sábado, 11 de outubro de 2025

Grande Angular - Os Portugueses e as suas autarquias

 Ser governado por Lisboa, pelo distrito, pela região, pelo município ou pela freguesia? O que é melhor? Os portugueses nunca decidiram, de modo claro, ou pelo menos durável, o que preferem. A Constituição consagrou o Estado central, as Regiões e as Câmaras, eliminou os distritos e fez uma vaga vénia às freguesias. O problema é que a Constituição nunca foi referendada. E que nunca se fez a regionalização, nem sequer se aprovou o mapa das regiões: os dispositivos escolhidos foram de tal modo urdidos que se destinavam bem mais a impedir do que a avançar. Parece ser a única parte da Constituição que nunca foi cumprida. Quando, uma vez, em 1998, se fez um referendo sobre o assunto, a resposta popular foi “Não”! De qualquer modo, o veredicto não era vinculativo, pois mais de metade ficou em casa. Neste panorama, exceptuam-se as duas Regiões Autónomas, Açores e Madeira, outrora designadas por “ilhas adjacentes”, “arquipélagos insulares” e outros epítetos de desprezo. Estas denominações estiveram em vigor, quase sempre, desde a Constituição de 1822. 

 

Na ausência de regiões, a Administração Pública do país fica entregue ao Estado central e às autarquias locais, câmaras e freguesias. Durante o Estado Novo salazarista, estas tinham uma existência menor, a começar pelo facto de os presidentes de câmara e as vereações não serem eleitas pela população. Nomeados pelo governo, dependiam ainda do Governador Civil, igualmente nomeado.

 

A democracia prometia alterar isto. E algo fez, nomeadamente as eleições para os órgãos autárquicos (câmaras e freguesias) e a eliminação do Governador Civil. Foi de tal modo inovador, pelo menos aparentemente, que se criou o hábito de tratar do poder local como “a mais importante realização do 25 de Abril”! Verdade é que a transferência de poderes e funções do Estado central para as autarquias ficou-se pelo caminho. As regiões só foram criadas no papel, onde ainda jazem. As Câmaras têm hoje mais funções, mais pessoal e mais orçamento do que em qualquer outra altura. Mas a real transformação das Câmaras em órgãos poderosos, próximos, eficientes e modernos ficou, na maior parte dos casos, muito aquém das esperanças e das possibilidades. Quando, numa Câmara, um Presidente e uma Vereação têm talento, força, independência pessoal, imaginação e apoio dos cidadãos, a sua grandeza é real e os resultados vêem-se. Com estas excepções, o poder local definha. Queixa-se do poder central. Acusa a oposição. Vai-se entretendo.

 

Na realidade, toda a gente sabe isto. Se formos ler os programas eleitorais dos partidos e de todas as autarquias, o rol de queixas do poder local e contra o poder central é infinito. E não há excepção: quem está acusa a oposição; e a oposição queixa-se de quem está. As preferências e simpatias também são comuns a todos: se é com o seu partido, todos preferem o Estado central e o governo. Se é com o partido da oposição, são adeptos firmes da descentralização. Ou mesmo da regionalização, se esta trouxer vantagens ao seu partido e à sua família.

 

campanha eleitoral deste ano foi bom momento para verificar uma velha realidade. Os portugueses são, em abstracto e na conversa, defensores do poder local e da descentralização. Até da regionalização. Mas, quase sem excepções, na prática, na acção pública, nas instituições e na vida real, são centralizadores e preferem o governo central. Em geral, têm certezas conhecidas: o poder local não tem meios e tem pouca sabedoria, os autarcas não têm formação técnica, nas autarquias há mais corrupção e ali abundam as cunhas partidárias e os fretes familiares. Para muitos, “os problemas” (segurança social, educação, saúde, ordem pública, estradas, incêndios, habitação, pobreza, criminalidade…) têm uma escala muito superior ao poder local, têm de ser analisados e resolvidos pelo governo central. Sem excepção, os partidos têm crenças seguras e opostas: adeptos do poder local, aspiram ao poder central.

 

Há muito que se impõe um exame global e rigoroso dos poderes autárquicos, das suas dimensões, das suas funções e do seu mapa. Ainda se tentou qualquer coisa há poucos anos, fizeram-se umas tantas fusões de freguesias (muitas das quais depois voltaram para trás), mas não se chegou a tocar nos reais problemas, nas funções, nas competências, nos meios e nas responsabilidades. Assim é que temos um poder local fraco, pobre, sem meios, sem poder nem competências.

 

Uma comparação entre países europeus não é um grande contributo para esclarecimento. Há países com dezenas de milhares de municípios, há países com apenas umas dúzias deles. A questão parece estar mais do lado dos poderes dessas unidades administrativas eleitas. E das funções de cada uma. Assim como da despesa pública de que cada uma é responsável. Em Portugal, o poder local tem uma parte ínfima do investimento público, uma percentagem muito reduzida da despesa pública, uma dimensão diminuta do pessoal da Administração Pública. Além de ter poderes limitados e mãos atadas em vários domínios essenciais: educação, saúde, segurança social, policiamento e segurança, licenciamento comercial, habitação e incêndios.

 

No contexto europeu, a informação sobre Portugal é previsível: é um dos países em que a administração local é responsável pela menor parte da despesa pública e do investimento. A parte local terá aumentado durante as últimas décadas, mas estamos longe, muito longe, do que se faz nos restantes países europeus. No entanto, o critério não é esse, o da paridade com a Europa. O critério é o da competência para fazer o que tem de ser feito. A eficácia. A sabedoria. A proximidade. O controlo social. A capacidade para corrigir. Nestes critérios, Portugal fica cá atrás.

 

Poderá haver exemplos de temas ou sectores em que não se duvida da necessidade do poder central? Certamente. As Forças Armadas, por definição. O espaço aéreo. O caminho de ferro. O orçamento nacional. Os impostos nacionais (que não as taxas locais, os impostos municipais e tantos outros). As leis de enquadramento nacional e de bases gerais. Os direitos fundamentais. 

 

Os portugueses hesitam, há cinquenta anos, entre o município, a região e o Estado central. A retórica é favorável à região, mas as forças reais, do eleitorado aos partidos, das empresas aos sindicatos, são favoráveis à centralidade, ao poder central. É pena. A democracia seria melhor.

Público, 11.10.2025

sábado, 27 de setembro de 2025

Grande Angular - Dentro de dez anos

 Daqui a uma década, mais ou menos, vamos todos recordar estes tempos presentes. As que parecem peripécias e intrigas não o são apenas ou não o são de todo. O que se pensa hoje que são males que se corrigem ou bens que duram revelar-se-á rapidamente uma espécie de fundação do país futuro. As novas sociedades, economia, política e cultura, organizam-se hoje, quase imperceptivelmente, de modo que, por vezes não nos damos conta do quadro geral, do que aí vem. Sobretudo se não soubermos, agora, prestar atenção ao futuro, preparar o melhor e evitar o pior.

 

O que se vai passar em Portugal não depende só de nós. Cada vez menos. O mundo, de Washington a Pequim, de Israel à Ucrânia ou do Irão à Rússia, terá influência decisiva. Não era assim, ou antes, não era tanto assim antigamente, há décadas ou séculos. As influências externas eram menores ou menos visíveis. Agora, é bem diferente. Da demografia ao trabalho ou das finanças às artes, “isto anda tudo ligado”. Em todo o caso, muito mais ligado do que antes.

 

Mas a verdade é que nos compete, a nós, povos soberanos e Estados independentes, decidir como reagimos e nos integramos. Depende de nós e das nossas escolhas, definir ou escolher o modo como queremos fazer parte do mundo novo em construção. A nossa presença, mais activa ou mais passiva, resulta das nossas vontades e das nossas preferências. Podemos não ter influência no mundo, é verdade, mas devemos proteger-nos do que nos diminui e aproveitar o que nos interessa.

