sábado, 18 de outubro de 2025

Grande Angular - Guerra e Paz

Quando nasci, começavam os russos (naquela altura chamavam-se soviéticos) a contra-ofensiva que os levaria de Estalinegrado a Berlim. Pouco depois, os Aliados desembarcavam na Normandia e iniciavam a sua caminhada até Paris e a seguir Berlim, onde encontrariam os russos. Tudo em guerra que matou mais de 55 milhões de civis e militares. Não faltava muito, nesse ano, para que os americanos, com a ajuda de duas bombas atómicas, vencessem os japoneses na guerra do Pacífico que liquidou mais de 30 milhões de pessoas. Não recordo esses tempos, porque ainda não tinha cabeça para pensar, nem olhos para ver. Mas já vivia. Poucos anos mais tarde, da guerra da Coreia, país que ainda não sabia muito bem onde ficava, chegavam ecos que me falavam de batalhas, de mortos e de feridos. Era a primeira vez que ouvia falar de guerra. Desde então, não se passou um dia sem que não se falasse de guerra algures no mundo.

 

Ainda na juventude, as invasões da Hungria e da Checoslováquia, pelos Russos, não terão feito muitos mortos, mas destruíram a liberdade, o que não é pouco. Antes disso, na Ásia, tinha começado a época das independências (Índia, Paquistão, Indonésia, Birmânia, Sri Lanka e outros) e das guerras coloniais e similares. A da Argélia, por exemplo, durante oito anos. E no império português, em Angola, na Guiné e em Moçambique, durante quase quinze anos. As guerras do Vietname, primeiro contra a França, depois contra os Estados Unidos, a seguir contra o Camboja e finalmente contra a China, marcaram gerações, bem ou mal, tiveram enorme influência no mundo, designadamente nos Estados Unidos e na Europa. O activismo e a solidariedade não nasceram então, mas desenvolveram-se com rapidez.

 

No Próximo Oriente, não houve um dia sem guerra ou terrorismo. Da guerra da Palestina à criação do Estado de Israel, do Suez aos Seis Dias e do Yom Kipur a Gaza, para apenas mencionar os conflitos mais conhecidos. Incluindo o Líbano, a Síria, a Jordânia e outros, o estado natural daquela parte do mundo é o de guerra. Ali ao lado, a guerra entre o Irão e o Iraque (quase dois milhões de mortos), a guerra do Golfo e as do Kuwait, da Síria e do Líbano, acrescentam anos de conflito e muitos milhares de mortos.

 

De África, ultrapassados os conflitos coloniais e as lutas pelas independências, iniciaram-se as guerras civis ou entre nações africanas. Com muitos milhões de vítimas e de deslocados, foram várias as guerras dos Congos (quatro a cinco milhões de mortos), ou ainda no Uganda, no Ruanda (mais de um milhão de vítimas), na Somália, no Sudão, na Nigéria e Biafra (mais de 2 milhões de mortos), na República Centro Africana, no Chade, na Etiópia, na Eritreia e no Quénia.

 

Na Ásia, a partir dos anos 1950, raramente os canhões se calaram. Entre a Índia e o Paquistão, no Bangladesh, na Indonésia, no Camboja, no Laos, na Birmânia e nas Filipinas. Ou no Afeganistão, onde foram derrotados sucessivamente os ingleses, os russos e os americanos. No outro lado do mundo, na Colômbia, foram trinta anos de guerrilha e trezentos mil mortos.

 

Meia dúzia de décadas depois da segunda guerra mundial: foram dezenas de milhões de mortos e centenas de milhões de deslocados e refugiados. Neste período, a Europa viveu um longo e inédito período de paz. A primeira excepção foi a Bósnia. E agora foi a Ucrânia e respectiva invasão russa. Mas até esta última parece já passar para os finais dos boletins informativos, na secção que se chama “outras notícias”. Habituámo-nos à guerra, à morte, aos feridos e à dor dos outros (Susan Sontag). A guerra já não incomoda, os mortos excitam pouco e a paz deixou de interessar. Parece que as guerras já não preocupam ninguém, a não ser que sirvam para denunciar alguém, para visar um inimigo, para denunciar um governo ou um país. A solidariedade, tão exibida e demonstrada, já só tem sentido quando se visa alguém ou algum governo que se considera inimigo.

 

A matança de Gaza foi um excelente pretexto para vociferar solidariedade. Os marinheiros da “flotilha” navegaram e protestaram enquanto havia americanos e judeus contra quem lutar. E palestinianos mortos e esfomeados a favor de quem se exprimir, ou antes, que serviam de boa justificação. Quando surgiu uma hipótese de paz, quando se assinou um frágil e incerto cessar fogo e quando começaram a chegar a Gaza os camiões com ajuda alimentar e medicamentos, os protestos calaram-se e os marinheiros desapareceram. 

 

O Presidente Trump é detestável, um verdadeiro narcisista paranóico, um vaidoso amante de dinheiro e poder, é tudo isso, mas, nem que seja pelas más razões, conseguiu qualquer coisa parecida com a paz ou o cessar fogo. Merece louvor. Sem que este seja suficiente para apagar todos os seus enormes defeitos, todas as causas absurdas que ele defende. Nem o poder absoluto que ele procura construir. Mas merece elogio! E a assinatura de cessar fogo, no Egipto, com a pompa de dezenas de dignitários, merece aplauso. Não vi desfiles nem cortejos de amigos dos Palestinianos a manifestarem o seu regozijo por esta hipótese de paz. Não reparei num só marinheiro da “flotilha” saudar a paz ou o cessar fogo. É possível que este cessar fogo seja várias vezes desmentido e traído por Israel ou pelo Hamas. É provável que as tréguas ainda sirvam para preparar novos ataques e para ganhar vantagens sobre os adversários. E não se ignora que, em qualquer altura, incidentes vários podem pôr tudo em risco ou em causa. Verdade. Mas uma hora de cessar-fogo vale vidas e dá uma oportunidade à paz.

 

A selvajaria criminosa do Hamas, bem visível desde o 7 de Outubro, e o cruel massacre criminoso da população de Gaza pelas forças armadas de Israel e por Netanyahu não se apagam, nem com um futuro acordo de paz. Mas qualquer passo dado no caminho da paz e do fim da guerra, qualquer movimento tendente a ajudar doentes, a tratar dos feridos e a alimentar esfomeados, merecem aplauso e encorajamento. Mas não se vê ninguém. Na verdade, não se saúda a paz, mas manifesta-se o anti-semitismo, louva-se o antiamericano e festeja-se o anti Israel. Tal como se proclama o anti-islamismo. Condena-se quem faz a guerra. Não se festeja quem faz a paz.

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Público, 18.10.2024

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