domingo, 8 de outubro de 2017

Sem emenda - A estatística e a política

As “noites eleitorais” são momentos altos da vida democrática. Muitos dos comentários que ouvimos nessa noite parecem saídos directamente de um episódio de humor. Sem rir, um trata o sapo de gato e o outro de rato. Na verdade, trata-se de uma mistura hilariante entre a arte mais fingida, a política, e a ciência mais exacta, a estatística. Quem ganha e quem perde, naquela noite, é do domínio da poesia. Ou da ficção.

Apesar de grandes derrotas (Porto, Oeiras) e de vitórias medíocres (Lisboa), o PS foi o grande vencedor. António Costa não escondia a sua aflita alegria. Derrotar aliados é mais problemático do que vencer adversários.

Mau grado as poucas perdas (número de câmaras), o PSD ficou de rastos e pagou, com humilhação, quatro anos de troika e dois de miopia. Com serenidade, Passos Coelho não disfarçou a sua incompreensão.

Não obstante os miseráveis resultados locais e nacionais, o Bloco de Esquerda, um grande derrotado, apresentou-se como vencedor sorridente, recheado de superioridade e embrulhado em certezas.

Derrota pior, quase tão dolorosa quanto a do PSD, foi a do PCP. Perdeu alicerces, bastiões e fortalezas (Beja, Almada, Barreiro). Com inusitado nervosismo, Jerónimo de Sousa ameaçou os eleitores (“Hão-de arrepender-se!”).

Vitória magra em números (votos e câmaras), mas grande em símbolo (Assunção Cristas em Lisboa) foi a do CDS, que tem agora de saber distinguir o fortuito do essencial.

O afastamento de Passos Coelho merece nota. Os seus erros foram certamente muitos e as insuficiências também. Mas não lhe faltaram honra e seriedade para levar a termo o programa de austeridade, sem o que estaríamos hoje em muito piores condições. A sua teimosia, no governo, e a sua miopia, na oposição, nunca o impediram de ser um político decente.

Os dados estão lançados. Ou quase. A refundação das esquerdas começou. Dentro de dois ou três anos saberemos os resultados. Qual a relação das esquerdas com a liberdade e a democracia? Qual a opção de esquerda relativamente à segurança e à defesa europeia? Qual a determinação da esquerda perante o terrorismo? Qual o programa da esquerda relativamente ao mercado e à iniciativa privada? No essencial destes temas, a esquerda democrática (o PS) tem património rico, mas, recentemente, revela hesitações. Também a esquerda mais esquerda (o PCP e o Bloco) tem tradições, cada qual as suas, mas opostas à do PS. Depois do êxito destes dois anos de governo comum e após as eleições autárquicas, está aberto o caminho para a reorganização da esquerda! O PS quer ganhar ainda muito. O PCP e o Bloco não querem perder mais.

Os tempos vão ser ricos e férteis. Os três paridos da esquerda perceberam exactamente o que os espera: o êxito de um será o fracasso dos outros. Os próximos orçamentos e as políticas públicas a aprovar dentro destes dois anos serão vitais para a definição das esquerdas e das suas fronteiras. Para o PCP e o Bloco, as eleições deixaram de ser importantes: vitais são as leis e o orçamento.

Por feliz coincidência, também as direitas estão em momento crucial de definição e refundação. Estas têm tido grandes dificuldades em acertar contas com o pensamento liberal e as tradições democratas-cristãs. E com uma certa influência social-democrata e reformista. Sem falar na política de “todos os horizontes” populares e democráticos, como se vê pelo facto de ambos os partidos, PSD e CDS, terem também alcunhas ou pseudónimos, PPD e PP. Também aqui parece ter chegado a hora das definições.

Esquerdas e direitas, a todos se apresenta ainda uma série de dilemas e de escolhas indispensáveis: que fazer com a identidade nacional? Que fazer com Portugal, a Europa e o euro? Com o nacionalismo e o cosmopolitismo? E como tratar das ligações venenosas com os interesses tóxicos e a corrupção?

Vivemos tempos fascinantes!
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DN, 8 de Outubro de 2017

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