 

A política portuguesa está em mau estado. Instável. Incerta. Distante. E em curso de mutação tão profunda que, dentro de muito pouco tempo, nada ficará como agora. Tanto por motivos políticos, como sociais. O envelhecimento rápido, a grande emigração de portugueses e a enorme imigração de estrangeiros estão a criar uma população inesperada. Mais de metade do país continua entregue ao abandono e aos incêndios. 

 

A força de trabalho perde robustez, organização e influência. A independência do capital é diminuta. O Estado não tem sabido traçar o seu caminho na economia:  asfixia os privados e cria obstáculos ao estrangeiro, mas, em última análise, não ajuda, não apoia, nem incentiva. A fragilidade e a vulnerabilidade do Estado português perante os interesses internacionais é por demasiado evidente.

 

Depois de se terem assegurado dois feitos essenciais, a criação de instituições democráticas e a integração europeia, o Estado português não tem sabido consolidar as suas funções sociais: em crise de eficiência, a saúde e a educação são bons exemplos. A pobreza dos serviços públicos, sobretudo de funcionamento, de eficácia e de atendimento, é proverbial.

Numa das mais nobres funções soberanas, a Justiça, o Estado, o poder legislativo e os próprios corpos da magistratura não têm sabido, talvez nem sequer desejado, organizar o seu sistema, tornando-o justo, eficiente e moderno. Mais do que os transportes e a saúde, mais do que a educação e a segurança social, é talvez a Justiça o principal exemplo de incapacidade democrática. Ora, quando a Justiça não está bem, é a democracia que bem não está.

 

Depois de algumas décadas de estabilidade aparente, pelo menos formal, o sistema político dá sinais de fragmentação, ou mesmo quase de desintegração. A extrema-direita aproveita e explora este clima. A direita democrática parece reduzida a uma herança. A esquerda democrática atravessa a sua mais grave crise desde os anos setenta, sendo discutível que possa acordar ou seja refundada. A extrema esquerda perdeu tudo, base, apoio, sonho, energia e programa. O centro político está destruído, vazio, sem meios nem vontade. O ideal da moderação em tempos difíceis e a esperança da aliança de equilíbrio em momentos de crise praticamente desapareceram do horizonte. Parece anunciar-se a pior polarização de todas: a das forças irracionais e sectárias.

 

As duas últimas eleições legislativas foram o sinal de partida do processo de desequilíbrio e de fragmentação. Se alguma coisa este anunciou, foi o crescente desinteresse da população pela política democrática e os partidos. Na verdade, este é encorajado pela política formal e nominal, adjectiva e processual, que caracteriza os actuais principais agentes políticos. Os líderes partidários vangloriam-se e oferecem-se à população, prometendo liderança e energia, tudo atributos e obras que não se anunciam: ou se é, ou não se é, não se proclama. Raros são os políticos que discutem com o público e as instituições os temas e os conteúdos da sua acção. Mas quase todos discutem processos e intrigas.

 

Há cada vez mais sinais de fortalecimento e desenvolvimento de pulsões antidemocráticas tanto na sociedade como no universo da política e dos partidos. Ora, não se vê que as únicas armas eventualmente eficientes para contrariar esses esforços, isto é, os dois grandes partidos democráticos, PSD e PS, estejam interessados em combinar, juntar, articular ou simplesmente convergir atenção e trabalho no sentido de lutar e contrariar as tendências antidemocráticas. Por outro lado, os movimentos de diálogo ou de aproximação entre o PSD e o CHEGA não só antecipam o pior que pode acontecer à democracia, a sua queda “por dentro”, como não parecem ser combatidos pelo PS, nem sequer pela totalidade da esquerda.

 

As eleições presidenciais, tal como noutros tempos passados, poderiam transformar-se num momento de verdade, num lugar geométrico das tarefas e dos esforços democráticos. É sabido que um presidente não pode, por si só, influenciar todo o sistema político e todas as instituições públicas. É até conhecido que, a sua importância seja diminuída pelos simples resultados das eleições parlamentares. Quer isto dizer que o seu mandato tem pouco de salvador. Mas a sua eleição é um momento alto da política nacional. A escolha feita, dentro de três ou quaro meses, será um esclarecimento essencial e um momento de definição. Seria bom que as forças democráticas, políticas e civis, traduzissem em acção e escolhas esta realidade. Seria importante que os agentes políticos e os candidatos percebessem que a eleição presidencial é mais do que uma formalidade. E muito mais do que um passo de calendário.

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Público, 27.9.2024

sábado, 20 de setembro de 2025

Grande Angular - Palavreado

 É um dos grandes mitos da política portuguesa: o “bloco central”, as alianças do centro político ou as coligações de forças democráticas moderadas provocam o crescimento da extrema direita (e da extrema esquerda, eventualmente) e são perigosas para a democracia. Para argumentar, fazem-se afirmações atrevidas. Não podemos deixar o capital de protesto para os radicais, dizem. É perigoso entregar a oposição aos extremos de direita e de esquerda, afirmam. A solução democrática consiste em partir ao meio o eleitorado, esquerda e direita, ora governando uma, ora outra, garantem. Há anos ou décadas que esta espécie de sabedoria condiciona a política portuguesa. Com um objectivo principal: o de impedir o chamado “bloco central”, a coligação entre o PS e o PSD.

 

Está a ver-se a beleza desta afirmação, este exemplo de fina inteligência! A recusa da coligação entre o PS e o PSD, o afastamento obsessivo e permanente do Bloco Central e a condenação deste último provocaram… o crescimento da direita de Chega e Ventura. A insistência em governos de minoria e em “arranjos pontuais” provocou, mais uma vez, eleições antecipadas, dissoluções inconvenientes e políticas de instabilidade. Tudo para acabar… no crescimento da direita de Chega e Ventura.

 

Esta nova direita, que tudo leva a crer seja extrema, nasce, não do Bloco central, mas da sua negação pelos democratas. Esta direita é evidentemente perigosa, sem ser necessariamente fatal para a democracia. Cada dia que passa é mais radical, como se tem visto nos últimos tempos. Era bom que a democracia a combatesse e a derrotasse. Mas também seria bom que os democratas percebessem melhor a realidade da extrema-direita e soubessem como lutar contra ela.

 

Os democratas têm uma especial inclinação para a retórica. Boa ou má. Eles gostam de combater com declamações, insultos e gritaria. Ou condenações morais. E muita indignação. Ora, não é com palavreado que se combate a extrema-direita. Até porque, nesse estilo, no palavreado, a extrema-direita é melhor do que a direita e a esquerda democráticas. Foi o que vimos nos últimos anos. PS e PSD frenéticos a condenar, com palavras e lugares comuns, a direita radical de Chega e Ventura: fascistas e neofascistas, nazis e neonazis e neoliberais eram os mais frequentes. O resultado está à vista: a direita de Chega e Ventura não parou de crescer. E ameaça assim continuar.

 

Os democratas insistem em vituperar e vociferar. Ora, a extrema-direita combate-se com obra feita, lisura de processos, honestidade de acções, clareza de intenções, bom governo e administração pública eficaz. Que é o que direita e esquerda democráticas não souberam fazer. O que combate a extrema-direita (e extrema-esquerda) é um Estado eficiente, o firme combate à corrupção e uma Justiça pronta. Que é o que, em 22 anos de PS e 9 de PSD, nas últimas três décadas, os democratas não souberam fazer e criar. 

 

O que ajuda a extrema-direita a crescer e desenvolver-se são as filas de espera em todos os serviços públicos, a desigualdade crescente, o emprego ilegal e a falta de habitação. Que são situações críticas que os democratas do PS e do PSD não conseguiram evitar. E são ainda as greves selvagens (justas ou injustas), a ganância, as vendas de empresas públicas em circunstâncias estranhas, as compras de aviões e helicópteros, o apoio à economia paralela e o fecho de emergências médicas aos fins de semana: são estas mais algumas das causas do crescimento da extrema-direita.

