A luta entre liberais e dirigistas é antiga. Em Portugal, a tradição é a de Estado a mais: nos Descobrimentos, na colonização, na industrialização, na República, no corporativismo, na revolução e na democracia.
Há, em geral, Estado a mais nas leis e nas regras. Mas há Estado a menos na prática e na acção.
Há Estado a mais na Administração central, nos privilégios da Função Pública, nos regulamentos urbanísticos, nas condições de investimento, na lei laboral, na concertação social, na burocracia e nos procedimentos judiciários.
Há Estado a menos na segurança, na defesa, na protecção pessoal, nas emergências, nas cirurgias, na luta contra os desastres, na protecção do património e na fiscalização de actividades financeiras.
Mas esta polémica esconde um aspecto crucial. Muitas vezes, o Estado, a mais ou a menos, é ignorante. O desenvolvimento do capitalismo, da indústria e dos serviços, assim como do comércio internacional e da integração europeia, não foi acompanhado pelo reforço das capacidades científicas e técnicas do Estado. Este prefere recorrer aos privados, a escritórios, a agências e a consultores. Subcontratação é a palavra-chave. Hoje, a Administração Pública não tem capacidade de planear ou seguir a maior parte das coisas que faz ou deixa fazer. Episódios como o dos aeroportos de Lisboa, da Ota, do Montijo ou de Alcochete, nunca teriam ocorrido se a Administração não estivesse esvaziada de conhecimento. As hesitações, a falta de clareza em temas como o comboio de grande velocidade, os terminais marítimos, a rede ferroviária, o campus da Justiça, a construção das grandes pontes, os parques industriais e grande parte das auto-estradas construídas em sistema de parceria (PPP) não dariam tanto desperdício, se o Estado não estivesse refém dos interesses económicos ou partidários. E talvez a eficiência e a segurança fossem superiores se o Estado, ao autorizar ou investir, estivesse dotado de capacidade técnica tão independente quanto possível, mas sobretudo conhecida, o que é uma notável fonte de independência.
Os recentes fogos servem para demonstrar esta aparente dualidade. Houve Estado a mais na fixação de um calendário de incêndios, na tentativa de dirigir a informação, na inexistência de entidades civis ou locais, no monopólio de funções, na inércia dos grandes dispositivos reféns de empresas e interesses e no esvaziamento de competências das autarquias.
Houve Estado a menos na previsão, na informação, na acção de emergência e na disponibilidade de sapadores profissionais; na falta de divulgação dos dados conhecidos e que definiam a ameaça; na incompetência técnica de tantos serviços, na falta de formação profissional dos bombeiros e na ausência de dispositivos céleres de emergência humana.
Haverá Estado a mais se as Forças Armadas forem enviadas para os incêndios sem missão legal, sem meios, sem equipamento, sem aprendizagem e sem formação adequada. Mas há seguramente Estado a menos, com a impossibilidade de intervenção por parte das Forças Armadas, que não estão devidamente preparadas, treinadas e equipadas.
Este governo portou-se mal em todas as frentes, até às mais simples tarefas de distribuição de água, pão e agasalho a quem precisava no dia seguinte. Foi incapaz na previsão e incompetente na coordenação. A desorganização, a ignorância, a falta de interesse e a insuficiência de conhecimentos são deste governo. Mas também são, em boa parte, do governo anterior e do governo de antes do anterior. E dos de antes desses. Isto é, do Estado, que perde em tudo o que importa a todos e que cresce em tudo o que interessa a alguns.
O problema parece ser mais do Estado do que do governo. É verdade. Mas isso não desculpa o actual governo. Pelo contrário, só o responsabiliza. E revela com mais nitidez a sua incompetência.
DN, 19 de Novembro de 2017
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