É um dos grandes mitos da política portuguesa: o “bloco central”, as alianças do centro político ou as coligações de forças democráticas moderadas provocam o crescimento da extrema direita (e da extrema esquerda, eventualmente) e são perigosas para a democracia. Para argumentar, fazem-se afirmações atrevidas. Não podemos deixar o capital de protesto para os radicais, dizem. É perigoso entregar a oposição aos extremos de direita e de esquerda, afirmam. A solução democrática consiste em partir ao meio o eleitorado, esquerda e direita, ora governando uma, ora outra, garantem. Há anos ou décadas que esta espécie de sabedoria condiciona a política portuguesa. Com um objectivo principal: o de impedir o chamado “bloco central”, a coligação entre o PS e o PSD.
Está a ver-se a beleza desta afirmação, este exemplo de fina inteligência! A recusa da coligação entre o PS e o PSD, o afastamento obsessivo e permanente do Bloco Central e a condenação deste último provocaram… o crescimento da direita de Chega e Ventura. A insistência em governos de minoria e em “arranjos pontuais” provocou, mais uma vez, eleições antecipadas, dissoluções inconvenientes e políticas de instabilidade. Tudo para acabar… no crescimento da direita de Chega e Ventura.
Esta nova direita, que tudo leva a crer seja extrema, nasce, não do Bloco central, mas da sua negação pelos democratas. Esta direita é evidentemente perigosa, sem ser necessariamente fatal para a democracia. Cada dia que passa é mais radical, como se tem visto nos últimos tempos. Era bom que a democracia a combatesse e a derrotasse. Mas também seria bom que os democratas percebessem melhor a realidade da extrema-direita e soubessem como lutar contra ela.
Os democratas têm uma especial inclinação para a retórica. Boa ou má. Eles gostam de combater com declamações, insultos e gritaria. Ou condenações morais. E muita indignação. Ora, não é com palavreado que se combate a extrema-direita. Até porque, nesse estilo, no palavreado, a extrema-direita é melhor do que a direita e a esquerda democráticas. Foi o que vimos nos últimos anos. PS e PSD frenéticos a condenar, com palavras e lugares comuns, a direita radical de Chega e Ventura: fascistas e neofascistas, nazis e neonazis e neoliberais eram os mais frequentes. O resultado está à vista: a direita de Chega e Ventura não parou de crescer. E ameaça assim continuar.
Os democratas insistem em vituperar e vociferar. Ora, a extrema-direita combate-se com obra feita, lisura de processos, honestidade de acções, clareza de intenções, bom governo e administração pública eficaz. Que é o que direita e esquerda democráticas não souberam fazer. O que combate a extrema-direita (e extrema-esquerda) é um Estado eficiente, o firme combate à corrupção e uma Justiça pronta. Que é o que, em 22 anos de PS e 9 de PSD, nas últimas três décadas, os democratas não souberam fazer e criar.
O que ajuda a extrema-direita a crescer e desenvolver-se são as filas de espera em todos os serviços públicos, a desigualdade crescente, o emprego ilegal e a falta de habitação. Que são situações críticas que os democratas do PS e do PSD não conseguiram evitar. E são ainda as greves selvagens (justas ou injustas), a ganância, as vendas de empresas públicas em circunstâncias estranhas, as compras de aviões e helicópteros, o apoio à economia paralela e o fecho de emergências médicas aos fins de semana: são estas mais algumas das causas do crescimento da extrema-direita.
São as acções de combate a estes fenómenos que constituem as armas contra a extrema direita, são esses os meios de luta eficaz, não o palavreado gratuito e exasperado, nem as acusações de fascista, neonazi e neoliberal. Não são estas atitudes que terão qualquer resultado, antes pelo contrário, revelam receio e impotência. Exibem uma democracia vulnerável. É muito pouco provável que a extrema direita, a de Chega e Ventura em particular, tenha sabedoria e meios para resolver quanto está errado. Mas os erros presentes são capazes de ajudar o Chega a aumentar os votos.
A irrupção de Chega e Ventura na política portuguesa (com paralelos noutros países europeus), assim como o seu rápido e talentoso crescimento, levantam problemas interessantes. A aprofundar nos próximos tempos. Como se dizia antigamente, a interrogação fundamental, nestes casos, era “Qual é a sua base social de apoio”? Qualquer partido, novo ou velho, dizia-se, tinha origens de classe, berço institucional ou marca social de nascença.
Qual a origem social da Extrema-direita? Qual a sua base social de apoio? Eram perguntas que se faziam há décadas, com respostas tão engraçadas quanto inúteis e interessantes. O exercício valia a pena. Há mesmo vários livros sobre este tema, com relevo para “As origens sociais da ditadura e da democracia” de Barrington More. Era útil saber mais sobre a base social de apoio da democracia e do fascismo. Assim como da República, da social-democracia, do Salazarismo ou do comunismo.
Hoje, estas análises não se fazem. Tudo anda à volta do processo, da imagem, do impacto e de entidades semelhantes. Mas é forte a ideia de que um movimento ou um partido, para ter êxito e presença, necessita de ter uma origem de classe ou uma base de várias classes e interesses. Esses tempos já passaram, hoje é certo e seguro que os partidos, os movimentos e os regimes têm bases sociais variadas, entrecruzadas e misturadas com interesses nacionais, regionais, religiosos e outros. Assim como económicos e empresariais.
Qual é a base social de apoio do Chega? O grande Capital? Não consta que haja grande capital em Portugal. A Igreja? Não parece. As Forças Armadas? Não se sabe que haja actividade. A pequena burguesia? Talvez, está sempre em todas. As elites académicas? Por enquanto não. As multinacionais? A classe média arruinada? Os pensionistas? O pequeno comércio? A grande lavoura? A pequena agricultura? A província? O Norte? O Alentejo? As cinturas industriais? As áreas metropolitanas? De tudo isto um pouco. É a resposta mais verosímil.
Não parece haver uma base social de apoio bem marcada. Tudo leva a crer que estejamos diante de uma reacção de protesto e insatisfação, de repúdio e receio, diante dos feitos e malfeitos da democracia nos últimos anos, os erros dos dirigentes democratas, o abaixamento de qualidade do pessoal político e a perda de sentido de reconhecimento dos dirigentes democráticos do sistema. Há uma insatisfação que a muitos toca e um protesto que de muitos vem. É aí que o Chega se alimenta. É aí que é preciso agir.
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Público, 20.9.2024
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