 

São as acções de combate a estes fenómenos que constituem as armas contra a extrema direita, são esses os meios de luta eficaz, não o palavreado gratuito e exasperado, nem as acusações de fascista, neonazi e neoliberal. Não são estas atitudes que terão qualquer resultado, antes pelo contrário, revelam receio e impotência. Exibem uma democracia vulnerável. É muito pouco provável que a extrema direita, a de Chega e Ventura em particular, tenha sabedoria e meios para resolver quanto está errado. Mas os erros presentes são capazes de ajudar o Chega a aumentar os votos.

 

A irrupção de Chega e Ventura na política portuguesa (com paralelos noutros países europeus), assim como o seu rápido e talentoso crescimento, levantam problemas interessantes. A aprofundar nos próximos tempos. Como se dizia antigamente, a interrogação fundamental, nestes casos, era “Qual é a sua base social de apoio”? Qualquer partido, novo ou velho, dizia-se, tinha origens de classe, berço institucional ou marca social de nascença. 

 

Qual a origem social da Extrema-direita? Qual a sua base social de apoio? Eram perguntas que se faziam há décadas, com respostas tão engraçadas quanto inúteis e interessantes. O exercício valia a pena. Há mesmo vários livros sobre este tema, com relevo para “As origens sociais da ditadura e da democracia” de Barrington More. Era útil saber mais sobre a base social de apoio da democracia e do fascismo. Assim como da República, da social-democracia, do Salazarismo ou do comunismo.

 

Hoje, estas análises não se fazem. Tudo anda à volta do processo, da imagem, do impacto e de entidades semelhantes. Mas é forte a ideia de que um movimento ou um partido, para ter êxito e presença, necessita de ter uma origem de classe ou uma base de várias classes e interesses. Esses tempos já passaram, hoje é certo e seguro que os partidos, os movimentos e os regimes têm bases sociais variadas, entrecruzadas e misturadas com interesses nacionais, regionais, religiosos e outros. Assim como económicos e empresariais.

 

Qual é a base social de apoio do Chega? O grande Capital? Não consta que haja grande capital em Portugal. A Igreja? Não parece. As Forças Armadas? Não se sabe que haja actividade. A pequena burguesia? Talvez, está sempre em todas. As elites académicas? Por enquanto não. As multinacionais? A classe média arruinada? Os pensionistas? O pequeno comércio? A grande lavoura? A pequena agricultura? A província? O Norte? O Alentejo? As cinturas industriais? As áreas metropolitanas? De tudo isto um pouco. É a resposta mais verosímil.

 

Não parece haver uma base social de apoio bem marcada. Tudo leva a crer que estejamos diante de uma reacção de protesto e insatisfação, de repúdio e receio, diante dos feitos e malfeitos da democracia nos últimos anos, os erros dos dirigentes democratas, o abaixamento de qualidade do pessoal político e a perda de sentido de reconhecimento dos dirigentes democráticos do sistema. Há uma insatisfação que a muitos toca e um protesto que de muitos vem. É aí que o Chega se alimenta. É aí que é preciso agir.

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Público, 20.9.2024

sábado, 13 de setembro de 2025

Grande Angular - Desleixo. E indiferença.

 O acidente do Ascensor da Glória deu origem a momentos difíceis de suportar. Sobretudo para os que foram atingidos pela dor. Mas olhar para o que se seguiu, o que se viu e ouviu, o que ainda se passa, é motivo de desânimo. Talvez seja assim noutros países, o que é indiferente. O que se passa em nossa casa é suficiente.

 

            A utilização imediata do acidente, como argumento político, foi evidente e de penosa observação. Não faltou quem, com ou sem conhecimento dos factos e das circunstâncias, exigisse uma imediata demissão, naquele que é o gesto mais banal da política portuguesa. Logo seguido dos que, teatralmente, garantiram que tinham cumprido todos os seus deveres. Depois, vieram os que acusaram os outros de fazer política, de aproveitamento, como dizem. Sem esquecer, claro, os que fizeram política, garantindo que não faziam. Toda a gente prometeu ou exigiu inquéritos e estudos, até às últimas consequências, “doa a quem doer”, em que tudo será dito e revelado. Como em tantos outros inquéritos e estudos que ainda hoje estão por concluir e publicar.

 

            A responsabilidade pelo que aconteceu, ou a “culpa”, como se tem repetido, será talvez apurada, um dia. Será pessoal ou institucional, política ou técnica, da corrupção ou da ignorância. As conclusões poderão ser conhecidas a tempo de indemnizar as vítimas ou de castigar os responsáveis. A avaliar pela tradição e pela história, não é certo que assim seja. Mas, se for, ao menos temos isso. Porque pode faltar o que é igualmente importante: que haja consequências, que se faça o que é preciso para que não se volte a repetir. Para que os portugueses em geral, os políticos, os funcionários, os engenheiros, os autarcas e tantos mais retirem lições e aprendam com os desastres. E tenham em conta com o mais importante de tudo: os direitos e a segurança dos cidadãos.

 

            O que está em causa são algumas das características nefandas da nossa sociedade e do Estado. O desleixo ou o desmazelo estão presentes por todo o lado. A negligência, a incúria e o desinteresse, também. Pode haver regulamentos extraordinários, protocolos modernos, regras exigentes, mas a sua aplicação deixa sempre a desejar. Qualquer projecto, decreto-lei, programa ou portaria é meticulosamente elaborado, com todos os pormenores jurídicos e administrativos, técnicos e económicos, assim como regras e competências. Mas o que falha é o essencial: a sua aplicação à sociedade, a homens e mulheres, a pessoas.

 

            Os capítulos malfadados da negligência e do desleixe são conhecidos. A manutenção de sistemas e aparelhos. A fiscalização da obra e do funcionamento. A inspecção. O cumprimento de prazos e o respeito pelo calendário. A pontualidade. A minúcia. A paciência. A consulta à opinião dos utentes. A resposta às críticas. A avaliação das vulnerabilidades. O permanente acompanhamento dos sistemas e dispositivos. É sempre aqui que falham os melhores projectos, que fracassam os planos mais sofisticados.

 

            As palavras-chave são: descuido, desmazelo, desleixe, negligência, desinteresse e indiferença. Uma das razões pelas quais é sempre muito difícil encontrar responsáveis por acidentes reside aqui: o rigoroso acompanhamento não é feito. Ou mal feito. Ou tardiamente feito.

 

            Toda esta triste realidade é especialmente visível quando se trata de serviços públicos. Como todos sabemos e sentimos. Os atrasos nos comboios e nos autocarros. O indigente desconforto nos transportes públicos, das paragens às carruagens. As filas de espera nos centros de saúde e nos hospitais para consultas, exames e cirurgias. As esperas nas lojas do Cidadão, nos organismos para a imigração, nos serviços de identidade e de segurança social. Há filas de espera nos corredores, nas garagens, nas ruas, nos passeios e nos jardins, ao sol ou à chuva, mas sempre na humilhação. Há esperas para todas as inscrições imagináveis, nas escolas, nas creches e nas universidades. Há filas nos tribunais e nas repartições. Nas Câmaras e nas Freguesias. Até no Aeroporto!

 

Há mesmo um grupo de companhias, empresas e serviços, especializadas em atrasos, filas de espera, encarecimento e mau trato infligido aos clientes e utentes: são as companhias de telefone, telemóvel, água, electricidade e gás. Este é o reino do absurdo, do despotismo e da indiferença burocrática. Os contratos são quase sempre verdadeiras armadilhas em que todas as regras de preços, aumentos, renovação e duração são feitas contra os cidadãos. São estas companhias as mais assíduas e crentes nos sistemas de “fidelização”, um roubo legalizado ou uma emboscada contratual na qual as vítimas são evidentemente os utentes e assinantes.

 

São estas últimas companhias as rainhas do “call center”, sistema de atendimento, mas que na verdade é sobretudo um mecanismo de afastamento dos clientes e assinantes. Gravações entediantes e incompreensíveis, longuíssimos minutos de espera, música absurda, diálogo através de teclas, espera e mais espera. Estes são os sistemas, com total cobertura legal, sem fiscalização nem avaliação, através dos quais as companhias (geralmente privadas, mas podem incluir públicas) exploram os seus clientes ou subscritores e fazem-nos sentir culpados e obsoletos.

