sábado, 15 de novembro de 2025

Grande Angular - Quanto vale ser Português?

 Os Socialistas decidiram solicitar ao Tribunal Constitucional o exame da lei sobre a nacionalidade aprovada pelo governo e pelo parlamento. Ainda bem que o fizeram. A questão não é só política (social e cultural), é também constitucional. Na verdade, prever a perda da nacionalidade a portugueses naturalizados e culpados de crimes implica admitir que haverá duas qualidades de cidadãos: uns que se podem expulsar e desnaturalizar; e outros para quem os castigos da justiça bastam. Eis uma disposição moralmente inaceitável. Mas é também de uma inconstitucionalidade flagrante. Entre os governantes e os deputados que aprovaram tal lei, há pessoas com pergaminhos intelectuais e jurídicos, há gente sensata e profissionais competentes. Não se percebe como a miopia ou a falta de segurança, para já não dizer a arrogância, conseguem sobrepor-se àquelas qualidades a fim de aprovar esta ignominia.

 

O governo e o parlamento são livres de aprovar as leis em que acreditam. Mais ou menos sociedade civil, mais ou menos igualdade, mais ou menos Estado: cada um entende à sua maneira. Mais ou menos segurança, mais ou menos riqueza, mais ou menos solidariedade: governantes e deputados têm o direito de aprovar o que defendem. Muito da democracia e do Estado de direito é composto de convenções e de acordos passageiros. A questão dos prazos de residência dos candidatos é relevante, mas apenas traduz opções administrativas, eventualmente culturais, sobre as quais poderá haver pluralidade de opiniões. Desolador é ver que os governantes e os deputados que aprovaram esta lei o fizeram porque acreditam ou porque lhes dá jeito. Na ocorrência, os dois motivos são válidos. Em qualquer dos casos, é lamentável ver a mediocridade em plena acção.

 

O dispositivo da perda de nacionalidade é significativo. Os seus responsáveis consideram-se capazes de avaliar comportamentos e de decidir discricionariamente sobre o que vale e quem merece ou não ser português. Pensam-se à altura de decidir contra a Constituição para tentar aproveitar a maré. Entendem que os portugueses naturalizados têm mais obrigações do que os residentes nacionais. Pensam que os nacionais têm desculpa, enquanto os naturalizados não têm. Este é o pior aspecto da lei, aquele para o qual esperamos a demolição pura e simples pelo Tribunal Constitucional e pelo Presidente da República.

 

Mas há também aspectos risíveis e presunçosos. Os que estabelecem as condições culturais para que alguém possa obter a nacionalidade. Se o domínio da língua portuguesa faz algum sentido, já o conhecimento da cultura deixa a desejar. Qual o grau de conhecimento? Não se está a criar uma exigência que nem a maioria dos portugueses seria capaz de satisfazer? Também se exige que os candidatos conheçam suficientemente a história de Portugal e os símbolos nacionais, assim como os direitos e deveres fundamentais inerentes à nacionalidade portuguesa e a organização política do Estado, além da declaração solene de adesão aos princípios do Estado de Direito Democrático. Eis matérias de muito difícil tratamento, cujos graus de adesão são impossíveis de medir. Mais uma vez, exigências tais que talvez a maioria dos portugueses, incluindo governantes e deputados, não consegue cumprir. Também aqui, além de intenções estranhas, do domínio do espírito totalitário, se pode detectar um reflexo segregador a exigir dos naturalizados cultura, profissão de fé, respeito democrático, conhecimentos de história e acatamento dos princípios constitucionais que não são exigidos aos portugueses originários.

 

Houve um ministro, geralmente comedido, que perdeu a cabeça e proclamou: a partir de agora “Portugal é mais Portugal”. É demagogia tão barata! Tão inútil! Tão falsa nos seus fundamentos! Donde virá a responsabilidade por tal desatino? Terá sido do CDS? Do Chega provavelmente? Talvez do PSD? Quem sabe se do governo. Da inteligência não foi certamente. Nem da democracia. Nem da liberdade. O slogan não resiste a uma tentativa de compreensão. Portugal fica mais Portugal simplesmente porque endurece as condições de aquisição da nacionalidade? Não se percebe. A não ser que se aceite a demagogia como critério da portugalidade.

 

Apertaram-se as condições e as convenções. Aumentaram-se as exigências, de acordo com estimativas. Mais tempo em Portugal, mais casado, com pais a viver há mais tempo… Tudo isso é possível. Mas denota medo e falta de confiança. Traduz um desvio de intenção. Na verdade, os visados desta lei são os imigrantes. Mas, para aproveitar a maré ideológica e comover espíritos inquietos, aproveita-se a discussão sobre a imigração, para poder brilhar com o nacionalismo. É tão pacóvio tudo isso!

 

O controlo da imigração, indispensável e necessário, não se faz com condições mais difíceis na aquisição da nacionalidade, dependendo dos anos de residência e de trabalho. O controlo da imigração tem outras vias, outros objectivos e outras exigências. Por exemplo, obrigar à legalidade da entrada no país e da residência. Ou exigir a legalidade do trabalho e do emprego. Ou ainda impor a inscrição na Segurança Social e o cumprimento dos deveres fiscais. E finalmente demonstrar legalmente a identidade e as relações familiares legais: eis requisitos úteis para controlar a imigração. Assim como é necessário distinguir entre refúgio, asilo e imigração. Tudo isto é essencial, para construir uma sociedade justa e democrática. Nada disto tem qualquer relação com a naturalização e a nacionalidade.

 

O descontrolo da imigração significa o apoio à ilegalidade, à clandestinidade e ao tráfico de mão-de-obra. Assim como o favorecimento do mercado da droga, da exploração ilimitada dos trabalhadores, do abaixamento de salários dos residentes e da baixa produtividade. O descontrolo da imigração é uma abdicação do Estado de direito, um convite ao subterfúgio ilegal, à residência fictícia, ao mercado de endereços falsos, à prostituição de mulheres, homens e menores, à associação criminosa em geral. Nada disto tem a ver com a nacionalidade ou a naturalização. Tudo isto tem a ver com a legalidade e a política de imigração. Só a demagogia muito soez entende que a naturalização tem efeitos na criminalidade ou no descontrolo da imigração. Em poucas palavras: os criminosos castigam-se com a justiça, não com a nacionalidade.

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Público, 15.11.2025

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