As “noites eleitorais” são
momentos altos da vida democrática. Muitos dos comentários que ouvimos nessa
noite parecem saídos directamente de um episódio de humor. Sem rir, um trata o sapo
de gato e o outro de rato. Na verdade, trata-se de uma mistura hilariante entre
a arte mais fingida, a política, e a ciência mais exacta, a estatística. Quem
ganha e quem perde, naquela noite, é do domínio da poesia. Ou da ficção.
Apesar de grandes derrotas
(Porto, Oeiras) e de vitórias medíocres (Lisboa), o PS foi o grande vencedor.
António Costa não escondia a sua aflita alegria. Derrotar aliados é mais
problemático do que vencer adversários.
Mau grado as poucas perdas
(número de câmaras), o PSD ficou de rastos e pagou, com humilhação, quatro anos
de troika e dois de miopia. Com serenidade, Passos Coelho não disfarçou a sua
incompreensão.
Não obstante os miseráveis
resultados locais e nacionais, o Bloco de Esquerda, um grande derrotado,
apresentou-se como vencedor sorridente, recheado de superioridade e embrulhado
em certezas.
Derrota pior, quase tão dolorosa
quanto a do PSD, foi a do PCP. Perdeu alicerces, bastiões e fortalezas (Beja,
Almada, Barreiro). Com inusitado nervosismo, Jerónimo de Sousa ameaçou os
eleitores (“Hão-de arrepender-se!”).
Vitória magra em números (votos e
câmaras), mas grande em símbolo (Assunção Cristas em Lisboa) foi a do CDS, que
tem agora de saber distinguir o fortuito do essencial.
O afastamento de Passos Coelho
merece nota. Os seus erros foram certamente muitos e as insuficiências também.
Mas não lhe faltaram honra e seriedade para levar a termo o programa de
austeridade, sem o que estaríamos hoje em muito piores condições. A sua
teimosia, no governo, e a sua miopia, na oposição, nunca o impediram de ser um
político decente.
Os dados estão lançados. Ou
quase. A refundação das esquerdas começou. Dentro de dois ou três anos
saberemos os resultados. Qual a relação das esquerdas com a liberdade e a
democracia? Qual a opção de esquerda relativamente à segurança e à defesa
europeia? Qual a determinação da esquerda perante o terrorismo? Qual o programa
da esquerda relativamente ao mercado e à iniciativa privada? No essencial
destes temas, a esquerda democrática (o PS) tem património rico, mas,
recentemente, revela hesitações. Também a esquerda mais esquerda (o PCP e o
Bloco) tem tradições, cada qual as suas, mas opostas à do PS. Depois do êxito
destes dois anos de governo comum e após as eleições autárquicas, está aberto o
caminho para a reorganização da esquerda! O PS quer ganhar ainda muito. O PCP e
o Bloco não querem perder mais.
Os tempos vão ser ricos e
férteis. Os três paridos da esquerda perceberam exactamente o que os espera: o
êxito de um será o fracasso dos outros. Os próximos orçamentos e as políticas
públicas a aprovar dentro destes dois anos serão vitais para a definição das
esquerdas e das suas fronteiras. Para o PCP e o Bloco, as eleições deixaram de
ser importantes: vitais são as leis e o orçamento.
Por feliz coincidência, também as
direitas estão em momento crucial de definição e refundação. Estas têm tido
grandes dificuldades em acertar contas com o pensamento liberal e as tradições
democratas-cristãs. E com uma certa influência social-democrata e reformista.
Sem falar na política de “todos os horizontes” populares e democráticos, como
se vê pelo facto de ambos os partidos, PSD e CDS, terem também alcunhas ou
pseudónimos, PPD e PP. Também aqui parece ter chegado a hora das definições.
Esquerdas e direitas, a todos se
apresenta ainda uma série de dilemas e de escolhas indispensáveis: que fazer
com a identidade nacional? Que fazer com Portugal, a Europa e o euro? Com o
nacionalismo e o cosmopolitismo? E como tratar das ligações venenosas com os
interesses tóxicos e a corrupção?
Vivemos tempos fascinantes!
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DN, 8 de Outubro de
2017
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