 

            Que tem tudo isto a ver com os acidentes do ascensor ou dos incêndios? A mesma atitude, os mesmos princípios: negligência e desmazelo. Indiferença pelo serviço público. E sobretudo esta ideia de que o público, os cidadãos, os trabalhadores ou os utentes das classes médias e baixas têm de aguentar. O que deveria ser primordial, receber bem e cuidar melhor, é apenas secundário e dispensável.

 

            O Ascensor da Glória é mais um numa longa e sinistra lista. Que inclui uma série fatal de incêndios florestais de 2003, 2005, 2013, 2016 (na Madeira) 2017 e 2025 especialmente os de Pedrógão, Arganil, Castanheira de Pêra e Seia, os desastres ferroviários de Alcafache e de Custóias, a aluvião da Madeira, a queda da ponte do Douro em Castelo de Paiva ou Entre-os-Rios, os vários acidentes aéreos da Madeira, dos Açores, de Lisboa, do Porto e do Algarve. Nuns casos, sobressai a falta de previsão e a negligência. Noutros, a incompetência. Noutros ainda, a falta de acompanhamento e de assistência às consequências. Em todos, a indiferença perante os serviços públicos e os cidadãos.

 

            Empresas e Administração Pública têm a certeza de que não há ninguém, ou quase ninguém, que as vigie, que as critique, que as obrigue a adaptar-se ao bem-estar dos cidadãos, à sua segurança e ao seu conforto. Numa palavra, aos seus direitos.

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Público, 13.9.2024

sábado, 6 de setembro de 2025

Grande Angular - O mundo que nós perdemos

 Enquanto, na Ásia, um inédito arraial exibe os novos vencedores e o futuro arranjo da balança de poderes, deste lado do Ocidente, o Presidente dos Estados Unidos envia tropas para Chicago ou mata uma dúzia de traficantes de droga venezuelanos. Após alguns anos de mutação lenta e gradual, de repente, o mundo acelerou. A ponto de merecer consagração. Na China e na Rússia. Com mais de metade do mundo a apoiar e a regozijar-se.

 

É verdade que, de tempos em tempos, o mundo necessita de ajustes. E mesmo quando estes não parecem ser necessários, acontecem. Aceite-se que o mundo actual está a pedir arranjo. Há alianças a desafazer-se, há novas a preparar-se. As desigualdades económicas e sociais têm crescido. As diferenças de poderio militar entre as nações são maiores. A competição armada atingiu graus perigosos. O mundo pobre e miserável, sobretudo africano, vive em guerra civil e é todos os dias despojado. A Rússia recuperou toda a sua força agressiva. A China chegou a uma posição única na história. Temendo a perda da hegemonia clássica, a América perturba com a guerra comercial. A Europa oscila entre a letargia e a hesitação.

 

As diferenças entre hoje e o que o mundo era há meio século são enormes. Há pessoas, de cinquenta anos, que não acreditam. Quando se menciona o apartheid, o comunismo, a pobreza, a fome e o racismo, há quem pura e simplesmente não acredite. Quem pense que se trata de banda desenhada. Em poucos anos, os mapas mudaram. A “Guerra Fria” começou e acabou, para ser agora novamente receada. O ascendente comunista e socialista foi imparável, antes de decair com estrondo. A chegada das colónias à independência anunciava uma nova humanidade. Uma voz do chamado “Terceiro Mundo” trazia para o presente um futuro apenas sonhado. Mas as guerras civis e a fome em África vieram desmentir a promessa. Lentamente, parecia que os Estados Unidos perdiam a sua hegemonia indiscutível. A derrota no Vietname sugeriu uma fragilidade inesperada.  Entretanto, o mundo do petróleo e da finança internacional afirmou-se com laivos de independência. E o desafio asiático, ganho em poucos anos, anunciou um novo equilíbrio ainda mal desenhado. A implosão absoluta do mundo comunista soviético chegou a parecer uma promessa de democracia. Tudo isto e muito mais se passou no tempo de uma vida.

 

Não é possível, pelo menos por enquanto, falar em nova aliança, ou sequer novas alianças, que incluam a China, a Rússia, a Índia, o Irão, a Coreia do Norte… Quem sabe se o Paquistão, o Iémen, o Laos e o Vietname…. Hipoteticamente, outros ainda, em África, no Próximo Oriente, na Ásia e até na América Latina. Mas é inegável que estamos a viver uma conjuntura favorável a uma convergência antiamericana, antiocidental, antieuropeia, anticapitalista e antiliberal. E também ainda uma conjuntura, ou antes, uma nova estrutura, favorável à China e à Rússia. A primeira como nova potência liderante, económica e industrial, mas já também tecnológica, científica e militar. A segunda, como potência militar restaurada e fornecedora de matérias-primas.

 

Para explicar aonde chegámos, há muitas interpretações, claro. É possível afirmar que a China só chegou aqui porque o mundo ocidental lhe abriu as portas, pediu emprestado, deslocalizou indústrias e transferiu tecnologia, tudo à espera do trabalho barato, da sociedade controlada e de um fabuloso mercado inesgotável. Como também é possível declarar que foi igualmente o mundo ocidental, europeu e americano, que enriqueceu a Rússia, comprando-lhe energia sem limites e matérias primas raras a preços invejáveis. É possível concluir que o mundo ocidental ajudou a fazer a China e a Rússia de hoje.

 

Também não se pode negar que algumas novas potências se afirmaram.  A Índia, o Paquistão e o Irão, pelo menos, fazem parte deste pacote “emergente”. Sem falar na aparição do fortíssimo poder do mundo islâmico graças a dezenas de anos de acumulação de colossais receitas do petróleo.

 

Outros fenómenos podem ser referidos como fazendo parte deste processo de transformação da balança de poderes. Por exemplo, o desinteresse europeu pela força armada, acompanhado da dependência marcada dos Estados Unidos. Estes, por diversas razões, reduziram o seu grau de empenho na aliança atlântica: ou porque olharam para o Pacífico e outras partes do mundo; ou porque entenderam que a Europa não os acompanhava. Pelos bons e pelos maus motivos, o certo é que, curiosamente, é no tempo do Presidente Trump que a América ficou menos poderosa e com rivais mais à sua altura.

 

A Europa está a perder. Seguramente. O universo europeu do Estado social e da política de prioridade aos direitos humanos está a perder também. Tal como a crença numa identidade europeia afecta à democracia, à cultura, à igualdade social e aos direitos humanos. Ao mesmo tempo incapaz de integrar imigrantes e povos de todos os horizontes e de regular os sistemas de acolhimento de estrangeiros.

 

Tempos houve, há poucas décadas, em que os países deste mundo, velhos e novos, aspiravam à designação de democracia. Inscreviam-na nas suas Constituições e até na sua designação oficial. As Repúblicas latino-americanas afastavam-se das suas tradições de golpes de Estado e procuravam alicerces para a democracia. Em África, apesar dos milhões de mortos nas suas guerras civis, os novos Estados independentes afirmavam fé democrática, declaravam com valor de lei que a democracia era o seu regime. As Repúblicas e os Estados asiáticos, com menor convicção, revelavam também a sua intenção democrática. 

 

Tudo isso acabou. Ninguém quer ser democrático, a não ser a minoria ocidental. E mesmo aqui, democracia é cada vez mais, para muitos, equivalente de conservador e privilegiado. Para não dizer opressor. É possível que a Europa e o Ocidente não percam muitas das suas regalias ou vantagens, nomeadamente económicas. Mas quem perde mesmo é a democracia e os direitos humanos. 

 

Podem a Europa e o Ocidente não ter só feitos de que nos orgulhemos. Muitos na história, alguns mais recentes. Entre guerras e conquistas, opressões e ditaduras, não faltam páginas negras. Mas a democracia e as liberdades dos cidadãos ficam como património excepcional que nenhum outro continente garantirá. Com a excepção jugoslava, as últimas décadas foram exemplos únicos de paz e democracia. Podemos não perder a liberdade e a democracia, mas deixámos de ser um exemplo. Os outros, a maior parte do mundo, deixaram de querer ser como nós.

