresse, também. Pode haver regulamentos extraordinários, protocolos modernos, regras exigentes, mas a sua aplicação deixa sempre a desejar. Qualquer projecto, decreto-lei, programa ou portaria é meticulosamente elaborado, com todos os pormenores jurídicos e administrativos, técnicos e económicos, assim como regras e competências. Mas o que falha é o essencial: a sua aplicação à sociedade, a homens e mulheres, a pessoas.

 

            Os capítulos malfadados da negligência e do desleixe são conhecidos. A manutenção de sistemas e aparelhos. A fiscalização da obra e do funcionamento. A inspecção. O cumprimento de prazos e o respeito pelo calendário. A pontualidade. A minúcia. A paciência. A consulta à opinião dos utentes. A resposta às críticas. A avaliação das vulnerabilidades. O permanente acompanhamento dos sistemas e dispositivos. É sempre aqui que falham os melhores projectos, que fracassam os planos mais sofisticados.

 

            As palavras-chave são: descuido, desmazelo, desleixe, negligência, desinteresse e indiferença. Uma das razões pelas quais é sempre muito difícil encontrar responsáveis por acidentes reside aqui: o rigoroso acompanhamento não é feito. Ou mal feito. Ou tardiamente feito.

 

            Toda esta triste realidade é especialmente visível quando se trata de serviços públicos. Como todos sabemos e sentimos. Os atrasos nos comboios e nos autocarros. O indigente desconforto nos transportes públicos, das paragens às carruagens. As filas de espera nos centros de saúde e nos hospitais para consultas, exames e cirurgias. As esperas nas lojas do Cidadão, nos organismos para a imigração, nos serviços de identidade e de segurança social. Há filas de espera nos corredores, nas garagens, nas ruas, nos passeios e nos jardins, ao sol ou à chuva, mas sempre na humilhação. Há esperas para todas as inscrições imagináveis, nas escolas, nas creches e nas universidades. Há filas nos tribunais e nas repartições. Nas Câmaras e nas Freguesias. Até no Aeroporto!

 

Há mesmo um grupo de companhias, empresas e serviços, especializadas em atrasos, filas de espera, encarecimento e mau trato infligido aos clientes e utentes: são as companhias de telefone, telemóvel, água, electricidade e gás. Este é o reino do absurdo, do despotismo e da indiferença burocrática. Os contratos são quase sempre verdadeiras armadilhas em que todas as regras de preços, aumentos, renovação e duração são feitas contra os cidadãos. São estas companhias as mais assíduas e crentes nos sistemas de “fidelização”, um roubo legalizado ou uma emboscada contratual na qual as vítimas são evidentemente os utentes e assinantes.

 

São estas últimas companhias as rainhas do “call center”, sistema de atendimento, mas que na verdade é sobretudo um mecanismo de afastamento dos clientes e assinantes. Gravações entediantes e incompreensíveis, longuíssimos minutos de espera, música absurda, diálogo através de teclas, espera e mais espera. Estes são os sistemas, com total cobertura legal, sem fiscalização nem avaliação, através dos quais as companhias (geralmente privadas, mas podem incluir públicas) exploram os seus clientes ou subscritores e fazem-nos sentir culpados e obsoletos.

 

            Que tem tudo isto a ver com os acidentes do ascensor ou dos incêndios? A mesma atitude, os mesmos princípios: negligência e desmazelo. Indiferença pelo serviço público. E sobretudo esta ideia de que o público, os cidadãos, os trabalhadores ou os utentes das classes médias e baixas têm de aguentar. O que deveria ser primordial, receber bem e cuidar melhor, é apenas secundário e dispensável.

 

            O Ascensor da Glória é mais um numa longa e sinistra lista. Que inclui uma série fatal de incêndios florestais de 2003, 2005, 2013, 2016 (na Madeira) 2017 e 2025 especialmente os de Pedrógão, Arganil, Castanheira de Pêra e Seia, os desastres ferroviários de Alcafache e de Custóias, a aluvião da Madeira, a queda da ponte do Douro em Castelo de Paiva ou Entre-os-Rios, os vários acidentes aéreos da Madeira, dos Açores, de Lisboa, do Porto e do Algarve. Nuns casos, sobressai a falta de previsão e a negligência. Noutros, a incompetência. Noutros ainda, a falta de acompanhamento e de assistência às consequências. Em todos, a indiferença perante os serviços públicos e os cidadãos.

 

            Empresas e Administração Pública têm a certeza de que não há ninguém, ou quase ninguém, que as vigie, que as critique, que as obrigue a adaptar-se ao bem-estar dos cidadãos, à sua segurança e ao seu conforto. Numa palavra, aos seus direitos.

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Público, 13.9.2024

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