sábado, 8 de novembro de 2025

Grande Angular - Missão em Belém

 Talvez seja cedo. Mas os programas políticos dos candidatos à Presidência da República ainda não são conhecidos. Isto é, não foram anunciados e publicados os programas formais de candidatura. As páginas da Internet, mesmo as oficiais, são pouco esclarecedoras. No entanto, após umas semanas de entrevistas, reuniões, sessões de esclarecimento e outros ágapes, já é possível delinear algumas orientações mestras, algumas prioridades. E sobretudo algumas faltas.

 

Nenhum candidato se comprometeu ainda com linhas programáticas claras. O tom geral, o clima e a música são já detectáveis, não os compromissos reais nem as intenções. O amor a Portugal e à democracia, o empenho pela liberdade e a garantia de estabilidade tocam a todos, não há diferenças nem novidades. Também a luta contra a corrupção, a preocupação com o bem-estar dos portugueses, a certeza da saúde e da educação, a ternura pelos pobres e pelos idosos e a criação de riqueza são de todos. Uns são mais atentos aos pobres, outros à Pátria. É difícil, com generalidades destas, encontrar diferenças e sinais distintos.

 

Mas o desenho exacto das funções presidenciais desejadas e prometidas está fora de campo de visão e de compromisso. Todos querem fazer bem ao país, mas ninguém diz como quer tratar o governo, o parlamento e as instituições. Ora, os grandes problemas, a exigir compromissos, são os da natureza das funções presidenciais. Como se sabe, a Constituição é essencial, mas não chega. O estilo próprio é indispensável para clarificar. A relação com o governo e o parlamento é a pedra de toque. A natureza da função presidenciais depende muito de várias condicionantes. Como a personalidade e o carácter do próprio e do chefe do governo. Ou a força da maioria parlamentar. Ou ainda a noção dos dispositivos constitucionais. A Constituição é importante, mas a interpretação que dela se faz é decisiva.

 

Terá o Presidente uma função liderante das instituições e dos órgãos de soberania? Ou apenas de cooperação com o governo e o Parlamento e equiparada à destes? Ou ainda uma função mista de, por um lado, Supremo Comandante e máximo representante da nação e do Estado e, por outro, ao apoio do governo e ao parlamento? É esta última, a mais difícil e complexa, que parece ser a mais útil para o país e a mais conforme com as necessidades e o espírito confuso da Constituição. Na verdade, ao Presidente compete apoiar o governo e o parlamento, não liderar nem orientar. Muito menos fiscalizar ou avaliar. É verdade que a Constituição, lida de certa maneira, pode sugerir uma liderança. Mas tal interpretação parece claramente a pior fonte de perturbação e confusão. Houve presidentes que, durante parte dos seus mandatos, entenderam que o apoio à acção do governo e do parlamento era o seu principal objectivo, a sua principal missão. Foram alguns dos melhores momentos da nossa vida constitucional. Também houve casos em que os presidentes entenderam que o seu papel era o de responsável, de liderança ou de empenho na acção política. Foram alguns dos piores momentos da nossa vida constitucional.

 

Olhando para o actual momento político, quando já só faltam dois meses para as eleições, é evidente a ausência de compromissos dos candidatos. Pior ainda, é clara a tendência, manifestada por todos os candidatos, para uma interpretação maximalista ou excessiva das suas funções. Todos pretendem assumir um papel liderante. Todos desejam desempenhar funções quase executivas, com foco na saúde, na educação, na criação de riqueza e na regulação das migrações, para já não falar na defesa nacional e nas relações externas. Na verdade, todos os candidatos actuais, mesmo sem a força e a clareza dos compromissos formais e dos programas de candidatura, dão claros sinais de pretenderem exagerar o seu papel, de se sobrepor aos governos, de com eles cooperar sem apoiar, ou até possivelmente dirigir. Parece mesmo que todos os candidatos se preparam para ultrapassar os limites da Constituição. Nestas coisas, o mimetismo funciona: se um exagera, logo os restantes seguem a mesma via.

 

É verdade que o papel do Presidente pode variar conforme as personalidades e as circunstâncias políticas. Feliz ou infelizmente, não existe uma dogmática para a sua interpretação. Mas uma coisa parece certa: a rivalidade de legitimidades, a competição de poderes e a sobreposição de competências são negativas para o país e o sistema democrático. Em contraste, o papel de apoio presidencial ao governo não cria problemas novos, não é fonte de conflitos desnecessários, nem perturba o funcionamento das instituições.

 

Se vivêssemos tempos pacíficos de equilíbrio político e de estabilidade institucional, seria talvez o momento adequado para pensar a tão adiada revisão constitucional. Uma das mudanças mais interessantes seria mesmo a de repensar o modo de eleição do presidente. Esta última, feita directamente pelo povo, poderia ser substituída pela eleição indirecta, provavelmente fonte superior de equilíbrio e estabilidade. Mas não parece ser possível. Por causa de Salazar e de Delgado: o primeiro deu má fama à eleição indirecta, o segundo deu bom nome à eleição directa. Depois, porque nada ajuda a que se faça, serenamente, nos tempos que correm, uma revisão constitucional.

 

De toda a maneira, quem quer que seja o presidente eleito e qualquer que seja o entendimento dos seus poderes, a acção presidencial pode incluir dimensões excepcionais de acção. Pode o Presidente ter papel relevante, mormente em apadrinhar ou estimular o funcionamento e a reforma de sectores importantes da vida pública, nomeadamente os de cariz mais nacional do que político. Por exemplo, o Presidente, como Supremo Comandante, pode perfeitamente, talvez deva mesmo, estimular a organização e a reforma da defesa nacional. Como pode, com grande proveito para todos os cidadãos, activar e até inspirar a reforma da justiça.

 

Esta última é particularmente necessária. Os tribunais, como órgãos de soberania, necessitam de inspiração, de energia e de liderança institucional, que não pode ser dada pelos governos nem pelos parlamentos, sob pena de perda de independência. Por outro lado, as divisões entre corpos da justiça fazem com que esta não seja capaz, sem impulso externo e sem legitimidade superior, de se reformar. Até hoje, os parlamentos, os governos e os magistrados revelaram-se impotentes ou simplesmente sem vontade para reformar a justiça. Talvez um Presidente da República consiga. 

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Público, 8.11.2025

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