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Público, 6.9.2024

sábado, 30 de agosto de 2025

Grande Angular - O que quer o Chega

 Até quando abusará, Ventura, da nossa paciência? Até onde irão a sua determinação e a do seu partido em destruir o Parlamento, demolir as instituições, ridicularizar os órgãos eleitos e minar a representação popular? Até quando permitirá a República que estes senhores insultem os eleitos, ameacem os rivais, envergonhem os cidadãos, admoestem os adversários e ofendam quem se lhes opõe? Até quando permitiremos que esta turma de arruaceiros ofenda os deputados e os governantes, os políticos e os comentadores, os autarcas e os cidadãos?

 

Abusar do Parlamento? Ameaçar o Senado? Ofender a Assembleia? Acusar os Autarcas? Difamar os representantes do povo? É uma velha tradição. Catilina fez. Calígula insistiu. Robespierre também. Lenine e Estaline do mesmo modo. Hitler ainda pior. Idi Amin Dada tentou. Bokassa também.

 

O Chega é pouco educado. Não é democrata. Não é construtivo. Não é elitista. É inculto. É popular. É populista. É inteligente. Não tem pensamento político. Não tem doutrina. Não tem programa. Tem sentimentos. Tem raiva. Tem intuição. Tem olfacto. Sente a maré. Explora o fácil. Se o deixarem fazer, dá cabo de tudo. Tenta, pelo menos. Não respeita as instituições. Não se interessa pelo Parlamento. Se não o deixarem fazer, dá cabo de tudo. Tenta, pelo menos.

 

Um morto, um ferido, um acidente, um acto de violência, uma corrupção, uma adjudicação sem concurso, um favor de partido, um atraso, um injustiçado, um inocente condenado, um cidadão assaltado, um branco atacado por um negro, um imigrante que assalta uma bomba de gasolina, um político que enganou o fisco, um esquerdista que não declarou a propriedade, uma mãe com fome, um pai sem emprego, um pobre sem almoço e um velho numa fila de espera do hospital: é com esta matéria-prima que o Chega faz política. Com a ajuda das esquerdas e da comunicação social.

 

A denúncia destas situações é o argumento do Chega. Tem sempre razão. De todos elas diz que são uma vergonha. Não pretende, nem sabe, corrigir. Quer denunciar. Não tem solução nem meios para tratar do que quer que seja. Mas tem vontade e apetite de poder. É como uma bola a saltar, nunca pode parar. A bola do escândalo. A bola da vergonha. Se o atacam, se alguém o quer calar, aqui d’el rei que é contra a democracia.

 

São os mais ilustres provocadores na actual vida portuguesa. Provocam até que lhes digam basta, até que os ameacem, até que tentem utilizar a força ou a lei. No dia em que o fizerem, que utilizem a força e a lei contra eles, socorro estão a dar cabo da democracia. Vão continuar a inventar cartazes, bandeirolas, pichagens, foguetes, carros folclóricos, tatuagens e máscaras. Vão continuar a conspurcar a via pública com horrendos cartazes demagógicos, à espera que lhos tirem, que venham agredir quem os cola e que rasguem a sua liberdade de expressão. Vão sujar de demagogia barata as praças, as ruas e os largos. Mas, se pretenderem disciplinar a sua actividade de rua, aqui d’el rei que estão a atacar a democracia. O pior é que os outros, os outros partidos, os democráticos, os tradicionais, também sujam as ruas das cidades.

 

Que não se pense em proibir, interditar ou deter. Nada disso é legal ou legítimo. Nada disso é democrático. Salvo se cometerem crime, pelo que devem ser apresentados a Tribunal, nunca devem ser combatidos com meios violentos ou ilegítimos. Só devem ser derrotados de uma maneira, a democrática, isto é, com eleições. E só podem ser combatidos de um modo, fazendo melhor, não sendo corrupto, não sendo nepotista, não sendo intriguista, sabendo criar riqueza e sabendo governar. No dia em que os outros, da direita, do centro ou das esquerdas, souberem governar e governem efectivamente sem atrasos, sem erros, sem demagogia, sem corrupção e sem mentira, nesse dia, o Chega é derrotado.

 

Problemas ou crimes com incêndios? Negócios com queimados, aviões, helicópteros e mangueiras? A solução está à vista: 25 anos de prisão! Pena máxima! Prisão perpétua? Logo se verá. Noutros países é permitido. Violação? Simples: pena máxima de 25 anos e castração química. Violência infantil? Evidente: pena máxima de 25 anos! Infracção cometida por imigrante ou estrangeiro? Claro: expulsão imediata. Crime ou infracção cometido por português naturalizado? Óbvio: expulsão e perda da nacionalidade. Pena de 50 anos? Pena perpétua? Estão na agenda, nas esperanças do Chega e de Ventura. E serão bandeiras, enquanto a Constituição as proibir. Parecem bonecos de feira. Vozes gravadas, slogans automáticos, pensamentos mecânicos. Perante qualquer acontecimento, erro, insuficiência, desastre ou o que for: demissão do ministro, demissão do Primeiro ministro e comissão parlamentar de inquérito. 

 

É um dos velhos princípios de uma certa política: culpa os outros dos teus defeitos, responsabiliza os outros pelas tuas deficiências e acusa os outros dos teus erros! É exactamente o que os democratas e as esquerdas fazem relativamente ao Chega. 

 

Primeiro, caracterizam-no mal. É fascista, é neofascista, é neonazi, é salazarista, é ultraliberal e é neoliberal. Nada disso é inteiramente verdade, nem sequer maioritariamente verdade. Pode ser que haja disso, aqui e ali, no que o Chega faz ou diz. Mas nada daquilo serve a compreensão das causas do movimento político. Essas designações simplórias têm a vantagem de fazer a economia do pensamento. Mas de nada servem, a não ser revelar as insuficiências de quem as utiliza. Depois, escondem os erros dos seus autores. Culpar a extrema-direita de ser a extrema-direita é simplesmente estúpido. Culpar os outros pelo nascimento deste movimento já poderia ser um princípio de exercício de compreensão. O Chega não está no ponto em que está por ser fascista ou de extrema-direita. Está lá porque o deixaram ser e o ajudaram a crescer. As falhas da democracia são vitaminas para a direita não democrática. Como aliás já foram para a esquerda não democrática. 

 

A democracia não cai às mãos de assaltantes, começa por cair dentro de si. É o mau governo, a desigualdade, a corrupção, a indiferença social e a arrogância dos democratas e das esquerdas que são o viveiro das ditaduras, das aventuras de extrema-direita, de todos os populismos deste mundo. Será que o Chega tem solução para esses vícios e esses defeitos? Talvez não. É provável que não. Não é isso que ele pretende, o que procura é chegar ao poder, ficar no poder e guardar o poder. Porquê e para quê, depois se verá. 

Público, 30.8.2024

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Grande Angular - Ainda e sempre, a imigração

 O direito a viajar, emigrar, deslocar-se e estabelecer-se é de todos. Mas isso não implica o dever de receber imigrantes. Os países de acolhimento, os Estados que dão abrigo e os povos que concedem refúgio têm o direito e o dever de escolher, de aceitar ou de condicionar a chegada de pessoas de outras nacionalidades. Por mais universal que queiramos que sejam os valores de civilização e de humanidade, a verdade é que a democracia e a legalidade têm uma geografia. Existe um atlas da liberdade. Por isso as ditaduras não recebem imigrantes. Não reconhecem o direito de deslocação e viagem. Não aceitam os direitos de livre circulação.

 

Os povos, os Estados e os governos dos países de acolhimento têm o direito e o dever de tornar públicos os seus critérios de acolhimento. Que género de imigrantes estão mais dispostos a receber? Em que condições reconhecem um refugiado e um perseguido? Até que ponto definem a distinção entre imigrantes económicos e candidatos a refugiados? Portugal tem o direito e o dever de adoptar uma política de preferência, por exemplo, por falantes de língua portuguesa, habitantes das ex-colónias e europeus. Também pode, evidentemente, garantir que não tem qualquer preferência e que as condições de acolhimento são exactamente iguais para todos. Mas tal não é verdade.

 

Portugal tem o direito e o dever de estabelecer prioridades e preferências de carácter social, económico e profissional, de acordo com as suas necessidades e o equilíbrio familiar e demográfico. Esses critérios devem ser anunciados e elaborados com a participação das populações através de todas as maneiras conhecidas de associação dos cidadãos às decisões que lhes interessam.

 

Portugal tem o dever de zelar pela igualdade de condição entre cidadãos residentes e naturais, imigrantes, naturalizados e refugiados. As pessoas comportar-se-ão como entenderem, mas as entidades públicas não podem acordar privilégios nem estabelecer condições de cidadania de segunda ordem. As instituições oficiais devem cuidar por que os grandes serviços públicos de saúde, segurança social, educação, habitação e transporte respeitem uma absoluta igualdade entre naturais, imigrantes e naturalizados.

 

As autoridades portuguesas não têm o direito de transformar a política de imigração ou de nacionalidade em instrumento de domínio. As instituições públicas não têm o direito, por exemplo, de utilizar a nacionalidade, original ou obtida, como arma de submissão ou critério de participação. Fere as regras básicas de moral e de humanidade, assim como as da constitucionalidade que temos, a ideia de utilizar a nacionalidade como instrumento de repressão. Não é aceitável que existam critérios de legalidade penal diferentes para os nacionais originários e os naturalizados. A nacionalidade obtida é igual à original, não tem valor diferente.

 

As autoridades portuguesas têm o direito e o dever de tornar públicas as regras legais que condicionam as autorizações de trabalho e residência. É legítimo que existam vários escalões de autorização de residência, por exemplo, provisório, de curta duração, anual, de longa duração ou definitivo. Mas é indispensável que esses critérios sejam públicos.

 

É legítimo e recomendável que as autoridades portuguesas aprovem, pelas vias democráticas, as regras de procedimento, designadamente as associadas à residência de imigrantes. É direito e dever impedir, proibir e punir o trabalho ilegal, a fuga ao fisco, a residência ilegal, o recrutamento de trabalho ilegal e clandestino e a fuga às obrigações civis seja por parte dos imigrantes, seja pelos empregadores, senhorios ou intermediários.

 

Pelo que se sabe através da história, é evidente que Portugal, um qualquer Estado democrático, não consegue regular a evolução demográfica, a livre circulação de pessoas e a mobilidade espacial. Mas é indispensável que as autoridades tentem planear e prever o movimento migratório, de acordo com as necessidades e as capacidades de acolhimento. Como é um dever e um direito lutar firmemente contra a ilegalidade, a clandestinidade, a exploração e o abuso da precaridade.

 

As autoridades têm o direito e o dever de proibir e reprimir os comportamentos tão conhecidos relativos à clandestinidade, à ilegalidade e ao mercado negro de residências falsas, de alojamento infra-humano, de trabalho clandestino e de aluguer ilegal de carros, de habitação e de título de residência. Assim como combater os que organizam os circuitos ilegais de candidatos à imigração, incluindo os aviões de turismo, os barcos de transporte, os botes improvisados e os autocarros disfarçados.

 

As autoridades portuguesas têm o direito e o dever de controlar os reagrupamentos familiares, a fim de impedir que tais dispositivos se transformem num incitamento à ilegalidade. É dever reprimir e não tolerar o mercado de noivas e de maridos, o aluguer de crianças e de filhos, os casamentos disfarçados, a poligamia camuflada e outras formas de escapar à lei e de introduzir dolosamente novos procedimentos na vida civil.

 

Se cada povo tem o direito de escolher a quem oferece as melhores condições de acolhimento, a inversa não é verdade: um povo não tem o direito de ir para onde quiser obrigando os residentes a aceitá-los. Os imigrantes não têm os mesmos direitos do que os nacionais ou naturalizados. A começar pelo direito de voto em eleições que impliquem a criação e a escolha dos órgãos de soberania, a revisão e a aprovação da Constituição, a declaração de guerra e paz ou as decisões sobre o Estado de sítio. Mas a naturalização cria a total igualdade de condição.

 

O Estado português tem o direito e o dever de proibir práticas que infrinjam as leis vigentes, mas também os costumes que contrariem direitos fundamentais, como nos casos do incesto, do vestuário que contraria direitos da pessoa humana, da violência paterna ou materna e da crueldade marital. Ou ainda da excisão, do casamento forçado ou contratado, do uso de véu e Burca, da justiça pelas próprias mãos e da negação de direitos às mulheres e às crianças.

 

As comunidades imigrantes que vivem fechadas em guetos ou bairros monocolores mais ou menos segregados, são ameaças à liberdade e à cultura, nossas e deles, dos residentes e dos imigrantes. A legalização e a integração dos imigrantes, a igualdade de direitos e o respeito pelas leis vigentes são os instrumentos fundamentais para obter o equilíbrio social e a dignidade humana.

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Público, 23.8.2025

Grande Angular - Uma decisão soberana

Os ânimos estão muito vivos. A polémica corre facilmente pelo espaço público. Tanto em Portugal, como noutros países ocidentais. Que fazer com a imigração e os imigrantes? Deixar correr, controlar ou travar?

 

As opiniões chocam-se e não parece que haja solução fácil. Nos países de acolhimento, há quem se exprima a favor de políticas permissivas, de portas abertas e quem esteja firme na atitude inversa, de fronteiras fechadas. Entre as duas opiniões, há os que pretendem controlar a imigração, como, por exemplo, os que desejam só permitir a entrada de quem se precisa. Também há os que defendem a rápida legalização de todos os imigrantes, com ou sem contrato, com ou sem residência. Ou então, os que propõem a imediata expulsão de quem não entra legalmente. Há ainda os que desejam uma política diferenciada, isto é, ajustada a cada nacionalidade. Por exemplo, quem admita a permissividade para os países de língua portuguesa e a severidade para outros africanos e asiáticos. Há os que entendem que se deve ter uma atitude para cristãos e equiparados e outra para muçulmanos e afins. Também há quem acredite que se deve ter uma política permissiva para ocidentais, europeus em particular, e outra restritiva para africanos, latino-americanos e asiáticos. Também não faltam os que desejam uma política para imigrantes ricos e outra para imigrantes pobres.

 

No domínio dos argumentos dos mais activistas, as diferenças são muitas e a ferocidade imensa. É frequente encontrar quem acuse uns de supremacistas, de pretender assegurar uma posição dominante de cristãos e europeus, de defender a “pureza” da raça e de tentar garantir o domínio dos brancos. Como também não é raro ver quem acuse os outros de se esforçarem pela dissolução da nação e da comunidade, pela destruição das tradições portuguesas e nacionais e pela mestiçagem racial, étnica e cultural.

 

Se olharmos para as políticas públicas, também aí se encontram diferenças abissais e irredutíveis. Há quem exija que as autoridades, os poderes, as autarquias, as empresas e a sociedade defendam e pratiquem a integração dos imigrantes, com a muito rápida assimilação de costumes, língua, cultura, tradições e hábitos. Mas também, do lado oposto, quem cultive as políticas multiculturalistas que privilegiam a manutenção das culturas diferentes, o uso das línguas próprias, a educação separada, a religião diferenciada e pública e até práticas de legalidade diferente (casamento, vínculo familiar, sucessão, iniciação, gastronomia e saúde).

 

Do mesmo modo, é fácil ver a defesa da habitação integrada, de populações misturadas, sem distinção de comunidades de acordo com as origens e as etnias. Ou ver os que favorecem a diferenciação de bairros e de habitação em geral. Em poucas palavras, o urbanismo integrado e miscigenado em oposição ao urbanismo multicultural e separado.

 

As que precedem são opções simples que encontramos todos os dias. Vêm muitas vezes recheadas de argumentos contundentes. Os que receiam a imigração insurgem-se contra os respectivos perigos alegados: mais criminalidade, mais violência, mais droga, mais fuga ao fisco e incumprimento das leis. Em contraste, há os que defendem a imigração, demonstram que as suas comunidades respeitam as leis, pagam impostos, dão lucros à Segurança Social, criam emprego, trabalham onde falta mão de obra, executam as tarefas que os residentes não querem levar a cabo e sobretudo garantem a renovação das gerações graças à natalidade superior.

 

Elevando um pouco o debate, é usual encontrar argumentos relativos à história, à civilização e à natureza da comunidade. Muitos reagem contra a imigração pelo que esta representa como adulteração dos valores nacionais, das crenças históricas, das tradições que fizeram um país, uma língua e uma pátria. Outros recusam pura e simplesmente este ponto de vista, garantindo que Portugal e o povo português são o resultado de permanente mistura, da contribuição de vários povos e diversas origens e da constante mistura de nacionalidades e tradições.

 

Por mais difíceis que sejam os termos destes debates, saúda-se que estes tenham lugar agora. Mesmo se ríspidos e belicosos, mesmo se recheados de preconceitos, saúda-se o facto de se estar a discutir algo de importante. A definição do que é Portugal, do que é um povo e do que é uma cultura é bem mais relevante do que se pode pensar. Até certo ponto, os termos que se debatem fazem parte dos fundamentos da liberdade. O conhecimento de si próprio, tão isento quanto possível de preconceitos, é condição para delinear a liberdade e a autonomia de si próprio.

 

Nenhum destes problemas é exclusivamente português. Com excepção das ditaduras, todo o mundo vive hoje sob o signo das migrações, resultado dos desequilíbrios e das desigualdades demográficas, sociais e económicas. Portugal pode revelar traços próprios, como, por exemplo, a simultaneidade da partida de dezenas de milhares de emigrantes e da chegada de dezenas de milhares de imigrantes, mas na verdade partilha com tantos outros países condições sociais e demográficas semelhantes. Além disso, Portugal faz parte de um conjunto político que se transforma todos os dias em tecido social, económico e cultural feito de interdependência. Em certo sentido, as migrações portuguesas já não são problemas portugueses, são a versão portuguesa de questões europeias e internacionais. Por outras palavras, não é razoável pensar que se pode tratar da questão das migrações exclusivamente numa perspectiva portuguesa. A não ser que o país deixe a União Europeia, feche as suas fronteiras e estabeleça uma ditadura.

 

Sendo assim, qual a solução mais razoável? Gerir o dia a dia e ir com a corrente, ou tentar fazer uma política própria, só nacional? A verdade estará algures a meio caminho, entre a afirmação de vontades nacionais e a partilha de destinos e políticas com os nossos parceiros. Por isso se saúda a actualidade do tema e da discussão, mesmo se o Governo e os partidos estejam mais preocupados com as percepções, as impressões e as consequências eleitorais. Uma coisa é certa: deixar correr e permitir avolumar-se o mal-estar das migrações é um erro catastrófico. Tal como é um engano monumental pretender tratar destes problemas apenas numa óptica nacional. 

Mas mesmo isso tem de ser uma decisão informada e soberana. Ela própria uma decisão nacional e livre.

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Público, 16.8.2025 

sábado, 9 de agosto de 2025

Grande Angular - A vitória do trivial

 O quadro é simples. O governo tenta governar como se tivesse a maioria parlamentar e uma legislatura de quatro anos à sua frente. Como há leis e orçamentos, além de decretos que podem ser chamados ao parlamento, o governo também tem ideia assente: aprova leis ora com o Chega, ora com o PS. E se mais houvesse e mais fossem necessários, faria o mesmo. O importante é fazer “como se”. Como se tivesse maioria. Como se os partidos da oposição precisassem mais do governo do que este deles. Como se o apoio do Presidente estivesse garantido. O governo olha em frente. Não discute nem negoceia. Faz. Quem quiser ir com ele, vai. Quem não quiser, paciência.

 

A pequena política e a pequena governação fazem-se todos os dias. Mais dinheiro para contribuintes. Mais subsídios para pensionistas. Menos IRS para aqui. Mais bónus para ali. A grande governação segue também a sua via. São anunciadas reformas de serviços dos ministérios. Sugeridas novas leis sobre temas fundamentais como o trabalho, a saúde, a educação e a segurança social. Promessa de abertura de novos projectos. O lítio, o aeroporto, o TGV, a TAP, a CP, o Centro de Dados e a terceira ponte do Tejo são apenas alguns dos planos que serão acelerados de modo a dar resultados eleitorais e a preparar uma maioria absoluta. Assim como reforçar os interesses estrangeiros. O governo não espera por maiorias para governar e reformar. Governa e reforma para obter a maioria. O que deixa o Chega e o PS em situação difícil. Deixar e depois perder? Ou impedir a depois perder à mesma?

 

Nada disto é novo. Já vimos parecido ou igual. Mário Soares tentou, sem conseguir. Cavaco Silva também, mas com mais êxito. Guterres esforçou-se. Sócrates e Costa desperdiçaram. Montenegro perdeu a primeira volta, veremos agora a segunda. Uma coisa é certa: na maior parte dos casos, a governação segue o interesse político, partidário ou pessoal. A procura da maioria programática e duradoura, garantia de eficácia e reforma, parece estar sempre ao serviço um desígnio maior, o de conquistar o poder. É pena, mas é assim.

 

O espaço público, da política, das instituições, das redes e da comunicação social, está repleto de trivialidades, de pequenas histórias que enfeitam a política e impedem os grandes debates. Pior ainda: está cheio de banalidades que escondem as principais escolhas. Importante é saber se o PS apoia ou não uma lei ou um orçamento. Ou saber se o Chega vota a favor de outra lei e de outro orçamento. Importante é saber se o Presidente Marcelo apoia hoje ou nega amanhã. Decisivo é impedir que problemas sérios ocupem a agenda pública, que debates substantivos esclareçam a opinião e possam mesmo envolver cidadãos, classes e instituições. 

 

O governo tenta passar leis de trabalho que sejam mais simpáticas para os patrões, sem que se perceba muito bem. Esforça-se por manter o país como fornecedor de emigrantes e acolhedor de mão-de-obra barata e precária. Tenta atrair empresários e capitalistas, não especialmente os nacionais, que não têm capital nem saber suficientes, mas os internacionais que importam. Tudo isto merecia debate nacional, aberto e permanente, mas não será o caso. Tem é de se saber quem vota a favor, quem apoia…. Chega? PS? PR?

 

O governo procura ainda, nas leis laborais, mecanismos punitivos contra as mulheres, não por ser machista, mas porque quer ter uma economia mais aberta, com menos interferência social, com mais permissividades e menos direitos. Até lhe ocorreu castigar a maternidade e penalizar os respectivos projectos, sem fundamentos empíricos evidentes, mas certamente com preocupações mediáticas e partidárias. E muito preconceito.

 

Perante a justa pressão pública para que se faça o debate nacional sobre as questões de nacionalidade, assim como sobre a política de imigração, o governo responde atabalhoadamente, quer agradar aos seus clientes eleitorais, mas pretende sobretudo desarmar o Chega, ao mesmo tempo que incomodar o PS. Fez más leis e tentou desnortear o Presidente da República. As suas leis, justamente chumbadas e vetadas, revelam falta de cuidado, precipitação e obsessão ideológica.

 

Mais uma vez, o governo ocupou-se da TAP e fez lei que permita a venda e a privatização, quem sabe se a liquidação. É chocante e incompreensível que todos os governos se queiram ocupar da TAP, que a sua privatização e a sua nacionalização, assim como a reprivatização e a renacionalização, estejam sempre na ordem do dia. Quanto já se perdeu, em valor, capital e reputação, com esta hesitação e estas manobras? Haverá assim tantos interesses ilegítimos ou disfarçados que explicam esta saga da TAP?

 

Também de repente, sem aviso nem preparação, sem revelação de fundamentos e de objectivos, é anunciada a extinção da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), organismo público de excepcional peso e importância, com orçamento e despesa que ultrapassam os 800 milhões de Euros. É um dos mais importantes órgãos do Estado, de cuja actuação podem depender milhares de pessoas, centenas de instituições, muita ciência e uma boa parte do futuro do país. Veremos se o governo decidiu bem, se sabe mais, se tem melhores planos e se vai conseguir que o substituto valha a pena. Mas não parece que este método de supetão seja o mais adequado para reformar um organismo de tal importância académica, educativa, científica e cultural.

 

Ainda à cabeça da vida nacional, à frente nas redes e na comunicação, estão as intervenções descabidas, de mau gosto e de baixo estofo moral, de André Ventura sobre as crianças estrangeiras nas escolas. Mais uma vez, o incidente é mais importante do que o tema. O mundo quer saber o que pensa o Presidente, o que diz o governo, o que acha a oposição. Há mesmo quem preveja um processo judicial contra a declaração do deputado. Futilidades.

 

Importante, realmente importante, vital para o país e para os portugueses, essencial para a qualidade de vida dos cidadãos, molde das gerações futuras é o problema das relações entre Belém e São Bento, entre o governo e o Presidente, entre Marcelo e Montenegro. Mais importante ainda é o voto do Chega. Imigrantes, naturalização, licenças de maternidade, despedimentos de trabalhadores, regime de precaridade, FCT, TAP, TGV, terceira ponte, lítio e Central de Dados: tudo isso tem importância relativa. Realmente importante é a coreografia do governo, do Presidente, do Chega e do PS. 

Público, 9.8.2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Grande Angular - A guerra perdida de Israel

 É provável que, como nunca antes, a larga maioria da opinião pública mundial e das posições dos Estados esteja contra Israel, contra a sua campanha militar, contra os métodos utilizados em Gaza e contra a responsabilidade do governo na não obtenção do regresso dos reféns. Até já dentro de Israel a opinião contrária ou crítica do governo e da sua acção em Gaza e na Cisjordânia começa a ser significativa e pública. As reacções justas e justificadas do governo e das Forças Armadas de Israel contra os covardes ataques do Hamas começaram por ser aceites sem dificuldade. Dois anos depois, são geralmente consideradas desproporcionadas, excessivas e até dignas do epíteto de genocídio. Os mais indignados fazem mesmo repetidas alusões ao Holocausto. De vítima, Israel passou rapidamente a criminoso.

 

Há, evidentemente, razões para isso. A destruição de Gaza, os bombardeios das cidades e vilas, a destruição de escolas e hospitais, a morte sem distinção de militares, guerrilheiros, terroristas, civis, idosos, doentes, mulheres e crianças e a imposição de regime de fome e sede são motivos suficientes para condenar a política do governo de Israel. O massacre de uma população, de um povo, de uma comunidade e de um país é motivo mais do que suficiente para criticar e rejeitar a acção do governo de Israel.

 

É impressionante ver como a opinião pública crítica e contrária à política do governo de Israel foi crescendo ao longo destes dois anos. A crueldade terrorista dos ataques islâmicos de 7 de Outubro de 2023 foi quase universalmente condenada. Excepto nos países mais fanáticos, a começar pelo Irão e incluindo o Líbano, o Iémen e a Síria, a campanha do Hamas contra Israel foi então criticada. Mais de mil pessoas assassinadas e mais de duzentos reféns foi o resultado imediato da acção terrorista, prontamente denunciada pela opinião pública mundial. Depois disso, a acção do governo de Netanyahu conduziu sistematicamente a mudar a opinião, actualmente em maioria desfavorável a Israel. Foram, até hoje, mais de 50.000 palestinianos mortos. Foi uma espécie de país totalmente destruído, onde deixaram de existir casas, ruas, vilas e cidades. Foram, provocadas pelo governo de Israel, a fome, a sede e a doença, assim como a falta de cuidados médicos e de apoio humanitário. Multiplicam-se hoje, pelo mundo inteiro, as manifestações e os protestos contra o governo de Israel, sem que ninguém ou praticamente ninguém se levante para defender e apoiar este país.

 

É chocante ver como os movimentos terroristas do Hamas, do Hezbollah, da Al Qaeda, do Estado Islâmico (ISIS) e da Jihad Islâmica, assim como os Estados que os apoiam explicitamente (com relevo para o Irão) têm vindo a receber e gozar do estatuto de vítimas, de movimentos políticos razoáveis e de partidos com ideias aceitáveis pelo resto do mundo. Mais ainda, estes movimentos, condenados por grande parte da opinião, são hoje considerados como interlocutores aceitáveis. O Hamas, o Hezbollah, restantes grupos terroristas e respectivos governos apoiantes souberam, com mestria, aproveitar e fomentar a onda de opinião a seu favor. A utilização intensiva de feridos e de cadáveres de mulheres, de crianças e de idosos na comunicação social do mundo inteiro está a dar resultados valiosos para as suas causas. 

 

Mais do que nunca antes na história, os movimentos terroristas islâmicos, a começar pelo Hamas e pelo Hezbollah, utilizaram os civis, os idosos, as crianças e as mulheres como escudos humanos. Esconderam-se debaixo deles, sob os hospitais e as escolas, dentro dos lares de velhos e doentes, a fim de provocar massacres de inocentes para poder exibir nas televisões, nos jornais e na ONU. Cavaram centenas de quilómetros de túneis e de subterrâneos sob as cidades, debaixo das instituições, das escolas e dos hospitais. Raramente, na história da humanidade, se assistiu a uma tal crueldade, a um tal cinismo. Os movimentos terroristas, a começar pelo Hamas, procedem com especial cuidado a fim de provocar sempre a morte de crianças, o desmembramento de idosos e os ferimentos de mulheres. A morte por fome e sede, a desnutrição, a subnutrição e os ferimentos mortais de crianças são procurados pelo Hamas e exibidos com orgulho como prova da sua justeza e da crueldade de Israel.

 

No mundo ocidental, na Europa, nos Estados Unidos, no Canada e na América Latina, mas também na Austrália, no Japão e na Nova Zelândia, Israel é hoje o agressor cruel e desumano, enquanto os terroristas do Hamas e seus apoiantes são as vítimas. Na Europa e na América, tem tido larguíssimo curso esta realidade dos “dois pesos e duas medidas”, ou de “double standards”, que tanto mal faz à democracia e ao sentido de humanidade. Que tanto prejuízo provoca nos fundamentos da moral pública dos países democráticos. Os países que não reconhecem Israel, que desejam e lutam pela sua extinção, são desculpados e justificados. Mas são condenados os que não reconhecem o Estado da Palestina.

 

A discussão sobre a solução dos dois Estados e sobre o reconhecimento do Estado da Palestina está já a dar frutos favoráveis aos movimentos terroristas. Não se exige o reconhecimento do Estado de Israel, mas sim e apenas o da Palestina. Considera-se aceitável a política oficial de vários movimentos e de alguns Estados da região que consiste em propor a eliminação do Estado de Israel e a expulsão do seu povo. Reconhece-se o direito à sobrevivência e à defesa de qualquer grupo ou Estado islâmico, mas não se reconhece o mesmo ao Estado israelita.

 

O povo de Israel, com toda a sua formidável história, notável nas ciências, nas artes e nas finanças, um “povo orgulhoso”, como lhe terá chamado De Gaulle, este povo não merecia esta enorme derrota política, humanitária e cultural, cujas consequências se vão arrastar durante tempos sem fim. O governo de Israel tem todo o direito a defender a sua existência, cabalmente legalizada há décadas, mas não tem o direito de massacrar outros da maneira como está a fazer em Gaza e se prepara para fazer na Cisjordânica. Tem o direito de atacar o Hamas e o Hezbollah, assim como os governos da região que os apoiam, mas não tem o direito de massacrar um povo. O governo de Israel, raríssima democracia naquela região do mundo, não tinha o direito de infligir esta derrota ao seu povo e à democracia do seu Estado.

 

Um dia falar-se-á da vitória militar de Israel. É possível. Política é que não é.

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Público, 2.8.2025